O que é ser genocida?:
Genocídio também foi citadopelo menos 1.500 discursos no Plenário da Câmara dos Deputados desde 1967, anoque o deputado federal Cunha Bueno (Arena-SP) defendeu a extradição do austríaco Franz Stangl, oficial nazista que comandou camposextermíniojudeus na Polônia e foi capturado no Brasil.
Tanto no Congresso quanto nas redes sociais e na imprensa utiliza-se os termos genocida ou genocídio, por exemplo, para falar sobre assassinatosnegros ou pobres, sobre perseguição e morteindígenas e, por vezes, sobre as mortes decorrentes da pandemiacovid-19 durante o governo do presidente Jair Bolsonaro (PL).
O presidente, aliás, foi acusado formalmentegenocídio no Tribunal Penal Internacional (TPI) — ele nega ter cometido qualquer crime na pandemia ou contra indígenas.
E para entender todas essas disputastorno da palavra genocida, primeiro vale explicar como surgiu o crimegenocídio e quantosfato aconteceram ao longo do século 20. Depois, vamos analisar as principais acusaçõesgenocídio específicas contra Bolsonaro e o que ele diz sobre elas. E por fim, falaremos das críticas a um suposto uso exagerado desses termos ou ao uso como arma política contra adversários.
As origens dos termos genocida e genocídio
O termo "genocídio" foi cunhado1943 pelo jurista judeus polonês Raphael Lemkin, que combinou a palavra grega genos (raça ou tribo) com o termolatim cide (matar). Após testemunhar os horrores do Holocausto, no qual foram mortos quase todos os membrossua família, Lemkin passou a defender o reconhecimento do genocídio como um crime na lei internacional.
Seus esforços foram fundamentais para a Convenção para a Prevenção e a Repressão do CrimeGenocídio pela Organização das Nações Unidas (ONU)1948. O texto entrariavigor1951, sendo depois ratificado pelos países.
O artigo 2º da convenção define o genocídio como "qualquer um dos seguintes atos cometidos com a intençãodestruir, parcial ou totalmente, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como":
- Assassinatomembros do grupo;
- Dano grave à integridade física ou mentalmembros do grupo;
- Submissão intencional do grupo a condiçõesexistência que lhe ocasionem a destruição física total ou parcial;
- Medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo;
- Transferência forçadamenoresidade do grupo atingido para um outro.
Há, no entanto, grandes divergências sobre como definir um genocídio e, por extensão, sobre quantos genocídios ocorreram no século 20.
Para alguns, só houve um genocídio no século passado: o Holocausto, durante o qual foram mortos mais6 milhõesjudeus, alémadversários políticos, negros, homossexuais, pessoas com deficiência, comunistas, testemunhasJeová, integrantes da etnia roma e outras minorias.
Outros afirmam que houve, além do Holocausto, pelo menos outros dois genocídios segundo os termos da convenção da ONU1948: o assassinatomassaarmênios por turcos otomanos entre 1915 e 1920, uma acusação que a Turquia nega; a morteRuandacerca800 mil pessoas (Tutsi, Twa, e Hutus moderados)1994.
Mais recentemente, outros casos foram acrescentados a essa lista por alguns especialistas. Um deles é o massacreSrebrenica, na Bósnia,1995, que foi considerado um genocídio pelo TPI para a Antiga Iugoslávia.
Outros casos considerados por parte dos especialistas são a Grande Fome da Ucrânia causada pela União Soviética (1932-33); a invasão do Timor Leste pela Indonésia (1975) e os assassinatos cometidos pelo Khmer Vermelho no Cambodja nos anos 1970, quando estima-se que 1,7 milhãocambojanos morreram por causaexecuções sumárias, fome e trabalho forçado.
Em relação ao último, há divergências sobre o fatoque muitas vítimas do Khmer Vermelho eram alvo por causaquestões sociais ou políticas, o que os deixariafora da definiçãogenocídio aprovada na ONU.
Além desses casos,2010, a Corte InternacionalJustiça (CIJ) emitiu um mandadoprisão contra o presidente do Sudão, Omar al-Bashir, sob acusaçãogenocídio. Ele liderou uma campanha contra cidadãos da região sudanesaDarfur na qual 300 mil pessoas foram mortas ao longosete anosconflito.
Mais recentemente,março2016, os Estados Unidos classificaram o grupo jihadista Estado Islâmicopromover genocídio contra minorias yazidi, xiita e cristãs no Iraque e na Síria. "(O Estado Islâmico) é genocida por autoproclamação, por ideologia e por suas ações, no que diz, no que acredita e no que faz", disse à época John Kerry, então secretárioEstado americano.
