Intolerância, racismo às claras e fuzis à mostra: o que vi (e senti) no maior protesto movido pelo ódiodécadas nos EUA:
Pois foi exatamente ódio o que eu encontrei nas horas seguintes.
Enquanto desfazia a mala, li no Twitter boatosuma possível demonstração-surpresa dos manifestantes, que haviam feito um acordo com a prefeitura para desfilar pela cidade só no dia seguinte.
Era sexta-feira à noite e eu corri para a UniversidadeVirginia, ao norte do centro da cidadezinhacasarões preservados e praças com monumentos antigos. O campus estava escuro, vultos andavamum lado para o outrobuscaalgum sinal.
Um grupoaproximadamente 20 homens subiupasso aceleradodireção ao jardim interno. A 50 metrosdistância, um grupo menor os seguia. Corri até eles pela penumbra.
O segundo bloco era formado por estudantes que escreviam para um site local. Anne, uma jovem20 anos, no máximo, me explicou: "São eles. Estão tentando nos despistar e andandocírculos".
Em 15 minutos eu entenderia o que ela quis dizer com "eles". Depoiscircular todos os cantos do campus, um dos homens gritou: "Vamos!"
Eles começaram a correr. Sabiam que nós os seguiamos e não diziam nada. Corremos por quase 10 minutos até chegar ao altoum vale.
"Eles" estavam lá embaixo. Centenashomens e mulheres, incluindo algumas crianças, se organizavamfilas, rindo alto e brincando entre si enquanto acendiam tochas. Estava muito escuro e a luz das tochasmadeira tingiavermelho o gramado, onde estudantes normalmente jogam beisebal e futebol americano.
Um homem com tom agressivo começa a falar no megafone. "Alinhem-se agora! Duas filas! Todos! Agora!"
A linha iluminada pelas tochas já alcançava o horizonte quando eles começaram a marchar. "Vocês não vão nos substituir!", "Judeus não vão nos substituir!", "Vidas brancas importam!", gritavam, bradando também ofensas a gays e estrangeiros.
"Sou nazista, sim", "A negra está assustada", "Suma daqui, viadinho", "Ele não é americano". Os gritos raivosos, partindo do meio das tochas que homenageavam a Ku Klux Klan (grupo racista que promoveu linchamentos, enforcamentos e assassinatosnegros), bastõesbaseball e socos ingleses.
A caminhada terminou com uma briga generalizada com estudantes que tentaram impedi-losse aproximar da estátuaThomas Jefferson, terceiro presidente americano,frente ao prédio principal da universidade.
Mas tudo isso era só um prenúncio do que aconteceria no dia seguinte, o sábado da marcha oficial.
Acordei com gritos na praça ao lado do hotel: "Escória racista!"
Ali, grupos antifascistas - opositores aos supremacistas brancos,muitos casos também agressivos e radicais - se reuniam para contra-atacar. Nascida e criadaCharlottesville, a senhora que servia o café da manhã comentava com a gerente.
"Manny disse que está assustado. Acredita que mandaram ele vestir a farda e vir trabalhar?"
Depois descobri que Manny é policial aposentado há quase dez anos. Ele havia dito que os colegas temiam pelo pior, porque a quantidadehomens se aglomerando nas praças da cidade só crescia.
"Manny disse que só uma tempestade seria capazcontrolar isso aqui", contou a cozinheira. A previsão do tempofato indicava chuvas durante todo o dia.
Mas não se confirmou.
Durante quatro horas, homens com suásticas tatuadas no crânio e bandeiras confederadas (símbolo do grupo que lutou na guerra civil americana por manter a escravidão) trocavam socos, pauladas e cusparadas com jovens vestindo máscaras e carregando bastõesmadeira e sprayspimenta.
Eles se batiam até sangrar, e policiais como o velho Manny assistiam a tudolonge, visivelmente impotentes diantegrupos numerosos, estimados entre 2 e 6 mil pessoas, segundo a mídia local.
Os nacionalistas, neonazistas, supremacistas brancos e simpatizantes se concentravam na praça,torno da estátua do general confederado Robert E. Lee, um dos principais defensores da escravidão.
Antifascistas, punks, anarquistas e simpatizantes (incluindo hippiesroupas coloridas e tranças como os que vemos nos vídeosWoodstock) ficavam do ladofora.
Para entrar na praça, os nacionalistas precisavam atravessar um paredão formado por antifascistas. Durante o caminho saltavam ofensas pesadasambos os lados, e volta e meia os ataques verbais se tornavam físicos.
Fui pegosurpresauma dessas escaladas violentas. Eu tentava filmar o encontro entre os grupos, quando uma briga generalizada começou. Nacionalistas fechavam os olhos e batiam com bandeirastudo o que viam pela frente, e antifascistas faziam o mesmo com sprayspimenta.
