'Monstro, prostituta, bichinha': como a Justiça condenou a 1ª cirurgiabetnacional iosmudançabetnacional iossexo do Brasil:betnacional ios

Imagembetnacional iosWaldirenebetnacional ioslaudo do IML, 1976

Crédito, BBC Brasil

Legenda da foto, Fotografiabetnacional iosWaldirenebetnacional ioslaudo do IML, feitabetnacional ios1976; ela teve negado o pedido do habeas corpus preventivo para não ser submetida ao exame (a marca protegendo os seios foi feita pela BBC Brasil)

Cinco anos antes,betnacional iosdezembrobetnacional ios1971, Waldirene havia sido submetida a uma cirurgia para mudançabetnacional iossexo genital –betnacional iosmasculino para feminino. Ou melhor, "para a fixação do seu verdadeiro sexo, que sempre foi feminino", segundo ela mesma. Essa é considerada a primeira operação do tipo feita no Brasil.

A cirurgia foi realizada no Hospital Oswaldo Cruz,betnacional iosSão Paulo, por Roberto Farina, naquele momento um dos mais importantes cirurgiões plásticos do país. Antes disso, Waldirene foi acompanhada durante dois anos por uma equipe interdisciplinar do Hospital das Clínicas, que a identificou como transexual, condiçãobetnacional iosque o gênero é diferente do sexo físico.

Em outras palavras, é como ser mulher, tendo nascidobetnacional iosum corpo masculino – ou o contrário. A cirurgia é, assim, uma formabetnacional iosadequar o corpo ao verdadeiro gênero – quando assim desejado pelo indivíduo.

"Minha vida antes da operação era um martírio insuportável por ter que carregar uma genitália que nunca me pertenceu. Depois da operação fiquei livre para sempre – graças a Deus e ao dr. Roberto Farina – dos órgãos execráveis que me infernizavam a vida, e senti-me tão aliviada que me pareceu ter criado asas novas para a vida", escreveu Waldirene na época.

Tudo correu bem. Até que,betnacional ios1976, o Ministério Públicobetnacional iosSão Paulo descobriu a intervenção médica e denunciou Farina por lesão corporal gravíssima, sujeita a penabetnacional iosdois a oito anosbetnacional iosprisão.

Waldirene foi considerada vítima, àbetnacional iosprópria revelia. Os órgãos masculinos retirados na operação foram tidos como um "bem físico" tutelado pelo Estado, "inalienável e irrenunciável". "Dizer-se que a vítima deu consentimento é irrelevante", afirmou relatório policial sobre o caso.

"Não há nem pode haver, com essas operações, qualquer mudançabetnacional iossexo. O que consegue é a criaçãobetnacional ioseunucos estilizados, para melhor aprazimentobetnacional iossuas lastimáveis perversões sexuais e, também, dos devassos que neles se satisfazem. Tais indivíduos, portanto, não são transformadosbetnacional iosmulheres, e simbetnacional iosverdadeiros monstros", denunciou o procurador Luizbetnacional iosMello Kujawskibetnacional iospedidobetnacional iosinstauraçãobetnacional iosinquérito policial.

"Eu não tinha lei a meu favor, era tudo contra mim. Eu era tida como puta. Não consigo me desvencilhar dessas coisas até hoje", diz Waldirene, agora uma senhorabetnacional ios71 anos, ainda manicure no interiorbetnacional iosSão Paulo.

"Eu fui pioneira. Segurei bandeira até para quem não me conhece." Ela não quis ser fotografada hoje por medo do retorno do "pesadelo" que viveu no passado. Para preservá-la, a BBC Brasil omitiu o nome da cidade onde vive. Já Roberto Farina faleceubetnacional ios2001, aos 86 anos.

Waldirene fantasiada

Crédito, Arquivo pessoal

Legenda da foto, Waldirene no Carnaval, na décadabetnacional ios1970; ela passou toda a infância dormindobetnacional iosum quarto separado dos irmãos e irmãs

A garota brasileira

Waldirene nasceubetnacional ios1945, no interiorbetnacional iosSão Paulo. O pai, caminhoneiro, e a mãe, donabetnacional ioscasa, tiveram nove filhos: "quatro meninos, quatro meninas e eu", diz ela.

