‘Como escapeipadre que me mandava confessar após abusos sexuais':
Naqueles anos conturbadosassassinatos e desaparecimentos políticos, a comunidade criada por esse padre carismático na paróquiaEl Bosque,Santiago, oferecia alguma proteção.
"Para um jovem, era como a abelha e o mel - um doceum mundodificuldades, quando você estava enfrentando problemas na família", diz o médico.
Como o pai tinha saídocasa, Hamilton era um adolescente vulnerável - presa fácil para um agressor experiente.
E, como um jovem idealista, acreditava que tinha apenas duas escolhas:
"Se juntar ao povo na luta contra Pinochet, principalmente por meio da violência, ou seguir a estrada que a Igreja Católica mostrou - o caminho dos santos, da paz, para se tornar a vozJesus. Eu queria estudar Medicina, então meu caminho era da não-violência", conta Hamilton.
Mas, embora a Igreja Católica tivesse um papel fundamental no apoio às vítimas da ditadura, alguns padres acreditavam que Pinochet era o salvador do Chile - Karadima era um deles.
Hamilton foi convidado a participar da Ação Católica, um grupojovens que se reunia na paróquiaEl Bosque para ouvir Karadima falar sobre heroísmo, os santos e a necessidadeser humilde e obediente. Esse adolescente impressionável se sentiu especial, como se tivesse sido escolhido.
Foi então que os episódiosabuso sexual começaram.
"Você não esperava isso - era algo totalmente confuso. Não era possível que esse homem santo estivesse fazendo tudo isso por causasua perversão sexual. Não era possível", relata Hamilton, lembrando-sesua perplexidade.
"Obviamente, quem estava errado era eu..."
E Karadima, exercendo uma pseudo-espiritualidade tóxica, não dissuadiu Hamilton do sentimentoculpa.
"Uma coisa terrível é que, toda vez que ele abusavamim, me mandava confessar com outro padre."
"Ele botou toda a culpamim. E esse outro padre, que sabiatudo, ficava sempresilêncio quando eu confessava sobre Karadima. Apenas me dizia: 'Seja paciente, não se preocupe'."
Na paróquiaEl Bosque, Karadima era respeitado por aqueles que o rodeavam. Ele "enfeitiçou" seus acólitos - membros que auxiliam os padres a realizar as ações litúrgicas - e treinou dezenasjovens para o sacerdócio. Quatroseus protegidos se tornariam bispos.
A influênciaKaradima sobre Hamilton - e os abusos - continuaram por duas décadas. Não pararam nem mesmo depois que o médico se casou e teve filhos.
Após 14 anos fazendo psicoterapia, três vezes por semana, ele consegue entender agora a dinâmica desse relacionamento abusivo.
Mas, quando jovem, se sentia obrigado a obedecer ao agressor. Quando ia jantarEl Bosque com a esposa, Karadima pedia a ele que se retirasse da mesa e o acompanhasse até o andarcima, sob o pretextoque tinha algum problemasaúde e precisavaajuda médica.
"Muitas vezes eu tentei me afastarKaradima, mas, sempre que eu tentava, ele fazia uma espéciejulgamento com dois ou três bispos e três ou quatro sacerdotes. Eles me colocavamum quarto e diziam que o diabo estava dentromim."
A prática era conhecida como "correção fraterna"El Bosque - um mecanismo poderoso que alegava a possessão do diabo, e costumava trazer os membros desobedientesvolta ao rebanho do padre.
Em 2004, Hamilton finalmente rompeu com Karadima.
"Senti que meus filhos estavamperigo. Especialmente meu menino", diz ele.
O sacerdote começou a perseguir o médico, enviando padres e bispos para falar comfamília e seu chefe.
Hamilton denunciou Karadima às autoridades da Igreja. E, embora não soubesse disso na época, foi o segundo homemdois anos a fazer uma queixaabuso sexual contra o párocoEl Bosque.
Mas houve um silêncio ensurdecedor da Igreja Católica. Não houve uma investigação formal por anos, até que as provas contra Karadima se tornaram esmagadoras.
Em 2009, o casamentoHamilton terminou e ele pediu a anulação do matrimônio. No pedido, citou os episódiosabuso sexual e o controle que Karadima tinha sobre ele como motivos.
A Igreja colocou pressão sobre o médico - que chegou a receber a visita do clérigo, pedindo para ele suspender o processoanulação.
"Eles me pediram para assinar uma declaração que dizia que eu não era menoridade quando conheci Karadima, e que era um relacionamento entre dois homens."
Ele se recusou. "Eu não podia assinar porque não era verdade", diz ele.
O médico conseguiu a anulação. E foi neste momento, quando os detalhes da anulação vazaram, que a Igreja Católica se viu obrigada a investigar Fernando Karadima.