Em 2017, a Gâmbia acusou formalmente, na CIJ, o governo do Mianmarcometer genocídio contra população da minoria rohingya, com "operações amplas e sistemáticaslimpeza étnica". Centenasmilharespessoas fugiram para a vizinha Bangladesh, e estima-se que milhares tenham sido mortos. Mianmar nega a acusação.
Em 2021, os governosEUA, Canadá e Holanda acusaram a Chinacometer genocídio contra o povo da minoria uighur, na região autônomaXinjiang, no noroeste do país.
Há evidênciasque o governo chinês submeteu uigures à esterilização forçada, ao trabalho forçado, a detençõesmassa e torturas e estupros sistemáticos, ações que muitos afirmam que se enquadram no critériogenocídio. A China nega a acusação.
O TPI, porvez, rejeitou o pedidouigures para investigar formalmente a China sob acusaçãogenocídio porque o governo chinês não é signatário do tribunal.
Acusaçõesgenocídio contra Bolsonaro
No fim2019, duas entidadesdireitos humanos apresentaram uma representação contra o presidente Jair Bolsonaro perante o TPI, pedindo uma "investigação preliminar" das ações do presidente sob acusação"incitação ao genocídio e ataques sistemáticos contra populações indígenas". Outras entidades, como a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), também apresentaram acusações semelhantes contra o presidente no TPI.
O documento da Comissão Arns e do ColetivoAdvocaciaDireitos Humanos, por exemplo, pretendia alertar o TPI sobre violações que, segundo eles, estariam colocando indígenasperigo. Cabe ao próprio tribunal decidir se o caso deve ser oficialmente investigado num inquérito.
Na nota informativa entregue pelas entidadesdiretos humanos à Procuradoria do TPI, os autores afirmam haver "atividades específicasdesmantelamentopolíticas públicas protegendo direitos sociais e ambientais, junto a processosdemarcaçãoterras indígenas". O texto cita também a "perseguição e demissãoservidoresdepartamentos sociais e ambientais por advertir contra políticasdesmantelamento ou por questionar versões oficiais dos fatos".
"Este documento mostra como o discurso sistemático do governo, minando as leisproteção ambiental e desdenhando as populações indígenas, (...) está incentivando a violência contra essas populações e os defensoresdireitos sociais e ambientais", dizem as entidades.
O documento cita o Artigo 15 do EstatutoRoma, documento1998 que embasou a criação do TPI, pedindo "responsabilização por incitação ao cometimentocrimes contra a humanidade e apoio para o genocídio contra os povos indígenas e comunidades tradicionais do Brasil".
Há pelo menos três representações relacionadas contra Bolsonarotramitação no TPI com acusaçõescrimes contra indígenas brasileiros. O caso tem avançado, o que é algo inédito na história do país, mas o tribunal ainda não decidiu se o presidente será investigado formalmente.
Organismo internacional criado2002, esse tribunal está encarregadojulgar indivíduos acusadosquatro crimes graves: crimes contra a humanidade, genocídio, crimesguerra e, desde 2018, crimesagressão —que políticos e militares podem ser responsabilizados por invasões ou ataquesgrandes proporções.
O que diz Bolsonaro?
O presidente Jair Bolsonaro e seus auxiliares têm negado reiteradamente qualquer tipocrime do governo federal contra indígenas ouações na pandemiacovid-19.
As acusaçõesgenocídio contra Bolsonaro voltaram à tona durante as discussões sobre o relatório final da CPI da Covid no Senado,2021. Afinal, o presidente poderia ser acusado desse crime ou não?
As versões preliminares do documento elaborado pelo relator Renan Calheiros (MDB-AL) sugeriam pedir o indiciamentoBolsonaro pelo genocídiopovos indígenas. "Todo um conjuntoagressões, negligências e atos que deixam os indígenas mais vulneráveis à pandemia convergem para a ocorrência do crimegenocídio […] Assim, como já dito, o impacto da covid-19 sobre os povos originários foi grave e desproporcional, situação que exige a responsabilização dos respectivos culpados", dizia um trecho do texto.
Mas a proposta causou um racha no grupo majoritário da comissão porque parte dos senadores não identificou elementos suficientes para justificar a acusação desse crime (como provasque o presidente teve a intençãopromover a morteindígenas). Após intensas negociações, o termo foi retirado do relatório final. O texto aprovado, no entanto, pediu o indiciamento do presidente por crimes contra a humanidade.
Os crimes contra a humanidade são uma expressão que se originou no Direito Penalguerra e estão previstos no EstatutoRoma. O Brasil é signatário desse tratado.
De acordo com o estatuto, há 11 subtiposcrimes contra a humanidade, tais como: homicídio, escravidão, extermínio, deportação ou transferência forçadapopulação, agressão sexual, desparecimento forçadopessoas, perseguição, atos desumanos que causem sofrimento intencional, entre outros.