Os meninos dormiambetnacional iosum quarto, as meninasbetnacional iosoutro. Já para Wal (seu apelido), o pai construiu um dormitório separado, onde antes ficava a despensa da casa. É ali que ela dorme até hoje – agora, a única moradora da residência.

"Eu sempre fui Waldirene", fala ela. Na infância, preferia as brincadeirasbetnacional iosmenina. Enquanto os irmãos fingiam que eram caubóis, ela era a mocinha. "Queria ser igual às minhas irmãs. Por que eu nasci como eu era?"

Na adolescência, a feminilidade foi se acentuando. Não tinha pelos no rosto,betnacional iosvoz não engrossou,betnacional ioscintura era levemente marcada. Além disso, passou a se interessar por homens.

Os problemas com a família também foram aumentando. O pai, inclusive, tentou tratar o filho "meio-termo" com hormônios masculinos. Até que Wal decidiu se afastar da família e foi viverbetnacional iosuma cidade próxima, também no interiorbetnacional iosSão Paulo, ganhando a vida como manicure.

Era apaixonada pelo mundo do cinema. Um dos seus passatempos era recortar fotosbetnacional iosatores e atrizes estrangeirosbetnacional iosrevistas da época. Foi assim que conheceu a históriabetnacional iosCoccinelle, dançarinabetnacional ioscabaré francesa que nasceu homem e foi operada. Wal passou a desejar para si a mesma metamorfose.

Sua transformação começou quando um médico do interior lhe orientou a procurar a endocrinologista Dorina Epps no Hospital das Clínicasbetnacional iosSão Paulo,betnacional ios1969. "Logo que ela me viu, quis me ajudar. Foi muito minha amiga, muito atenciosa, devo muito a ela", lembra Waldirene.

Dorina Epps, hoje com 94 anos e impedidabetnacional iosfalar por problemasbetnacional iossaúde, foi pioneira nos estudosbetnacional iosgênero no Brasil. Nas Clínicas, sob direcionamento dela, Waldirene foi extensivamente examinada. Também passou a frequentar sessõesbetnacional iosterapia semanais. Logo, veio o laudo: "Trata-sebetnacional iospaciente que demonstra possuir personalidade com características claramente femininas, estruturadas desde a infância".

Em um primeiro momento, foi aventada a possibilidadebetnacional ioslevar Waldirene para ser operada nos Estados Unidos – naquela época, a cirurgia só estava disponível no exterior. Foi então que o caso chegou a Roberto Farina, professor da Escola Paulistabetnacional iosMedicina. O médico já era pioneirobetnacional ioscirurgias urogenitais, mas nunca tinha feito operaçõesbetnacional iosmudançabetnacional iossexo.

"Diante do caso, adquiri literatura especializada e realizeibetnacional ioscadáveres várias operações plásticas com a finalidadebetnacional iosalcançar conhecimento necessário para realizar a operaçãobetnacional iosWaldir", disse o médicobetnacional iosdepoimento judicial. A cirurgia consiste na retirada dos órgãos sexuais masculinos e na construçãobetnacional iosuma vagina.

Waldirene não temeu o pioneirismo. "Eu não tinha medo da operação, só queria resolver o meu problema", conta.

A cirurgia, feita sem nenhum custo para a paciente, ocorreu cercabetnacional iosvinte anos depois do primeiro caso bem-sucedido conhecido no mundo, o da americana Christine Jorgensen, operada na Dinamarcabetnacional ios1952. Ainda antes, na décadabetnacional ios1930, Lili Elba passou pela primeira tentativabetnacional ioscirurgia transgênero, mas morreubetnacional iosuma das operações –betnacional ioshistória inspirou o filme A Garota Dinamarquesa (2015).

Já recuperada, Waldirene voltou parabetnacional ioscidade natal como uma nova mulher, os cabelos loiros crescidos, o corpo feminino e uma alegria inédita. Um dos motivos do retorno foi uma paixão por um estudante universitário que era a cara do personagem do ator Robert Redford no filme Proposta Indecente (1993), lembra ela. O romance ocorreu às escondidas. "Ninguém poderia saber, seria um escândalo para ele."

Mas, quando o rapaz terminou a faculdade, a história acabou. Waldirene ficou desolada. Seria só o começobetnacional iosuma históriabetnacional iosinfortúnios.

