'Ela morreu após 10h na fila por benefício': assistência social tem menor orçamentodead slotuma década:dead slot

Janaína Araújo e Iomar Fernandes Torres

Crédito, Arquivo pessoal

Legenda da foto, Janaína Araújo (à esquerda) com a companheira Iomar Fernandes Torres. Janaína morreu após dez horas na filadead slotesperadead slotum Centrodead slotReferênciadead slotAssistência Social (Cras)dead slotBrasília

"Ainda estou com aquela sensaçãodead slotque isso tudo é um pesadelo, que amanhã vou acordar e ela vai estar aqui dormindo e vamos tomar café. Ainda não consegui assimilar tudo e saber que ela não está mais aqui comigo. É um vazio", diz Iomar Fernandes Torres,dead slot61 anos e companheiradead slotJanaína por dez anos.

"Ela era uma parceiradead slotvida, era eu para ela e ela para mim e tudo nós fazíamos juntas. Éramos companheiras, cúmplices, confidentes, amigas", afirma a trabalhadora autônoma.

"Meu grito não édead slotcunho político porque, para mim, entra um e sai outro, e continua tudo do mesmo jeito. Mas eu espero, do fundo do meu coração, que não precisem mais outras Janaínas morrerem para se mudar o sistemadead slotassistência social. Para acordarem e verem que aquilo ali é desumano, é humilhante", completa Iomar.

Assistência social perde espaço no Orçamento federal

A morte trágicadead slotJanaína Araújo é um exemplodead slotcomo a fragilidade dos serviçosdead slotassistência social brasileiros tem afetado a vidadead slotpessoasdead slotsituaçãodead slotvulnerabilidade.

Para especialistas e gestores municipais ouvidos pela BBC News Brasil, as filas nas portas dos Crasdead slottodo o país são um resultado direto da perdadead slotespaço dos serviçosdead slotassistência social no Orçamento federal, alémdead slotmudanças na formadead slotgestão dos programas sociais feitasdead slotforma unilateral pelo governo. Segundo eles, a queda nos recursos revela a faltadead slotprioridade da assistência social.

Procurado para comentar a redução do Orçamento para a assistência social, o Ministério da Cidadania não respondeu aos questionamentos da BBC News Brasil.

Mutirãodead slotatendimentos para atualização do Cadastro Únicodead slotManaus, janeirodead slot2022

Crédito, Divulgação/Prefeituradead slotManaus

Legenda da foto, Os serviçosdead slotassistência social possibilitam o acesso a benefícios como o Auxílio Brasil, BPC e encaminhamento a abrigos

Os serviçosdead slotassistência social são a rededead slotequipamentos públicos que possibilita o acesso a benefícios como o Auxílio Brasil, BPC (salário mínimo pago a idosos e pessoas com deficiênciadead slotbaixa renda) e encaminhamento a abrigos para crianças e mulheres vítimasdead slotviolência doméstica, por exemplo.

Apesar do recente aumentodead slotrecursos para o Auxílio Brasil, essa rededead slotserviços contínuos, que exigem financiamentodead slotcaráter permanente, têm perdido espaço no Orçamento federal.

O modelodead slotgestão do Suas (Sistema Únicodead slotAssistência Social) prevê o cofinanciamento do sistemadead slotassistência social entre União, Distrito Federal, estados e municípios. Mas a parcela da União nesse cofinanciamento estádead slotqueda desde 2014 edead slot2023 deve atingir o patamar mais baixodead slotmaisdead slotuma década.

Segundo levantamento da PUC-PR (Pontifícia Universidade Católica do Paraná), o orçamento federal para cofinanciamento dos serviçosdead slotassistência — que inclui a manutenção dos Cras, Creas (Centrodead slotReferência Especializadodead slotAssistência Social) e abrigos, por exemplo — diminuiudead slotcercadead slotR$ 3 bilhõesdead slot2014, anodead slotmaior orçamento do período recente, para valores próximos a R$ 1 bidead slot2021 e 2022, conforme a Lei Orçamentária Anual (LOA).

Orçamento para assistência social. Na Lei Orçamentária Anual (LOA),dead slotR$ bilhões.  .
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Estudo do Ipea (Institutodead slotPesquisa Econômica Aplicada), órgão vinculado ao Ministério da Economia, mostra a mesma tendência.

"Este volumedead slotrecursos chama atenção porque configura o menor montante proposto pelo governo federal nos últimos dez anos. Com isso, sinaliza-se a ausênciadead slotprioridade dada a esta política, ainda mais no contextodead slotuma crise com impactos duradouros na economia e na sociedade e que demandará um longo processodead slotrecuperação", escreveram os técnicos do Ipea, comentando o orçamento para a assistência socialdead slot2021.