O spray me atingiu pelo corpo todo - e por uns três minutos eu não enxergava nada e corria, tentando sair da pancadaria. Alguém me puxou com força e me carregou. Eu não tinha ideiaquem era e temia o que fariam comigo. "Calma, calma, você vai ficar bem."
A jovem fazia parteum grupoestudantes voluntários que levavam materiaisprimeiros-socorros, água e comida para atender a feridos. Eles passaram vinagre no meu rosto e um produto que até agora não entendi qual é - mas tirou o ardor dos meus olhos na hora. Eles me salvaram no meio da confusão.
Voltei à cobertura para a BBC Brasil e o que mais impressionava a meu redor, mesmo a mim, brasileiro, era a quantidadearmas. Grupos uniformizados, representando os dois lados dos protestos, carregavam pistolas e fuzis, com cintos repletosmunição.
Na Virgínia, quem tem portearmas e determinados tiposlicença pode circular pelas cidades exibindo o armamento. A combinação entre a primeira e a segunda emendas da Constituição americana - liberdadeexpressão e direito ao portearmas, respectivamente - faziamCharlottesville uma combinação tensa.
O medo era que, a qualquer momento, alguém disparasse e um tiroteioproporções imensas deixasse uma multidãoferidos.
Felizmente, isso não aconteceu. O governador declarou estadoemergência, epoucos minutos helicópteros, tanques e centenaspoliciaisdiferentes grupos, incluindo a Força Nacional, chegaram à cidade e ordenaram a saída dos grupos nacionalistas da praça. Eles seguiramfila para uma estrada que leva para o subúrbio local.
Pelo megafone, a polícia dizia: "Evacuem a área. Evacuem a área. Quem continuar aqui será preso".
A maior parte das ruas do centro foi bloqueada e eu fiquei presoum quarteirão, sem poder ir até o hotel - único lugar onde eu poderia ligar meu computador numa tomada, já que todo o comércio estava fechado.
Nesse momento, pela segunda vez, encontrei uma onda inspiradorasolidariedademeio ao ódio que pontuou o fimsemanaCharlottesville. Gruposmoradores, muitos deles idosos, circulavam pelas poucas ruas liberadas, oferecendo garrafaságua gelada e pacotinhos com batatas chips e amendoins.
"Se hidrate, se alimente", diziam, sorrindo. "Quanto custa?", perguntei automaticamente, achando que eram vendedores ambulantes. "Fazemos por amor", respondeu a senhoracabelos brancos e avental azul, dando um tapinhaminhas costas.
Dois homens com tatuagenssímbolos nacionalistas estavam sentadosum canto, mexendo no celular. O grupo foi até eles também: "Beba água. Se hidrate. Se alimente".
Passaram-se duas horas até que as ruas do centro fossem abertas novamente. Não demorou até que os grupos que tentavam circular voltassem a se reunir.
Quando tudo parecia mais calmo, tentei seguir um pequeno gruponacionalistas que se dirigia até um estacionamento para entrar na van que os trouxe a cidade. Nesse momento, um carro cinza, completamente destruído, passoualta velocidade.
Alguns antifascistas aplaudiram, achando que o carro do nacionalista havia sido depredado. Estavam errados.
A duas quadrasonde estávamos, uma multidão gritava após o carro ter atropelado dezenaspessoas e fugidomarcha ré, para depois acelerarfugafrente ao estacionamento onde eu estava.
Quatro ambulâncias chegaram rápido - pessoas ensanguentadas eram carregadas, parentes e amigos choravamdesespero e a polícia tentava, à força, isolar o local. Mais tarde soubemos: Heather Heyer, uma mulher32 anos, morreu atropelada, enquanto outras 19 pessoas ficaram feridas.
A cidade foi novamente evacuada por algumas horas. Anoiteceu, e a ruapedestres do centro histórico, que na véspera estava lotadaestudantes comendo e bebendo animados, antesentrar nas boates locais, estava deserta. Jornalistas e policiais eram os únicos a ir e vir, semprebusca"algo novo".
No local do atropelamento, um grupojovens acendia velas e trazia flores. Eles se organizaramroda e começaram a rezar, abraçados.
A chuva prevista para a manhã daquele sábado enfim começou a cair. Inicialmente leve, uma garoa, depois mais pesada - o que lentamente esvaziou o centro por completo.
Charlottesville estavaluto.
Na manhã deste domingo, moradores varriam calçadas e tentavam recomeçar. No café da manhã do hotel, a cozinheira conversava com a gerente.
"Manny ainda não acordou, coitado. Estáchoque. Sue (sua esposa) disse que ele não dorme tanto há 30 anos."