Roberto Farina

Crédito, Arquivo da famíliabetnacional iosRoberto Farina

Legenda da foto, O cirurgião plástico Roberto Farina foi o primeiro a realizar cirurgiasbetnacional iostransexuais femininos e masculinos no Brasil

O pioneiro

No finalbetnacional ios1975, Farina anuncioubetnacional iosum congresso científico que vinha realizando cirurgiasbetnacional iosmudançabetnacional iossexo no Brasil. Alémbetnacional iosWaldirene, tinha feito cercabetnacional iosuma dezenabetnacional iosoperações – outros pacientes estavam na espera, entre eles um índigena da tribo carajás. A princípio, o caso foi visto pela comunidade médica como uma inovação. Porém, logo chegou à esfera judicial.

Ciente do caso, o Ministério Público pediu que Farina fosse investigado por lesão corporal, por estar "mutilando" homens. A polícia, então, intimou o médico a fornecer o nome completo e o endereçobetnacional iostodos os pacientes que tinha operado – o que ele se recusou a fazer.

A história poderia ter sido encerrada aí, não fosse por outro processo judicial. Waldirene tinha entrado na Justiça para mudar o nome nos documentos – oficialmente, ela ainda era Waldir. Assim, o Ministério Público descobriubetnacional iosidentidade. Era o que bastava para começar o cerco judicial.

O laudo do IML foi uma das primeiras providências. Apesar do constrangimento sofrido por Waldirene, os médicos-legistas concluíram que ela era mulher. Além disso, apoiaram Farina: "Acreditamos ter sido a intervenção terapeuticamente necessária".

O resultado, embora surpreendente, não freou o ímpeto do novo promotor do caso, Messias Piva: "Não deve o jurista impressionar-se com as atitudes sentimentais expressas por Waldir e afirmadas, com certo sensacionalismo pelos médicos, mediante alusões ao 'seu sonhobetnacional iosser mulher'. A realidade é outra (...) Waldir Nogueira é um doente mental". Piva já é falecido. O Ministério Públicobetnacional iosSão Paulo não quis comentar.

O processo provocou comoção na comunidade científica internacional. Quase duas dezenasbetnacional iospesquisadoresbetnacional iosdiversos países enviaram cartasbetnacional iosapoio a Farina – já no Brasil, foram poucos os que o apoiaram além da equipe que participou do casobetnacional iosWaldirene no Hospital das Clínicas.

"Seria um erro das autoridades judiciais no Brasilbetnacional iosprocessar o Dr. Farina por seguir um procedimento médico e cirúrgico internacionalmente respeitado e aceito", escreveu,betnacional ios1976, o cirurgião plástico John Money, da Escolabetnacional iosMedicina da Universidade Johns Hopkins.

"Em nenhum dos outros países do mundo onde esse tipobetnacional iostratamento médico foi praticado, um médico foi acusadobetnacional iosconduta criminosa pelo Estado. É um retrocesso muito danoso para a imagem do Brasil", apontou o psiquiatra Robert Rubin, da Escolabetnacional iosMedicina da Universidade da Califórniabetnacional iosLos Angeles, tambémbetnacional ios1976.

Nada disso bastou para convencer o juiz Adalberto Spagnuolo. Em 6betnacional iossetembrobetnacional ios1978, o magistrado condenou Roberto Farina a dois anosbetnacional iosreclusão por lesão corporalbetnacional iosnatureza gravíssimabetnacional iosWaldir Nogueira.

Na sentença, sugeriu que o paciente deveria ter sido "submetido a tratamento psicanalíticobetnacional ioslonga duração como tentativabetnacional ioscura". Spagnuolo tem hoje 80 anos e está aposentado. A BBC Brasil não conseguiu contato com o juiz. O Tribunalbetnacional iosJustiça não quis se manifestar.

"Foi um casobetnacional iosmanipulação da ciênciabetnacional iosnome dos costumes", resume Angela Caniato, coordenadorabetnacional iosgestão documental do Tribunalbetnacional iosJustiçabetnacional iosSão Paulo, que encontrou o processo.

