Pessoas com fé não podem ser vistas como 'risco à civilização', diz Marina Silva:

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Marina Silva defende união contra Bolsonaro e diz que esquerda e evangélicos passaram por 'estranhamento'

Marina também critica a ausência da temática ambiental nos discursos dos principais pré-candidatos à Presidência da República até o momento. Segundo ela, eles não abordam o tema por acreditarem que ele não rende votos.

Apesarafirmar que não deverá se candidatar à Palácio do Planalto, Marina deixaaberto a possibilidadese candidatar a outros cargos neste ano.

Confira a seguir os principais trechos da entrevista.

BBC News Brasil - Os temasmeio ambiente e desenvolvimento sustentável não vêm sendo destacados pelos principais pré-candidatos à Presidência que se lançaram até o momento. Por que a senhora acha que isso está acontecendo? O ambientalismo perdeu apelo?

Marina Silva - O ambientalismo nunca teve tanto apelo no mundo e as pesquisas têm dado contaque mais80% da população brasileira tem noçãoque muitos dos problemas que já estamos vivendo têm a ver com as mudanças climáticas. Quase 90% da população brasileira não quer ver a Amazônia destruída.

O que eu acho que faz com que não haja essa prioridade no debate ainda não tenha se refletido no programa dos candidatos é o fatoque os candidatos continuam com uma visão desenvolvimentista que não dialoga com as necessidades do tempo presente no que concerne à transição energética, ao grave problema das mudanças climáticas ecomo enfrentar o problema das desigualdades sociais.

BBC News Brasil - Não há uma contradição quando a senhora diz que nunca se falou tantoambientalismo, mas, por outro lado, os principais atores políticos não estão tocando no assunto?

Marina Silva - Há uma contradição e há um equívoco grave. O primeiro ponto dessa contradição é o fatoque há uma sensibilidade muito grande por parte do eleitorado, segundo as pesquisas, e os políticos não trabalham esses temas no sentidofazer com que hajafato um compromisso da sociedade brasileiralevar adiante essa agenda até o pontoconseguir apoio e sustentação política paraimplementação [...] No caso das lideranças políticas, elas têm aquela visão equivocadaachar que isso não vai render votos.

BBC News Brasil - Há décadas, o movimento ambientalista repete que a floresta precisa valer maispé do que derrubada. Apesar disso, para citar apenas um exemplo,Xapuri, no Acre, na Reserva Extrativista Chico Mendes, vem sendo percebido um aumento significativo do desmatamento e a transformação da florestapasto. E isso não comprovaria que,fato, não há formas eficientesfazer essa floresta valer maispé do que derrubada?

Marina Silva - A floresta já vale maispé hoje do que derrubada. A floresta é um grande ativo econômico para o Brasil e para o mundo. Se você lança essa bombacarbono na atmosfera, que equivale a dez anosemissão do planeta inteiro, você desequilibra completamente o planeta. Olha o tamanho do prejuízo que isso causa às economias do mundo.

Crédito, Reuters

Legenda da foto, A floresta já vale maispé hoje do que derrubada, diz Marina Silva

BBC News Brasil - Como explicar isso para o moradorXapuri que está derrubando a floresta e trocando a cultura da seringueira pelo gado?

Marina Silva - A velha economia tem 400 anosinvestimento. A nova economia não tem como prosperar, da noite para o dia, sem apoio, sendo o tempo todo desarticulada, inclusive, por mudanças na legislação.

Hoje, a Amazônia estádisputa com vários grupos que atacam a florestaforma combinada. Você tem a concorrência do garimpo, a exploração ilegalmadeira, a criaçãogadobaixa rentabilidade. Você tem um Congresso Nacional o tempo todo querendo fragilizar a legislação ambiental.

Os invasores e os criminosos ocupam essas áreas e depois o Congresso as regulariza e,seguida, elas são vendidas para grandes plantadoresgrãos. O grande agronegócio diz que não se envolve com a grilagemterras, mas é parte da cadeia.

BBC News Brasil - A senhora lançou a Rede Sustentabilidade como uma alternativa política dentro do cenário brasileiro. Mas o partido corre o risconão passar pela cláusulabarreira nas eleições deste ano. Por que a Rede falhouse consolidar como uma força política no Brasil?

Marina Silva - Nós temos apenas nove anosidade e fomos criados já no bombardeio dos partidos tradicionais que fizeramtudo para nos inviabilizar2013 para evitar que eu pudesse sair candidata2014. Em 2013, a rede não deixouser registrada (como partido) porque não tínhamos os requerimentos legais, mas por uma deliberação políticanão permitir que fôssemos criados porque, naquele momento, eu tinha 26% das intençõesvoto.

