Há maisum século, Brasil adotava quarentena e rastreamento contra doenças vindas do exterior:
A própria Hospedaria do Brás, onde hoje funciona o Museu, foi inaugurada devido a um surtovaríolaSão Paulo,1887 — na ocasião, para proteger os novos imigrantes dos casos já registradosoutro alojamento, o do Bom Retiro.
O novo prédio, uma das maiores hospedarias da Américas, foi construído fora dos então limites da cidade, como uma formaevitar o contato da população local com doenças que potencialmente poderiam ser trazidasoutras partes do mundo. E também o contrário, para preservar a forçatrabalho saudável que chegava.
Mas essas não foram medidas pontuais na história do Brasil, como mostram o vasto registrodocumentos históricos. Desde meados do século 19, com a intensificação do trânsitopessoas pelo mundo, a preocupação com as fronteiras era uma prioridade.
Em 2020, com o início da pandemiacovid-19, o debate sobre medidas para proteger as "entradas"países voltou ao radar.
Alguns, como a Coreia do Sul, conseguiram implementar medidas eficazesrastreamento e controleaeroportos, como quarentena obrigatória, aplicativo com monitoramentopassageiros e testesmassa nos terminais.
Outros, como o Brasil, não adotaram medidas semelhantes. Sódezembro2020 (ou seja, nove meses após o início da pandemia) o governo passou exigir que passageiros vindos do exterior exibissem testes negativos para covid-19 nos aeroportos.
História da quarentena no Brasil
Ao menos desde 1810, ainda como colônia portuguesa, o Brasil se utilizavaquarentena nos portos e inspeçãonavios como uma política pública para impedir a chegadadoenças ao território.
Havia ainda naquele tempo o tráficoafricanos, que forçadamente eram retirados da África para serem escravizados por aqui. Ao longo do século 19, essas medidas também se estenderam aos navios queforma cada vez mais frequente traziam levasimigrantes, principalmente da Europa.
Com esses novos trabalhadores, interessantes ao governo para "europeizar" o Brasil, a preocupação sanitária se intensificava.
"Por um lado, você tem a preocupaçãoevitar que quem chegasse pudesse trazer doenças. Por outro lado, você também tem, especialmente na corte, na cidade do Rio, a preocupaçãoque aqueles sujeitos saudáveis não fossem contaminados pelas epidemias daqui", relata o historiador Rui Fernandes, professor da Universidade do Estado do RioJaneiro (Uerj) e coordenador no CentroMemória da Imigração da Ilha das Flores.
Em 1829, após a Independência, o país aprovou um regulamento para a inspeçãosaúde pública nos portos, que tinha por atribuição verificar o estado sanitário das embarcações e decidir se estavam desimpedidas ou deveriam aguardar quarentena.
Navios que vinhamlocais da Europa onde havia surtosdoenças como a cólera precisavam passar dias sendo inspecionados por médicos. No Rio, as embarcações deveriam ficarancoradouros como oJurujuba,Niterói, onde também havia o Hospital MarítimoSanta Isabel.
Em um relatório do Império1856, o ministro dos Negócios dizia que "estabelecimentos desta natureza sãoindispensável necessidadeportos tão frequentados como este da capital".
Locais para quarentenaimigrantes
Também já havia a defesadiminuir o usoquarentenas como método e a necessidadeinvestimentotecnologiasdesinfecção e construçãolazaretos, locais para onde poderiam ser levados os doentes.
O principal lazareto, o da Ilha Grande, no Rio, ficaria pronto1886, logo após estourar uma epidemiacólera na Europa.
Foi ali que ficou focado o serviço para quarentenanavios que vinhamportos como osTriestre, na Itália, e Fiume, na atual Croácia, considerados locaissurto da epidemia, e atéUruguai, Argentina e Chile, devido ao aparecimento da doença nos países vizinhos.
"Muitas vezes a própria tripulação já informava ao porto que aquele navio estava infectado. E aí nesse caso não era permitido que ele nem chegasse à BaíaGuanabara, ele já era levado lá pra Ilha Grande", explica Fernandes.