Trechos da denúncia do Ministério Público paulista contra Roberto Farina

Crédito, BBC Brasil

Legenda da foto, 'Monstro', 'prostituta', 'doente mental', 'mutilado', 'eunuco', 'bichinha' foram algumas das palavras usadas pelo Ministério Público paulista para se referir a Waldirene no processo contra Farina

Pessoa idônea

A condenaçãobetnacional iosFarina alarmou seus pacientes. Entre eles, João W. Nery. Quando ele leu a notícia nos jornais, "foi como se tivesse levado um soco no estômago. O coração parecia sair pela boca. O corpo todo tremia pedindo mais ar". "O meu médico foi condenado, não pode mais operar", disse ele.

Um ano antes,betnacional ios1977, João fora operado por Farina, deixando para trás o corpobetnacional iosJoana –betnacional ioscirurgia é considerada a primeira operaçãobetnacional iosum transexual masculino no Brasil. O relato está no livrobetnacional iosmemórias Viagem Solitária, no qual João agradece o médico "pelo pioneirismo cirúrgicobetnacional iosnos fazer renascer".

Tanto a defesa quanto a acusação recorreram da sentença, e o caso foi para a segunda instância. Farina pôde esperar pelo julgamentobetnacional iosliberdade.

O Ministério Público pediu o aumento da pena: "Admitindo-se que ele (Waldir) possa oferecerbetnacional iosneovagina a homens, então somos forçados a concluir que agora ele é uma prostituta", afirmou o promotor Piva,betnacional ios1978. "Embora mutilado, Waldir continuará sendo o que sempre foi, ou seja, um homem que mantém relações sexuais com outros homens. Mas a práticabetnacional iosrelações sexuais entre pessoas do mesmo sexo será sempre uma aberração, tanto à natureza como à lei."

E continuou: "Farina quer que os portadoresbetnacional iosdistúrbios mentais possam autorizar a realizaçãobetnacional iosseus próprios corposbetnacional ioscirurgias mutiladoras; que os homossexuais – 'bichinhas' – entrembetnacional iosfila para conseguirem a cirurgia; que os paisbetnacional iosfamília sejam obrigados a suportar,betnacional iosseus lares, filhos homossexuais – do que ninguém está livre – e ainda mutilados".

A defesa ficou indignada com o palavreado e acusou a Promotoriabetnacional ios"pura demagogia, preconceito e paixão, incompatíveis com um julgamento sério". Já Waldirene partiubetnacional iosdefesabetnacional iosFarina, a quem considerava seu "herói" e seu "segundo pai", recolhendo cartasbetnacional iosapoio nabetnacional ioscidade natal,betnacional ios1978.

"Waldirene Nogueira é pessoabetnacional iosbom caráter,betnacional iosprincípios morais e comportamento exemplar, tratando-se poisbetnacional iospessoa equilibrada e socialmente adequada", escreveu o então prefeito da cidade.

"Trata-sebetnacional iospessoa idônea,betnacional iosboa formação moral, intelectual e profissional, nada me constando, até a presente data, que possa virbetnacional iosdesabono abetnacional iosconduta no seio dessa comunidade", declarou o delegado localbetnacional iospolícia.

Advogados, ex-prefeitos, presidentesbetnacional iosassociações também emitiram suas cartas, todas registradasbetnacional ioscartório. O próprio cartorário, comovido, resolveu aderir à causa. Além disso, um abaixo-assinado reuniu cercabetnacional ios350 assinaturas.

A última declaraçãobetnacional iosapoio juntada ao processo foibetnacional iosEspiridião, um homembetnacional iosidade, que a princípio rejeitou a transformaçãobetnacional iosWaldir: "Declaro que minha filha Waldirene Nogueira sempre viveubetnacional iosnossa casa, com seus pais, achando-se depois da cirurgia realizadabetnacional ios1971betnacional ioscondições ótimasbetnacional iossaúde e com comportamento normal, relacionando-se bem com todas as pessoasbetnacional iossuas relações sociais".

Em novembrobetnacional ios1979, os desembargadores que julgaram o casobetnacional iossegunda instância anularam a condenaçãobetnacional iosFarina.

