Como está a Máfia 25 anos após o atentado que matou juiz da 'Lava Jato' italiana:

Giovanni Falcone e outros

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, O juiz Giovanni Falcone (centro) morreu23maio1992 num atentado da máfia Cosa Nostra
Lugar do atentado

Crédito, EPA

Legenda da foto, Cenáriodestruição após atentado que matou o juiz Falcone

Seus funerais levaram milharessicilianos às ruasPalermo numa mobilizaçãorepúdio ao crime organizado na ilha italiana.

"Não os mataram, suas ideias caminham sob nossas pernas". A frase se que lia nos cartazessacadas da capital siciliana naqueles dias se tornou um lema.

Mudança radical

AtivistasPalermo

Crédito, Getty/MARCELLO PATERNOSTRO

Legenda da foto, "E agora matem todos nós", diz bandeira que levam ativistas antimáfiaprotesto2007,Palermo

As mortesFalcone e Borsellino marcaram o momento auge na estratégiaataques empreendida pela Cosa Nostra, a máfia siciliana do final dos anos 1980 e a princípios dos 1990 que deixou dezenasmortos.

Também representaram uma ruptura na percepção social da máfia. O professor Rocco Sciarrone, sociólogo especialista no fenômeno mafioso, se refere a aqueles ataques como um "trauma cultural".

"Foi uma mudança radical. Pela primeira vez na história da Itália, a Máfia se converteu num mal públiconível geral,um inimigo que tem que ser combatido", disse à BBC Mundo o professorSociologia da UniversidadeTurim.

"Antes disso, a Máfia ou não era combatida ou era combatida apenas por alguns setores da sociedade", acrescenta.

No entanto, esta transformação já tinha começado alguns anos antes graças ao trabalhocombate à MáfiaFacolne e Borsellino, entre outros.

O episódio mais notável foi chamado"MaxiprocessoPalermo", que ocorreu entre 1986 e 1987 e teve um saldo360 condenações e mais2.200 anosprisão acumuladospenas aos criminosos.

Foi um dos golpes mais duros contra a Cosa Nostra até aquela data.

O enfraquecimento

Monumento

Crédito, AFP

Legenda da foto, Em 2012, aos 20 anos do atentado, um monumento foi erguidomemódia do juiz Giovanni FalconePalermo

As mortesFalcone e Borsellino, quatro anos depois, foram vistas como uma vingança e uma demonstraçãoforça com a qual a Cosa Nostra pretendia amedrontar os poderes do Estado italiano.

Passados 25 anos, surgem perguntas inevitáveis: a Cosa Nostra alcançou seu objetivo final? Qual influência e poder ela tem hoje na Sicília?

Especialistas consultados pela BBC Mundo, o serviçoespanhol da BBC, concordam ao descrever a Máfia siciliana como uma organização enfraquecida que perdeu grande parteseu controle social na ilha.

Para Salvatore Lupo, um dos estudiosos do tema, os atentados contra Falcone e Borsellino tiveram um efeito paradoxal a longo prazo que, com os anos, acabou por implodir a própria organização criminosa.

"O auge terrorista da Máfia entre 1991 e 1993 levou, posteriormente, ao desastre (para a organização). Muitos líderes mafiosos terminaram na prisão. O grande capo Salvatore Riina foi preso; anos depois, seu sócio Provenzano também foi detido, e contatos com os Estados Unidos praticamente foram interrompidos", disse à BBC Mundo.

"O enfraquecimento da Máfia ocorreu pelos erros dos líderes mafiosos,arrogância e o fatoter enfrentado diretamente a repressão estatal", afirma o professorHistória da UniversidadePalermo.

A pressão policial, a criaçãonovas leis antimáfia (como a proteçãodelatores e o confiscobens mafiosos) foram ferramentas cruciais na mudança.

No Brasil, o juiz federal Sérgio Moro já comentou se inspirarGiovanni Falcone, que também se baseou nas confissões dos chamados "arrependidos", como ocorre nas delações premiadas.

E, assim como na Lava Jato, a operação italiana Mãos Limpas revelou nos anos 1990 casoscorrupção envolvendo políticos, empresários e mafiosos.

Em números

Busca por Bernardo Provenzano

Crédito, Getty/FABRIZIO VILLA

Legenda da foto, Bernardo Provenzano, um dos chefes da Cosa Nostra, doi detido2006, após passar 42 anos como fugitivo

Os números são reveladores. Em 1991 e 1992, a taxahomicídios na Sicília era9,7 e 8,3 a cada 100 mil habitantes, muito acima da média italiana. Desde então, a queda foi constante e,2016, ficou0,7, num nível parecido ao resto das regiões italianas.

Palermo, eleita no início do ano como capital cultural italiana2018, é hoje uma cidade que tenta se afastar da imagem ruim associada à Máfia.

