Como covid-19 deve acelerar epidemiademência no mundo:

Legenda do áudio, Em áudio: Como covid-19 deve acelerar epidemiademência no mundo

Já existe uma epidemiademência no mundo. Segundo a Organização MundialSaúde (OMS), há hoje 50 milhõespessoas vivendo com demência no planeta, e esse número deve ultrapassar 150 milhões2050.

A triste novidade é que a pandemiacovid-19 deve provocar um aumento nesses índices.

Em entrevista à BBC News Brasil, o neurologista especializadodemência e professor da Universidade São Camilo Fábio Porto descreve o impacto negativo da pandemia sobre a saúde cognitivaseus pacientes e conta o que os estudos mais recentes nos dizem sobre o assunto.

Sheila Hancock
Legenda da foto, 'Tem gente que aprendeu a falar um novo idioma. Eu não fiz nada. Fiquei parada, olhando para as paredes. Subi as escadas e me perguntei, o que vim fazer aquicima?', disse atriz britânica Sheila Hancock sobre seus dias na pandemia

Mas o médico não nos traz apenas más notícias. Porto recomenda formasse mitigar o problema e lembra que a pandemia nos oferece, além das dificuldades, uma oportunidade únicaaprender.

E ressalta que a sociedade precisa começar a falar sobre a demência. "Não pode mais ser tabu falar sobre esse assunto."

Impactos do isolamento na saúde neurológica do idoso

O ser humano é um animal social, não foi programado para viverisolamento. Então, a obrigaçãonos isolarmos causa grande estresse, diz Fábio Porto à BBC News Brasil.

Sobre a experiênciaisolamento relatada pela atriz Sheila Hancock no início desta reportagem, o especialista pondera:

"Não é possível que isso não seja ruim para o cérebro. Quebrar o contato, não ter nenhum estímulo, nenhum desafio cognitivo. Isso não é natural, e as consequências acontecem."

Cérebropaciente com Alzheimer, mostrando degeneração cerebral

Crédito, Science Photo Library

Legenda da foto, Estudos mostram uma grande prevalênciadeclínio cognitivoquem teve covid

Como especialistademência, Porto tem podido observarperto o impacto do isolamento sobre os mais velhos.

"Tem sido muito amargo para os idosos. Eu trabalho com idosos. E existe uma coisa que o idoso temmenor quantidade: são as reservas cognitivas."

Mas como assim?

A reserva cognitiva é como um bancoideias, conhecimentos, saberes e afetos que acumulamos ao longo da vida. E, quanto mais acumulamos, mais temos recursos para resistir quando uma doença degenerativa se instala no nosso cérebro.

Isso acontece porque, a cada novo conhecimento que adquirimos, abrem-se novas sinapses, ou seja, novas ligações entre os neurônios. As sinapses são como estradas. Quanto mais estradas, mais possibilidadesalcançarmos nosso destino.

Por exemplo, quando uma pessoa com bom vocabulário não consegue encontrar uma palavra, substitui essa palavra por outra.

Mas na população idosa, as reservas cognitivas são mais frágeis, podem ser "gastas" muito mais rapidamente, explica Porto.

"Vários idosos que estavam bem, porque caminhavam, faziam fisioterapia, faziam pilates, pararam. De uma hora para outra. Frequentemente, esses pacientes descompensam do pontovista neuropsiquiátrico", ele afirma.

"O que eu mais tenho visto aqui, e eu tenho um viés porque eu trabalho com demência, são famílias dizendo, olha, o meu pai, a minha mãe, estava bem até começar a pandemia. Na pandemia, comecei a ver que a memória estava ruim."

Isso não quer dizer que todos esses pacientes desenvolveram demência após o início da pandemia, ele ressalta.

"Ou a família começou a ficar mais tempo junto com aquele idoso e percebeu um problema que já existia, ou a pessoa tevemudarrotina drasticamente e deixoufazer um montecoisas que estimulavam a cognição e promoviam a saúde."

Como a covid-19 afeta o cérebro?

O isolamento social é um efeito indireto da pandemiacovid-19, e por isso mais difícilavaliar. Vejamos o que dizem estudos que tentam medir o impacto direto da pandemia e do vírus sobre a saúde cognitiva da população.

"Em quem teve covid, os estudos mostram uma grande prevalênciadeclínio cognitivo", diz Porto.

"O distúrbio cognitivo pode ser leve. A pessoa fica mais desatenta, menos motivada, mais indecisa", continua ele. "Ou a pessoa pode apresentar demência."

Ilustração conceitual mostra paciente perdendo capacidade cognitiva

Crédito, Science Photo Library

Legenda da foto, 'Vários idosos que estavam bem, porque caminhavam, faziam fisioterapia, faziam pilates, pararam. De uma hora para outra. Frequentemente, esses pacientes descompensam do pontovista neuro-psiquiátrico', diz especialista

Um estudo com 236 mil pessoas que tiveram covid publicado na prestigiada revista Lancet Psychiatryabril deste ano revelou que, no períodoaté seis meses após serem infectadas, 12% dessas pessoas receberam, pela primeira vez, um diagnósticodoença neurológica ou psiquiátrica.