Nessa época, Hamilton tinha feito contato com outras vítimas do abuso do pároco. Em 2010, eles fizeram uma denúncia a um promotorJustiça. Sabiam que o padre não iria para a cadeia por causa do estatutolimitações do Chile - lei que estabelece um períodotempo depoiscometido o suposto crime para que seja apresentada denúncia -, mas não queriam encobrir os fatos. Foi assustador.
"Nossos nomes estavam na imprensa - nós éramos (vistos como) terríveis. Pensei que alguém ia tentar me matar - colocar uma bomba debaixo do meu carro ou sabotar os freios na descidauma montanha. Esse tipocoisa acontecia no Chile sob a ditaduraPinochet. E Karadima era um dos carasPinochet - ele era amigotodos os ex-generais dele. E tinha muito poder - até hoje."
Atualmente, Fernando Karadima tem 88 anos. E moraum conventoSantiago. Em 2011, o Vaticano o considerou culpado por abusar sexualmentemenores, às vezes pela força.
Ele foi condenado a uma vidapenitência e oração, e proibidoter contato com ex-párocos ou fiéis, assim comorealizar qualquer ato público pastoral.
Mas por que demorou tanto? O que impediu o então arcebispoSantiago, cardeal Francisco Javier Errazuriz,abrir uma investigação eclesiástica sobre o comportamentoKaradima depoister recebido a primeira denúnciaabuso pelo menos sete anos antes?
"Infelizmente, avaliei que as acusações não eram plausíveis na época", disse ele à imprensa2010.
O caso Karadima chocou o Chile. O ressentimento contra a Igreja Católica fervilhou até 2015. Quando o Papa Francisco indicou Juan Barros como bispoOsorno - um dos acólitosKaradima, que supostamente o protegera - os chilenos ficaram furiosos.
Em janeiro2018, o Papa visitou o Chile e afirmou que Barros estava sendo alvodifamação, o que provocou enorme indignação.
Após deixar Santiago, o pontífice foi forçado a responder aos críticos e enviou dois emissários ao Chile para investigar os crimes sexuais.
A história que acabou sendo revelada provocou uma profunda crise na Igreja Católica. Os enviados do Vaticano redigiram um relatório2,3 mil páginas, e o Papa reconheceu uma "culturaabuso" no Chile. Cinco bispos renunciaram - incluindo Juan Barros.
Enquanto isso, promotores apreenderam, pela primeira vez no Chile, documentos da Igrejauma sériegrandes operações.
As autoridades chilenas estão investigando 119 casosabuso sexual e seu acobertamento pela Igreja. Das 178 vítimas identificadas até agora, quase metade eram menores na épocaque os supostos abusos foram cometidos. O arcebispoSantiago, cardeal Ricardo Ezzati, foi chamado pelos promotores para testemunhar.
Embora a investigação tenha ido além do caso Karadima e seu fiel círculo social, o compromisso das entidades chilenasgarantir justiça para as vítimasabuso sexual clerical encorajou mais vítimas do religioso a se apresentarem.
No mês passado, o padre Francisco Javier Ossa Figueroa passou duas horas prestando depoimento sobre o que aconteceu com ele na paróquiaEl Bosque, no fim dos anos 1980.
"Foi difícil desenterrar tudo, mas sei que isso pode ajudar muita gente. Você precisa ser corajoso, porque não fui apenas como padre testemunhar - era eu, Francisco, a pessoa que foi pessoalmente ferida por isso, mas eu sinto como se um peso tivesse sido tiradomim, e que eu não estou sozinho", conta.
Na esteira das revelações explosivas sobre a Igreja Católica no Chile, o padre foi chamado para se encontrar com o Papa Francisco,Roma, e discutir o caso.
Hamilton também foi convidado pelo Vaticano, juntamente com os dois homens que também contribuíram para derrubar Fernando Karadima2011: Jose Andrés Murillo e Juan Carlos Cruz.
Na ocasião, o Papa Francisco admitiu que cometeu "erros graves"julgamento sobre os acontecimentos no Chile, mas Hamilton não ficou impressionado.
"O Papa não nos falou nada. Ele não nos contou nada sobre o que faria, apenas nos pediu para orar por ele."
Os anosterapia ajudaram Hamilton a se recuperar da provação, mas o experiente cirurgião diz que se sacrificou muito ao tornar suas denúncias públicas.
Como consequência, ele não é mais professor universitário, tampouco chefecirurgia.
O que ele quer é que a Igreja Católica exponha os homens poderosos que ainda estão na hierarquia católica do Chile para assumir a responsabilidade pelo o que fizeram.
"Eles quase mataram meu coração, minha alma... Quando você mata a alma - e eu posso te dizer isso como médico - você começa a matar o corpo. Crianças que foram abusadas viverão 20 anos menos, então o que estamos falando? Eles são criminosos."