Cartabetnacional iosJohn Money, da Universidadebetnacional iosMedicina da Universidade Johns Hopkins,betnacional iosdefesabetnacional iosRoberto Farina,betnacional ios10betnacional iosnovembrobetnacional ios1976

Crédito, BBC Brasil

Legenda da foto, 'Antigamente, (a transexualidade) era vista como um pecado ou um crime. Hoje é vista como uma condição médica e assim é tratada', escreveu o médico John Moneybetnacional iosapoio a Roberto Farinabetnacional ios1976

Pênis no nariz

"Farina foi ridicularizado por causa do processo. Teve uma grande perdabetnacional iosclientela. Faziam piadas, diziam que quem fosse operar o nariz com ele sairia com um pênis implantado no rosto. Mesmo assim, continuou a fazer as operações (de mudançabetnacional iossexo). Dizia que não podia virar as costas para os transexuais", recorda Glaucio Farina, sobrinho do médico e também cirurgião plástico.

Depois da vitória na segunda instância, o pioneirismobetnacional iosFarina acabou produzindo um legado positivo. Aindabetnacional ios1979, uma emenda a um projetobetnacional ioslei abriu brecha para realizar esse tipobetnacional ioscirurgia no Brasil. Ficou estabelecido que a retiradabetnacional iosórgãos não era punível quando considerada necessáriabetnacional iosparecer médico unânime e com consentimento do paciente. O texto não fazia menção direta à mudançabetnacional iossexo, mas era uma formabetnacional iosproteger médicos como Farinabetnacional iosfuturos processos.

Porém, foi apenasbetnacional ios1997 que o Conselho Federalbetnacional iosMedicina (CFM) autorizou a realizaçãobetnacional ioscirurgiasbetnacional iosmudançasbetnacional iossexobetnacional iostransexuais – inicialmente,betnacional ioscaráter experimental. A partirbetnacional ios2008, a cirurgia foi incluída no Sistema Únicobetnacional iosSaúde (SUS) – os nomes utilizados atualmente são cirurgiabetnacional iosredesignação sexual, processo transexualizador ou cirurgiabetnacional iosafirmaçãobetnacional iosgênero. Desde então, maisbetnacional ios400 procedimentos hospitalares foram realizados na rede pública.

"Farina foi um grande pioneiro, mas seu trabalho é pouco divulgado até hoje. O processo judicial contribuiu muito para o afastamento da academia e até do CFMbetnacional iosrelação a ele. É preciso desfazer isso historicamente", diz o endocrinologista Magnus Regios Dias da Silva, coordenador do Núcleobetnacional iosEnsino, Pesquisa, Extensão e Assistência à Pessoa Trans da Universidade Federalbetnacional iosSão Paulo (Unifesp), batizadobetnacional ioshomenagem a Roberto Farina.

Criado há um ano, com participação da população trans, o núcleo conta com um ambulatóriobetnacional iosatendimentobetnacional iossaúde. "Hoje,betnacional ios2018, é difícil trabalhar com esse ambulatório. Sofro todos os tiposbetnacional iospressões transfóbicas – religiosas, políticas e até da academia. Imagina então naquela época, quarenta anos atrás. Farina foi um guerreiro, um visionário", compara Magnus. Segundo ele, o cirurgião antecipou a concepçãobetnacional iosatendimento à pessoa trans que o Brasil implementa hoje.

Em 1982, Farina publicou o livro Transexualismo e escreveu: "Lamentavelmente, as nossas leis, costumes e tradições não têm um mínimobetnacional ioscompreensão, tolerância e consideração para os transexuais (...) A investigação científica, paralelamente ao avanço da tecnologia, aos poucos vai vencendo os seus maiores inimigos que são a ignorância e a superstição".

Apesar da absolviçãobetnacional iosFarina, a Justiça condenou Waldirene a viver com o nomebetnacional iosWaldir. A manicure perdeu o processobetnacional iosque lutava para mudar os documentos. Isso inviabilizou, por exemplo, que pudesse exercer a carreirabetnacional ioscontabilidade, na qual tinha se formado antes da cirurgia. Afinal, como se apresentar como mulher, mas assinar os documentos dos clientes como homem? Para evitar esse mesmo constrangimento, ela nunca tirou carteirabetnacional iosmotorista.

Sua certidãobetnacional iosnascimento só foi alterada quando tinha 65 anos,betnacional iosoutubrobetnacional ios2010. O RG,betnacional iosjaneirobetnacional ios2011. A conquista veio depoisbetnacional iosuma nova batalha judicial, com um advogado que não cobrou nada pelo serviço, indicado por Dorina Epps, a médica que a recebeu nas Clínicasbetnacional ios1969. "Meu pai e minha mãe morreram, e eu ainda não tinha o nome correto", lamenta.

