Como está a Máfia 25 anos após o atentado que matou juiz da 'Lava Jato' italiana:
Seus funerais levaram milharessicilianos às ruasPalermo numa mobilizaçãorepúdio ao crime organizado na ilha italiana.
"Não os mataram, suas ideias caminham sob nossas pernas". A frase se que lia nos cartazessacadas da capital siciliana naqueles dias se tornou um lema.
Mudança radical
As mortesFalcone e Borsellino marcaram o momento auge na estratégiaataques empreendida pela Cosa Nostra, a máfia siciliana do final dos anos 1980 e a princípios dos 1990 que deixou dezenasmortos.
Também representaram uma ruptura na percepção social da máfia. O professor Rocco Sciarrone, sociólogo especialista no fenômeno mafioso, se refere a aqueles ataques como um "trauma cultural".
"Foi uma mudança radical. Pela primeira vez na história da Itália, a Máfia se converteu num mal públiconível geral,um inimigo que tem que ser combatido", disse à BBC Mundo o professorSociologia da UniversidadeTurim.
"Antes disso, a Máfia ou não era combatida ou era combatida apenas por alguns setores da sociedade", acrescenta.
No entanto, esta transformação já tinha começado alguns anos antes graças ao trabalhocombate à MáfiaFacolne e Borsellino, entre outros.
O episódio mais notável foi chamado"MaxiprocessoPalermo", que ocorreu entre 1986 e 1987 e teve um saldo360 condenações e mais2.200 anosprisão acumuladospenas aos criminosos.
Foi um dos golpes mais duros contra a Cosa Nostra até aquela data.
O enfraquecimento
As mortesFalcone e Borsellino, quatro anos depois, foram vistas como uma vingança e uma demonstraçãoforça com a qual a Cosa Nostra pretendia amedrontar os poderes do Estado italiano.
Passados 25 anos, surgem perguntas inevitáveis: a Cosa Nostra alcançou seu objetivo final? Qual influência e poder ela tem hoje na Sicília?
Especialistas consultados pela BBC Mundo, o serviçoespanhol da BBC, concordam ao descrever a Máfia siciliana como uma organização enfraquecida que perdeu grande parteseu controle social na ilha.
Para Salvatore Lupo, um dos estudiosos do tema, os atentados contra Falcone e Borsellino tiveram um efeito paradoxal a longo prazo que, com os anos, acabou por implodir a própria organização criminosa.
"O auge terrorista da Máfia entre 1991 e 1993 levou, posteriormente, ao desastre (para a organização). Muitos líderes mafiosos terminaram na prisão. O grande capo Salvatore Riina foi preso; anos depois, seu sócio Provenzano também foi detido, e contatos com os Estados Unidos praticamente foram interrompidos", disse à BBC Mundo.
"O enfraquecimento da Máfia ocorreu pelos erros dos líderes mafiosos,arrogância e o fatoter enfrentado diretamente a repressão estatal", afirma o professorHistória da UniversidadePalermo.
A pressão policial, a criaçãonovas leis antimáfia (como a proteçãodelatores e o confiscobens mafiosos) foram ferramentas cruciais na mudança.
No Brasil, o juiz federal Sérgio Moro já comentou se inspirarGiovanni Falcone, que também se baseou nas confissões dos chamados "arrependidos", como ocorre nas delações premiadas.
E, assim como na Lava Jato, a operação italiana Mãos Limpas revelou nos anos 1990 casoscorrupção envolvendo políticos, empresários e mafiosos.
Em números
Os números são reveladores. Em 1991 e 1992, a taxahomicídios na Sicília era9,7 e 8,3 a cada 100 mil habitantes, muito acima da média italiana. Desde então, a queda foi constante e,2016, ficou0,7, num nível parecido ao resto das regiões italianas.
Palermo, eleita no início do ano como capital cultural italiana2018, é hoje uma cidade que tenta se afastar da imagem ruim associada à Máfia.
Em paralelo, no mesmo período foram detidas mais2 mil pessoas pelarelação com a Cosa Nostra e foram confiscados bens no valormaisUS$ 4 bilhões (R$ 12 bilhões) desde 1992.