Em paralelo, no mesmo período foram detidas mais2 mil pessoas pelarelação com a Cosa Nostra e foram confiscados bens no valormaisUS$ 4 bilhões (R$ 12 bilhões) desde 1992.

A pressão policial aumentouforma considerável após a campanhaatentados dos anos 1990 e provocou a quedalíderes da organização, que perdeu algunsseus negócios mais rentáveis.

A atualidade

carro

Crédito, Getty/ MARCELLO PATERNOSTRO

Legenda da foto, Restos do carro onde morreu o juiz Falcone

"A Máfia siciliana deixouser um ator significativo no mercado da droga. Quando Falcone investigava-a, a Cosa Nostra tinha um papel importantíssimo no tráfico. Mantinha conexões com provedores turcos, teve presençaNova York quando se discutia o fornecimentoheroína no mercado americano na costa leste. Tudo isso não existe mais", explica Federico Varese, professorcriminologia da UniversidadeOxford e especialistamáfias internacionais.

"Agora, a Máfia siciliana compra drogas para revendê-las a nível local, mas não é um ator internacional. Esse papel foi assumido pela Ndrangheta, a máfia da Calábria", afirma à BBC Mundo o autor do livro Mafia Life: Love, Death and Money at the Heart of Organised Crime ("Vida da Máfia: Amor, Morte e Dinheiro no Coração do Crime Organizado",tradução livre).

Diferentemente da Cosa Nostra, a Ndrangheta calabresa nunca realizou uma ofensivaatentados contra o Estado italiano. Manteve a discrição própria das organizações que se dedicam aos negócios ilícitos. Hoje, afirmam especialistas, é a máfia italiana mais rica, seguida da Camorra napolitana.

Na Sicília, a contínua pressão policial tornou difícil a reorganização da Cosa Nostra. "Ainda controlam parte do território da Sicília, mas com certa dificuldade. Eles têm dificuldades na horaarrecadar dinheiro. E muitosseus membros não ganham tanto dinheiro como costumavam. Estão com dificuldades financeiras", afirma Varese.

"O dinheiro que conseguem vêm atravésatividades tradicionaisextorsãotroca'proteção'. Mas não tanto como no passado", acrescenta.

Extorsões

Protesto contra a máfia

Crédito, Getty/MARCELLO PATERNOSTRO

Legenda da foto, O "pizzo", ou extorsão mafiosa, continua sendo cobrado na Sicília

O trabalho da sociedade civil foi determinante. Associações como Addio pizzo (literalmente, "Adeus à extorsão mafiosa"), nascida2004 e que agrupa maismil comerciantes e empresários que se recusam a pagar à Cosa Nostra, tornaram visível o repúdio ao grupo mafioso. No entanto, o pagamento do "pizzo" segue amplamente praticado na Sicília.

"Como confirma a maior parte das pesquisas sobre o fenômeno extorsivo, os empresários que aceitam (o pagamento) são ainda a grande maioria. Mas é difícil saber quantos pagam (propina)", explica um relatório sobre a máfia publicado pela FederaçãoAssociações contra a Fraude da Itália.

Para Salvatore Lupo, a atividade mafiosa "por excelência é a da extorsão", por permitir controlar atividades econômicas sobre um território limitado. "A (indústria de) construção e distribuição, os supermercados, o comércio... são os setores nos quais a máfia operaforma mais simples".

À manutenção das atividades mafiosas tradicionais soma-se mais discrição na formaatuar hoje. Os grandes atentados e assassinatosplena luz do dia são menos frequentes.

"A Máfia foi abatida e enfraquecida, e isso é muito importante destacar. Mas ela tenta se reorganizar, na minha opinião, e uma das estratégias mais importantes é a crescente presença da Máfia na economia legal. É o que na Itália chamamoszona cinza. Aqui o problema é a introduçãomafiosos com relaçõescumplicidade einteresses cruzados com expoentes da economia legal, com empresários", afirma Sciarrone.

Armas

Crédito, Getty/MARCELLO PATERNOSTRO

Legenda da foto, Em 2010, a polícia italiana confiscou armas usadas pela Cosa Nostra

No entanto, os limites entre a corrupção política e econômica e as atividades da Máfia propriamente dita nem sempre são claros.

"São gruposnegócios que têm recursos acumulados, inclusive do passado, e que continuam ativosnegócios que poderíamos chamarlimpos. Mas com métodos corruptos", sugere Lupo.

O especialista define a Máfia como uma "patologia da democracia" e insiste que os problemas e as carências democráticas que propiciaram o surgimento do crime organizado perduram na Sicília e no resto da Itália.

Por isso, apesar do otimismo diante do enfraquecimento da Cosa Nostra, os especialistas concordam queruína não foi completa. "Foi derrotada numa batalha importantíssima. A guerra, no entanto, continua", conclui Lupo.