Com o telégrafo, os portos da América também ficavam sabendo rapidamenteepidemias.
Mas as quarentenas não ficaram restritas aos navios. As medidas também se estenderam às próprias hospedarias, como a do Brás,São Paulo, e da Ilha das Flores, no Rio.
"Temos registrosquarentenas que geraram conflitos entre imigrantes e autoridades públicas. Eles chegavam obviamente angustiados, com medo, num país novo e, se tivessem algum tipodoença, eram separados atéfamiliares", diz Trindade, do Museu da ImigraçãoSão Paulo.
Na Ilha das Flores, hoje conectada ao continente na cidadeSão Gonçalo (RJ), o local servia também para que imigrantes saudáveis não precisassem frequentar o centro do Rio, com condições sanitárias precárias, antesseguir para lavouras e colônias no interior.
"Relatórios administrativos buscavam enfatizar que essa política sanitária era exitosa. Mas quando a gente cruza com alguns da imprensa do período, você identifica que nem sempre era exitoso", destaca Fernandes.
Desinfecção
Já no final do século 19, um relatório do governo paulista apontava que a cólera que devastou partes da Europa chegou ao Brasil, apesar das quarentenas. A "culpa" foi atribuída às bagagens.
Segundo explica Trindade, com base nos registros do Museu da Imigração, foi quando se intensificaram medidasse desinfectar roupas e malas para combater essa e outras doenças. Também havia cada vez mais uma preocupação com as perdas econômicas causadas pelas quarentenas.
Na Hospedaria do Brás, o sistemadesinfecçãobagagens foi instalado1899.
Num surtofebre amarela no interiorSão Paulo, também foram instaladas nas estações ferroviárias estufas e pulverizadores para desinfecçãobagagens e passageiros. Pessoas que embarcavamcidades assoladas por algum surto eram colocadasum vagão específico, já que não se sabia que a doença não era transmissívelpessoa pra pessoa.
Com avanço dos estudos bacteriológicos, surgiu o uso do aparelhogás Clayton.
Em artigo na revista História, Ciências, Saúde, da Casa Oswaldo Cruz, a historiadora Fernanda Rebelo relata: "uso do gás sulfuroso seco, produzido sob pressão do aparelhoClayton, nas condiçõesque foi empregado (grauconcentração8%), foi perfeitamente eficaz na desinfecção dos navios, para tornar inofensivos os objetos contaminados pelos micróbios da febre tifoide, da cólera e da peste".
"Além disso, o processo permitia destruir todos os ratos e insetos como pulgas, percevejos, baratas."
Com algumas dessas novas tecnologias, o governo começou a abolir as quarentenasnavios. Como mostram documentos da época, imigrantes desembarcados também passaram a gozarliberdadelocomoção desde que indicassem a residênciadestino, onde seriam visitados por funcionários da Inspetoria GeralSaúde do Porto do RioJaneiro, durante o prazoincubação da doença registradas nos navios.
Dentro do Brasil
As medidas para evitar o espalhamentodoenças também ocorriam dentro do Brasil.
Durante a epidemiacólera que atingiu a parte paulista do Vale do Paraíba no final1894, registrosjornais da época mostram que o tráfego ferroviário entre os estadosSão Paulo e RioJaneiro foi interrompido, para evitar a propagação da doença à então capital federal.
Empresários paulistas criticavam as medidas, que prejudicavam o comércio e a indústria. Por vezes, minimizavam a força da epidemia e faziam duras críticas à administração. A interrupção durou alguns meses, mas depois foi substituída por medidas como passaporte sanitário, desinfecçãopassageiros e proibiçãocomércioprodutos como carne e leite.
Para o historiador Henrique Trindade, a política sanitária do período "contribuiu para que algumas epidemias do final do século 19, do começo do século 20, não fossem tão mortíferas quanto poderiam ser".
Mas também não impediu que doenças se alastrassem pelo Brasil, como a cólera,1899. O surto, porém, fez o país criar as suas duas mais importantes instituiçõespesquisasaúde: Fiocruz e Butantan.
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