Diante da impossibilidadesair candidata pela Rede, eu apoiei o (ex-governadorPernambuco) Eduardo Campos. Infelizmente nós o perdemos naquela tragédia (Campos morreuum acidente aéreo no dia 13agosto2014). A eleição2014 foi violenta, usou das fake news, que foram inauguradas aqui no Brasil na campanha da presidente Dilma (Rousseff) com o (marqueteiro) João Santana [...] Então a Rede nasce já nesse ambientemuito tensionamento contra aafirmação.

BBC News Brasil - Da forma como a senhora coloca, as causas da não-consolidação da Rede são externas. A senhora teria feito algo diferente ao longo desses anos?

Marina Silva - Fazer o diagnóstico com base na realidade dos fatos que não podem ser reescritos não significa que você esteja apenas colocando a responsabilidade nos outros. É que que não dá para dizer simplesmente que a Rede falhou e esquecer todos esses elementos que têm papel fundamental no processo das dificuldades que encontramosrelação ao crescimento da Rede.

BBC News Brasil - Desde 2010, essa é a primeira eleição presidencialque a senhora não deverá ser candidata. Por que a senhora decidiu não se candidatar à Presidência da República neste ano?

Marina Silva - Eu já dei uma contribuição por três vezes e acho que foi uma contribuição onde ficou muito claro que o tema da sustentabilidade é importante e uma referência para uma parte significativa da sociedade.

BBC News Brasil - A senhora cogita se candidatar a outro cargo neste ano?

Marina Silva - Esse debate está posto e vem sendo levantado não só pela Rede, mas por várias pessoas. ... (Existe a ideia)que eu deveria (me candidatar).

BBC News Brasil - Então, a senhora não descarta se candidatar a outros cargos neste ano?

Marina Silva - Isso está colocado dentro desse leque das avaliações que eu estou fazendo. (É preciso avaliar) qual é a natureza da minha contribuição nesse momento difícil que o Brasil está vivendo.

BBC News Brasil - A senhora vinha sendo citada como potencial candidata a vice-presidente na chapaCiro Gomes (PDT). A senhora aceitaria disputar as eleições como viceCiro Gomes?

Marina Silva - Esse é um debate que já foi esclarecido [...] Quando tive conversas com o ministro Ciro Gomes, nunca tratamos disso. O próprio ex-ministro Ciro Gomes confirmou que nós sempre debatemos sobre as questões que eu acho que são relevantes para o Brasil e os caminhosuma alternativa que não nos leve a repetir o passado e a não ter que ficarmos reféns desse presente que será um desastre para a história do Brasil.

Estou tentando contribuir num campo democrático e que não flerta com o autoritarismo como flerta Bolsonaro, como flerta (Sérgio) Moro. O que eu não acho é que se deva assinar, na questãoum projeto para o Brasil, um chequebranco para ninguém.

Crédito, Reuters

Legenda da foto, Marina Silva foi cotada para ser viceCiro Gomesuma corrida eleitoral

BBC News Brasil - Por que a senhora diz que o ex-juiz e ex-ministro da Justiça Sergio Moro flerta com o autoritarismo?

Marina Silva - Quando ele não cumpriu com o devido processo legal nas importantes investigações que vinham sendo feitas pela Operação Lava Jato, envolvendo empresários e políticos poderosos, e quando aatitudenão respeitar o devido processo legal leva à anulação dos processos, o que não significa que não houve casos gravíssimoscorrupção, isso é uma postura que eu considero antidemocrática.

Quando ele aceita ir para um governo autoritário, defensor da ditadura, defensortortura,ditadores como (Augusto) Pinochet (ex-ditador do Chile) e tantos outros, isso é flertar, sim, e ser, digamos, alguém que não era inocente. E se ele fosse inocenterelação à trajetóriaBolsonaro, paciência, não serve para governar o Brasil. E se ele era conscientetudo isso e mesmo assim foi colaborar com um governo como esse, também não serve para governar o Brasil.

BBC News Brasil - Moro argumenta que o que acabou anulando a condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), por exemplo, foram mudançasposicionamento do Supremo Tribunal Federal (STF). A senhora acha que a população vê Sergio Moro como alguém que flerta com o autoritarismo da mesma forma que a senhora?

Marina Silva - (Imagine que) você está à frente da maior operaçãocombate à corrupção, e eu não nego que ela deu uma contribuição relevante. De repente, você falharelação a tecnicalidades que depois poderão ser usadas para anular todo esse processofunçãouma militância político-judicial. Isso é um desserviço ao próprio trabalho que vinha sendo feito.

Agora, você acabafazer uma operação dessa magnitude, que tirou da disputa um dos principais favoritos da disputa eleitoral (em 2018, Lula não pôde disputar as eleições após ter sido condenado pela Operação Lava Jato) e você,seguida, vai servir ao governo vitorioso. Isso é um sinalque alguma coisa está errada.