Em 2023, o Projetodead slotLei Orçamentária Anual (PLOA) atualmentedead slotdiscussão no Congresso destina montante ainda menor para esses serviços: R$ 48,3 milhões, valor mais baixodead slotmaisdead slotuma década.

Esse valor inclui recursos destinados à Proteção Social Básica (que mantêm os Cras), Proteção Social Especializada (que mantêm todos os serviços especializados) e Estruturação da Rededead slotServiços (que inclui gastos com encaminhamento a serviços prestados por entidades).

Aperto fiscal e tetodead slotgastos

Um primeiro motivo que explica por que a rededead slotserviçosdead slotassistência social está perdendo espaço no Orçamento federal, enquanto benefícios como Auxílio Brasil e BPC têm seus recursos mantidos ou até ampliados, é que os programasdead slottransferênciadead slotrenda são gastos obrigatórios, enquanto as despesas com os serviços socioassistenciais são gastos discricionários — despesas que o governo pode ou não executar,dead slotacordo com a previsãodead slotreceitas.

É o que explica Jucimeri Isolda Silveira, professora da Pós-Graduaçãodead slotDireitos Humanos e Políticas Públicas da PUC-PR e responsável pelo estudo Proteção Social, Desproteção e Financiamento do Suas.

Fila para atendimentodead slotCrasdead slotLaurodead slotFreitas, Bahia

Crédito, Prefeituradead slotLaurodead slotFreitas

Legenda da foto, Programasdead slottransferênciadead slotrenda são gastos obrigatórios, enquanto as despesas com os serviços socioassistenciais são gastos discricionários, por isso têm sofrido cortes

"Desde a Emenda Constitucional 95 [que estabeleceu o tetodead slotgastos, limitando o crescimento da despesa do governo à variação da inflação no ano anterior], os recursos para a assistência social vêm sendo reduzidos. Então é essa rede, que atua lá na ponta, que faz o cadastramento das famílias, que visa o acompanhamento integrado dessa população que acessa os benefícios, que está sendo comprometida", diz Silveira.

Ela dá outro exemplo prático dessa perdadead slotrecursos: o Programadead slotErradicação do Trabalho Infantil (Peti) não recebe recursos federais para açõesdead slotenfrentamento desde 2019.

Com a redução dos repasses federais, também ficam prejudicados serviços prestados pelos municípios como atendimento à populaçãodead slotsituaçãodead slotrua, imigrantes e mulheres vítimasdead slotviolência.

"Quem faz esse atendimento na ponta é a assistência social, é ela, por exemplo, que garante a proteção integraldead slotcriançasdead slotsituaçãodead slotacolhimento institucional, que são maisdead slot30 mil hoje no Brasil", exemplifica a professora e pesquisadora da PUC-PR.

Para Manoel Pires, coordenador do Observatóriodead slotPolítica Fiscal do Ibre-FGV (Instituto Brasileirodead slotEconomia da Fundação Getulio Vargas), o tetodead slotgastos agravou a situaçãodead slotperdadead slotreceitas para a assistência, mas o quadrodead slotrestrição orçamentária é anterior.

"Há uma compressão da despesa discricionária desde 2014, 2015, que é quando o ajuste fiscal começa. O tetodead slotgastos entra no meio dessa história. Ele começadead slot2017 e institucionaliza a redução desse tipodead slotdespesa", afirma Pires.

Emendas parlamentares não são solução, dizem gestores

Nos últimos anos, o governo tem buscado compensar a reduçãodead slotOrçamento para a assistência social por meio da destinaçãodead slotrecursos via emendas parlamentares ou créditos extraordinários, como o recursos emergencialdead slotcombate à covid-19.

Mas Eliasdead slotSousa Oliveira, presidente do Congemas (Colegiado Nacionaldead slotGestores Municipaisdead slotAssistência Social), explica que isso não resolve o problema, já que as estruturasdead slotassistência têm caráter permanente, enquanto esses recursos sãodead slotnatureza eventual.

"Os serviçosdead slotCras,dead slotCreas,dead slotacolhimentodead slotadultos e crianças, casas-abrigo para mulheres vítimasdead slotviolência são serviços continuados. Como eu faço a programaçãodead slotum serviço que é permanente com o recursodead slotuma emenda parlamentar que é esporádica?", questiona Oliveira.

idososdead slotfila para atendimento

Crédito, Marcelo Camargo/Agência Brasil

Legenda da foto, 'Alguns municípios menores, com maior dificuldade, acabaram diminuindo atendimento e até fechando serviços', diz presidente do Colegiado Nacionaldead slotGestores Municipaisdead slotAssistência Social

O representante do Congemas explica que, para manter o atendimento à população num momentodead slotaumento da demanda pelos mais vulneráveis, os municípios passaram a compensar com o próprio caixa a faltadead slotrecursos federais.