"A diferença básica é que o crime contra a humanidade não precisa ter uma inspiração racial, religiosa ou étnica (como no caso do genocídio). Basta que você identifique uma sérieataques generalizados e sistematizados contra a população civil", explicou Gustavo Badaró, professor da FaculdadeDireito da UniversidadeSão Paulo (USP) à BBC News Brasil.
Além do pedidoindiciamento por crimes contra a humanidade, Bolsonaro foi acusado tambémcrimes comuns e crimesresponsabilidade. Para a CPI, por exemplo,vezproteger a vida dos brasileiros da covid-19, o presidente teria contribuído para o agravamento da pandemia ao demorar a comprar vacinas, incentivar o usomedicamentos sem comprovação científica, promover aglomerações, entre outros comportamentos.
Em declaração sobre as acusações da CPI da Covid, Bolsonaro afirmou que os senadores "nada produziram a não ser o ódio e o rancor entre algunsnós. Mas nós sabemos que não temos culpaabsolutamente nada. Sabemos que fizemos a coisa certa desde o primeiro momento."
Em discurso no Plenário da Câmara dos Deputados, o parlamentar Bibo Nunes (PSL-RS) criticou aqueles que "durante meses chamaram o presidente Bolsonaro'genocida'" sem qualquer embasamento. "Eles não têm noção do que é um genocida! Genocida é quem extermina uma raça, uma religião, uma etnia. Até hoje no Brasil morreu 0,3% da população. Isso está muito distanteser um genocídio, e o culpam — culpam! —, como se ele fosse culpado por todas as mortes. Isso representa a divina decadência do bom senso da esquerda brasileira."
Em agosto2022, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) determinou a retirada do arum vídeoque o ex-presidente Lula chama Bolsonarogenocida. O partido do atual presidente alegava discursoódio e ofensa à honra e à imagemBolsonaro.
Ao longodois anospandemia, mais660 mil pessoas morreram no Brasildecorrência da covid-19.
Críticas a acusaçõesgenocídio
Desde aadoção, a convenção da ONU sobre genocídio enfrentou duras críticastodos os lados, principalmente por pessoas frustradas com a dificuldadeaplicar o termo a casos específicos.
Alguns analistas afirmam que a definiçãogenocídio é tão estreita que nenhum dos assassinatosmassa cometidos desde a adoção da convenção seria enquadrado nela.
Entre as principais críticas e objeções à Convenção do Genocídio estão: a convenção exclui grupos sociais e políticos; a definição é limitada sobre atos diretos contra pessoas, e exclui atos contra o ambienteque elas se sustentam ou preservamcultura; provar a intencionalidade é extremamente difícil; países-membros da ONU hesitamacusar outros países ou intervir neles, como foi o casoRuanda; não há um corpolegislação internacional que esclareça os parâmetros da convenção (ainda que isso esteja mudando à medida que o TPI decide sobre acusaçõesgenocídio); é difícil definir o que é "destruição parcial", e determinar quantos assassinatos configuram um genocídio.
Mesmo com todas as críticas, muitos juristas defendem que dá para reconhecer quando ocorre um genocídio.
Em seu livro Ruanda e Genocídio no Século 20, o ex-secretário-geral da organização Médicos Sem Fronteiras Alain Destexhe diz que "o genocídio é um crimeuma escala diferentetodos os outros crimes contra a humanidade e implica uma intençãoexterminar completamente um determinado grupo. O genocídio é, portanto, o maior e mais grave dos crimes cometidos contra a humanidade".
Destexhe se mostra preocupado que os termos genocídio ou genocida se tornaram vítimasuma "espécieexagero verbal, algo muito parecido ao que ocorreu com a palavra 'fascista'", transformando perigosamente esses termos"lugar-comum".
Michael Ignatieff, ex-diretor do Centro Carr para PolíticasDireitos Humanos da Universidade Harvard, concorda com a avaliaçãoDestexhe. Para ele, o termo "genocídio" passou a ser usado como uma "validaçãotodo tipovitimização".
"A escravidão, por exemplo, é chamadagenocídio quando, mesmo sendo uma infâmia, é mais um sistemaexploração do queextermínio", afirmou Ignatieffpalestra sobre o tema.
Para além das acusações jurídicas baseadasevidências ou não, na política o uso da palavra genocídio carrega uma estratégia política parecida com o que ocorre com outros termos, como comunista, fascista ou nazista.
"A função política é a satanização do outro. Você transforma o adversário,termos discursivos,uma posição inaceitávelum pontovista moral", diz Wilson Gomes, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e autor do livro Crônicauma Tragédia Anunciada: Como a Extrema Direita Chegou ao Poder.
- Este texto foi publicadohttp://vesser.net/brasil-62520987
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