A pressão policial aumentouforma considerável após a campanhaatentados dos anos 1990 e provocou a quedalíderes da organização, que perdeu algunsseus negócios mais rentáveis.
A atualidade
"A Máfia siciliana deixouser um ator significativo no mercado da droga. Quando Falcone investigava-a, a Cosa Nostra tinha um papel importantíssimo no tráfico. Mantinha conexões com provedores turcos, teve presençaNova York quando se discutia o fornecimentoheroína no mercado americano na costa leste. Tudo isso não existe mais", explica Federico Varese, professorcriminologia da UniversidadeOxford e especialistamáfias internacionais.
"Agora, a Máfia siciliana compra drogas para revendê-las a nível local, mas não é um ator internacional. Esse papel foi assumido pela Ndrangheta, a máfia da Calábria", afirma à BBC Mundo o autor do livro Mafia Life: Love, Death and Money at the Heart of Organised Crime ("Vida da Máfia: Amor, Morte e Dinheiro no Coração do Crime Organizado",tradução livre).
Diferentemente da Cosa Nostra, a Ndrangheta calabresa nunca realizou uma ofensivaatentados contra o Estado italiano. Manteve a discrição própria das organizações que se dedicam aos negócios ilícitos. Hoje, afirmam especialistas, é a máfia italiana mais rica, seguida da Camorra napolitana.
Na Sicília, a contínua pressão policial tornou difícil a reorganização da Cosa Nostra. "Ainda controlam parte do território da Sicília, mas com certa dificuldade. Eles têm dificuldades na horaarrecadar dinheiro. E muitosseus membros não ganham tanto dinheiro como costumavam. Estão com dificuldades financeiras", afirma Varese.
"O dinheiro que conseguem vêm atravésatividades tradicionaisextorsãotroca'proteção'. Mas não tanto como no passado", acrescenta.
Extorsões
O trabalho da sociedade civil foi determinante. Associações como Addio pizzo (literalmente, "Adeus à extorsão mafiosa"), nascida2004 e que agrupa maismil comerciantes e empresários que se recusam a pagar à Cosa Nostra, tornaram visível o repúdio ao grupo mafioso. No entanto, o pagamento do "pizzo" segue amplamente praticado na Sicília.
"Como confirma a maior parte das pesquisas sobre o fenômeno extorsivo, os empresários que aceitam (o pagamento) são ainda a grande maioria. Mas é difícil saber quantos pagam (propina)", explica um relatório sobre a máfia publicado pela FederaçãoAssociações contra a Fraude da Itália.
Para Salvatore Lupo, a atividade mafiosa "por excelência é a da extorsão", por permitir controlar atividades econômicas sobre um território limitado. "A (indústria de) construção e distribuição, os supermercados, o comércio... são os setores nos quais a máfia operaforma mais simples".
À manutenção das atividades mafiosas tradicionais soma-se mais discrição na formaatuar hoje. Os grandes atentados e assassinatosplena luz do dia são menos frequentes.
"A Máfia foi abatida e enfraquecida, e isso é muito importante destacar. Mas ela tenta se reorganizar, na minha opinião, e uma das estratégias mais importantes é a crescente presença da Máfia na economia legal. É o que na Itália chamamoszona cinza. Aqui o problema é a introduçãomafiosos com relaçõescumplicidade einteresses cruzados com expoentes da economia legal, com empresários", afirma Sciarrone.
No entanto, os limites entre a corrupção política e econômica e as atividades da Máfia propriamente dita nem sempre são claros.
"São gruposnegócios que têm recursos acumulados, inclusive do passado, e que continuam ativosnegócios que poderíamos chamarlimpos. Mas com métodos corruptos", sugere Lupo.
O especialista define a Máfia como uma "patologia da democracia" e insiste que os problemas e as carências democráticas que propiciaram o surgimento do crime organizado perduram na Sicília e no resto da Itália.
Por isso, apesar do otimismo diante do enfraquecimento da Cosa Nostra, os especialistas concordam queruína não foi completa. "Foi derrotada numa batalha importantíssima. A guerra, no entanto, continua", conclui Lupo.