"Alguns municípios menores, com maior dificuldade, acabaram diminuindo atendimento e até fechando serviços. Outros municípios acabam cobrindo o que o governo federal não manda, mas isso implicadead slotuma perda da capacidadedead slotaumentar e ampliar o atendimento num momento, pós-pandemia,dead slotaumento da demanda", diz Oliveira.

O representante cita o exemplodead slotFoz do Iguaçu, cidade onde é secretáriodead slotAssistência Social. Até marçodead slot2020, a cidade paranaense tinha 29 mil famílias no Cadastro Único (registro das famílias brasileirasdead slotbaixa renda que permite o acesso a benefícios como o Auxílio Brasil), sendo 7 mil delasdead slotextrema pobreza.

Agora, segundo Oliveira, são 47 mil famílias no Cadastro Único e 18 mil famílias na pobreza.

"Isso aumentou a demanda pelos Cras, pelos Creas, por acolhimento, por atendimento da populaçãodead slotsituaçãodead slotrua e, alémdead slotnão termos expansão das metasdead slotatendimento e do cofinanciamento, ainda temos cortes nos recursos, num contextodead slotnúmerodead slotatendimentos muito maior", diz o gestor.

Segundo ele, os municípios respondem hoje por 90%dead slottudo que é investido na assistência social, quadro que poderá ser complicado com a perdadead slotarrecadação do ICMS (Imposto sobre Circulaçãodead slotMercadorias e Serviços) sobre combustíveis, determinada pelo governo federal como uma formadead slotreduzir a inflação às vésperas das eleiçõesdead slotoutubro.

A Confederação Nacional dos Municípios (CNM) estima a perdadead slotreceitas para os municípios com a medidadead slotR$ 22 bilhões, com efeitos também sobre os gastos com educação e saúde.

Oliveira afirma, porém, que não é só a faltadead slotrecursos que explica as filas nas portas dos Cras, como a enfrentada por Janaínadead slotBrasília, no diadead slotque a companheiradead slotIomar morreu após dez horasdead slotespera e oito diasdead slottentativas frustradasdead slotobter um benefício.

Segundo o gestor, com a mudança do Bolsa Família para Auxílio Brasil, o processodead slotatualização do Cadastro Único mudou. Antes, os municípios tinham um prazodead slot60 dias para fazer a averiguaçãodead slotfamílias, realizar a busca ativa e informar o governo federal sobre casosdead slotque a família não pôde ser encontrada para atualizar o cadastro, situação que resultava no bloqueio do benefício até alguém da família comparecer ao Crasdead slotreferência.

"Hoje, o governo bloqueiadead slottodo mundo [com cadastro desatualizado] e muitas pessoas só ficam sabendo que estão bloqueadas na horadead slotir ao banco sacar o Auxílio Brasil. Você imagina num mês, 3 mil famílias são bloqueadasdead slotFozdead slotIguaçu — como já aconteceu. Essas 3 mil famílias vão imediatamente para os Cras. Isso vai gerar fila", exemplifica Oliveira.

A isso se soma a dificuldadedead slotaumentar o quadrodead slotfuncionáriosdead slotatendimento, devido à restriçãodead slotrecursos, nesse contextodead slotaumento da demanda, impulsionada ainda pelo Auxílio Brasil ampliado para R$ 600 até dezembro e pelo aumento do auxílio-gás.

"Anteriormente, quando o governo federal fazia mudanças, ele dialogava com os municípios. Tinha todo um planejamento. Hoje, muitas vezes, Estados e municípios ficam sabendodead slotmudanças através dos jornais", critica o gestor.

Após a mortedead slotJanaína no Cras Paranoá,dead slotBrasília, o governo do Distrito Federal anunciou uma parceria com o Corpodead slotBombeiros Militar do DF para ampliar os atendimentos sociais e desafogar a espera por atendimento nos Cras da capital do país.

A Secretariadead slotDesenvolvimento Social do Distrito Federal (Sedes) não respondeu a pedidodead slotposicionamento sobre o tema feito pela BBC News Brasil.

Iomar espera que a mortedead slotsua companheira sirva como um alerta para que o sistemadead slotassistência social brasileiro mude.

"A assistência social no nosso país, você me desculpe, mas é decadente, é vergonhosa. Não pelos profissionais da assistência, mas pelo sistema e seus governantes. É um incentivo à fila, ao descaso, à desumanidade", afirma Iomar.

"É preciso uma mudança drástica. Eu quero que meu grito seja ouvido: não deixem mais Janaínas morreremdead slotbuscadead slotuma ajuda para ter um poucodead slotdignidade. É só o que eu espero: que a morte dela não tenha sidodead slotvão. Eu realmente espero que haja mudanças."

- Este texto foi publicado originalmentedead slothttp://vesser.net/brasil-62815251

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