O estudo também revela que, no mesmo período, 0,67% dos 236 mil pacientes estudados tiveram um diagnósticodemência, embora não se saiba quantos desses eram diagnósticos novos.

Comentando esse estudo, Porto pondera: "A prevalênciademência nesse grupo foi0.67%. Esses estudos não selecionam por idade, mas quem tem demência por covid geralmente é idoso."

São pessoas que, segundo ele, provavelmente têm menos reservas cognitivas e por isso não toleram muita agressão, explica. "Um fator desencadeante, uma agressão como a covid, é o empurrãozinho que faltava para a pessoa despencar."

O estudo identificou ainda um importante fatorrisco para a demência pós-covid: a incidênciadelirium (alucinações) associado à covid.

"Esse estudo diz que, se você teve covid, precisou ser internado na UTI e teve delirium (que é encefalopatia), a chancevocê desenvolver demência é quatro vezes maior."

De novo, lembra o médico, o estudo não discrimina por idade. "Mas quem tem delirium normalmente são pessoas mais velhas."

Apesar das estatísticas preocupantes, Porto diz quesuas aulas tenta chamar a atenção dos alunos para a grande oportunidade que a pandemia também oferece à ciência:

"Estamos aprendendo algumas coisas. Por exemplo, a pandemia vai ser uma chance únicase entender o efeito do estresse no cérebro", diz.

Outro exemplo: "O coronavírus provoca uma inflamação que inclui o sistema nervoso central. Isso está implicado nas alterações cognitivas ecomportamento", explica. "Pois bem, como a inflamação afeta o comportamento?"

E ainda: "Quão deletério é o isolamento social? Essa noçãoque a reserva cerebral se esvai com mudanças comportamentais e ambientais, não estava claro o quanto isso é relevante para a cognição."

Como proteger idosos dos efeitos do isolamento?

Os resultados desse gigantesco experimento populacional não controlado criado pelo isolamento social impostovários países do mundo serão compreendidos com mais clareza no futuro.

Nesse meio tempo, Porto e colegas médicos ressaltam que é preciso proteger idosos e outros grupos vulneráveis dos seus efeitos negativos. E as soluções passam por uma mesma via: a tecnologia digital.

"Temospromover a inclusão digital, a estimulação cognitiva e o exercício físico entre os idosos", diz. "A inclusão digital do idoso vai permitir o contato, mesmo que à distância."

Garantido o acesso à internet, é preciso também buscar atividadesgrupo que atuem sobre alguma função cognitiva.

"Tudo o que é coletivo e estimula a cognição é válido. Bingo, jogos, filme e conversa, música. Estimulo cognitivo atrelado a alguma coisa que dê prazer", diz o médico. "Muito provavelmente, essas são algumas das coisas que fizeram falta (durante o períodoisolamento)."

Outro ponto fundamental: fazer exercícios. "Quem consegue fazer exercício via inclusão digital ameniza o efeito deletério do isolamento", diz Porto.

E sobre esse assunto o neurologista entende bem.

Casal dançandoimagemarquivo

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, 'Tudo o que é coletivo e estimula a cognição é válido. Bingo, jogos, filme e conversa, música. Estimulo cognitivo atrelado a alguma coisa que dê prazer', diz médico

"A minha tesedoutorado foi sobre os efeitos do exercício físico no cérebro, sou um profundo defensorse fazer exercício físico para melhorar a função cerebral."

"O exercício melhora o metabolismo, melhora o volume do hipocampo, que é a região da memória. Melhora a saúde vascular, melhora os neurotransmissores. O exercício é um remédio que deveria estar no arsenal terapêuticotodo médico."

Ele continua: "Na minha tese, os pacientes andaram 50 minutos duas vezes na semana. Isso é superpouco, mas já fez diferença".

E nunca é tarde demais. "Todo mundo na minha tese tinha problemamemória e tinha mais65 anos."

Em tempospandemia, no entanto, caminhar requer aqueles cuidados adicionais. "Mas lógico, usar máscara, manter a distância. Usar o bom senso."

Precisamos falar sobre demência

Essas medidas não protegerão nossa sociedade do inevitável: a epidemiademência que já vivemos hoje.

Fábio Porto, que trabalha voluntariamente na Associação BrasileiraAlzheimer e Outras Demências (ABRAz), diz que para lidarmos melhor com a demência, todos teremosaprender mais sobre ela.

"É o que chamopsicoeducação, ou seja, como lidarmaneira não farmacológica com pessoas que têm distúrbioscomportamento."

"Na ABRAz, a gente promove psicoeducação nessa área. Envolve estudo, muita conversa, entendimento e aceitação: entendimento, a coisa racional, e aceitação, no domínio emocional."

No final dessa jornada, diz o médico, você talvez descubra algo surpreendente: "Existe qualidadevida, mesmo com demência".

Línea

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