Agora, mais nenhuma pessoa trans precisará passar por isso. Em primeirobetnacional iosmarço deste ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) liberou a mudança do nome e do sexo diretamentebetnacional ioscartório, sem necessidadebetnacional iosautorização judicial. Também não é necessário ter passado por cirurgiabetnacional iosredesignação sexual ou terapia hormonal, nem apresentar pareceres ou laudos médicos – muito menos do IML, como ocorreu com Waldirene na décadabetnacional ios1970.

Carta manuscritabetnacional iosWaldirene aos advogadosbetnacional iosFarina

Crédito, BBC Brasil

Legenda da foto, Cartabetnacional iosWaldirene para os advogados do médico Roberto Farina,betnacional ios1978, após a condenaçãobetnacional iosprimeira instância

Uma mulher fantástica

A vidabetnacional iosWaldirene mudou completamente depois do processo contra Farina. Humilhada na Justiça, na imprensa e na cidade, a garota extrovertida começou a ter medobetnacional iossairbetnacional ioscasa. Ainda hoje, quarenta anos depois, quando estábetnacional ioslocal público, ela tem a sensaçãobetnacional iosque está sendo observada ebetnacional iosque as pessoas estão comentando sobre ela. O resultado é que passa a maior parte do tempo sozinha. A única exceção é o Carnaval, "uma oportunidadebetnacional iossair da ostra".

Waldirene continua a trabalhar como manicure, para complementar a aposentadoriabetnacional iosum salário mínimo. A clientela é esporádica – no dia da visita da BBC Brasil, atendeu apenas uma pessoa. Cobra 30 reais para fazer pé e mão. O salão fica na antessala da casa onde vive. Os móveis, os objetos e parte dos eletrodomésticos parecem brotar dos anos 1980, intocáveis desde que os paisbetnacional iosWal morreram.

"Tenho uma vidinha boa. Mas é uma vidinha. Não posso ter grandes sonhos", diz ela. "Falar que a vida é bela? Não dá." Os problemasbetnacional iossaúde estão se acumulando, e é difícil encontrar médicos que entendam – e aceitem – suas cirurgias do passado. Um médico urologista com quem se consultou disse que "não acreditava" nabetnacional iosvagina. Um oftalmologista quase caiu da cadeira quando ela contou que nasceu Waldir.

A garota do interior nunca se casou nem teve um relacionamento duradouro. Os homens da cidade falavam para ela: "Se eu posso ter uma mulher normal, por que vou ficar com uma imitação?". Ela reclama que eles só queriam sexo, nunca amizade, companheirismo, romance. "Hoje eu sou solitária porque eu não quero ninguém se divertindo à minha custa." Ainda hoje é uma mulher bonita, loira, curvilínea, quase sem rugas – embora custe a acreditar nisso.

Entre solidões e amarguras, Waldirene faz uma pausa na conversa com a BBC Brasil por causabetnacional iosuma lembrança. Na juventude, ela cantavabetnacional iosserenatas, mas parou porque o pai achava que estavam tirando sarro dela. Agora, se recordoubetnacional iosuma interpretaçãobetnacional iosNora Ney para um sambabetnacional iosNelson Cavaquinho e sentiu vontadebetnacional ioscantar outra vez. Ela abre os braços e solta a voz:

"Sei que amanhã Quando eu morrer, Os meus amigos vão dizer Que eu tinha um bom coração / Alguns até hãobetnacional ioschorar E querer me homenagear, Fazendobetnacional iosouro um violão / Mas depois que o tempo passar, Sei que ninguém vai se lembrar Que eu fui embora / Por isso é que eu penso assim, Se alguém quiser fazer por mim, Que faça agora / Me dê as floresbetnacional iosvida, O carinho, a mão amiga, Para aliviar meus ais / Depois que eu me chamar saudade, Não precisobetnacional iosvaidade, Quero preces e nada mais."

Salãobetnacional iosWaldirene

Crédito, BBC Brasil

Legenda da foto, Waldirene foi manicure durante toda a vida; formadabetnacional ioscontabilidade, ela não pôde trabalhar na área por ter sido proibidabetnacional iosalterar o nomebetnacional iosnascimento