BBC News Brasil - O PT vem tentando criar uma coalizão ampla nessas eleições e, ao que tudo indica, incluiria o ex-governadorSão Paulo Geraldo Alckmin. Como a senhora vê a presença do Geraldo Alckmin nesse campo?

Marina Silva - Eu acho que é uma forma, infelizmente velada,fazer um diálogo com o PSDB ou com o legado do PSDB. É um contato que deveria ter sido feito antes. Eu sempre digo que um dos grandes erros da nossa reconquista democrática foi que o PSDB preferiu uma aliança com ACM (Antônio Carlos Magalhães) e não com o PT. E foi a mesma coisa com o PT que, quando ganha o governo, prefere dialogar com o (José) Sarney, Renan (Calheiros), o (Fernando) Collor, (Paulo) Maluf a dialogar com Fernando Henrique (Cardoso).

Crédito, Reuters

Legenda da foto, Para Marina, aproximação entre Lula (foto) e Alckmin é uma forma veladao PT fazer um diálogo com o PSDB

BBC News Brasil - Caso o ex-presidente Lula vença as eleições, a senhora participaria do seu governo?

Marina Silva - Eu acho que não é o momentoa gente ficar fazendo esse tipodebate. Neste momento, nós temos que debater quais são os compromissos que os candidatos do campo democrático estão assumindorelação ao fortalecimento da democracia.

BBC News Brasil - Quão competitivo é o presidente Jair Bolsonaro nestas eleições?

Marina Silva - Não podemos ser negacionistas como ele. Ele tem conseguido manter uma baseapoiotorno20% e 30% (das intençõesvoto). Isso é um dado da realidade. Nós já subestimamos o Bolsonaro quando havia só o Bolsonaro. Agora que existe o bolsonarismo, não podemos subestimá-lo.

BBC News Brasil - A senhora é considerada uma evangélica progressista. Algumas pesquisas indicam que 40% do eleitorado evangélico apoia Bolsonaro. Por que o eleitorado evangélico dá tanto apoio ao presidente Bolsonaro?

Marina Silva - Não é só o evangélico, mas também há uma parte do eleitorado católico carismático que apoia o presidente Bolsonaro. As pesquisas dão 40% (a Bolsonaro), mas 60% não está apoiando e há muitos que estão apoiando outras alternativas, o que é muito bom. Bolsonaro faz a instrumentalização da fé na questão política e existem as lideranças evangélicas que também fazem isso, o que é muito ruim tanto para nós (evangélicos) quanto para a política.

Não tem nenhum problema você ter uma confissão religiosa e participar da política. Eu sou cristã evangélica, mas eu tenho como princípio a defesa do Estado laico e da não-manipulação da féquestõesnatureza política e vice-versa.

Crédito, Reuters

Legenda da foto, Marina Silva: "Não é só o evangélico, mas também há uma parte do eleitorado católico carismático que apoia o presidente Bolsonaro"

BBC News Brasil - A senhora acha que o eleitorado evangélico é alvopreconceito da esquerda brasileira?

Marina Silva - Eu acho que durante muito tempo houve um estranhamentoambas as partes e uma relação, muitas vezes,"catequese". Nem você deve, com afé, fazer proselitismo nos espaços da política e nem você, com avisão filosófica, ideológica, deve querer levar isso para os espaços da fé. Você deve tratar as pessoas como cidadãos.

Não posso ficar com a ideiaque qualquer pessoa que tenha fé, que tenha um credo religioso, seja um atentado à ciência, à democracia, à arte, ou a qualquer coisa. Nós somos um paísque mais80% das pessoas se declaram com fé. Não se pode fazer um discurso como se todas essas pessoas fossem um risco à civilização. Eu acho que isso é um problema e eu vejo que começa a ter um aprendizado.

BBC News Brasil - Alguns círculos progressistas no Brasil veem o eleitorado evangélico como uma espécieentrave para o avançopautas como a descriminalização das drogas e do aborto, como ocorreu recentemente na Colômbia. Naavaliação, essa críticarelação ao eleitorado evangélico é correta?

Marina Silva - Você não vai encontrar a defesa do aborto, por exemplo, entre a maioria esmagadora dos católicos, no meio dos espíritas euma sérieoutros credos. O que eu acho é que o debate deve ser feito sem essa demonização por parte dos que têm um credo religioso ou não e olhar para o mérito das coisas.

Como é que a gente faz para evitar que milhares e milharesmulheres continuem morrendo? [...] Eu tenho uma posição contrária ao aborto e disse issotodas as minhas campanhas para que as lutadoras feministas do meu país, conscientemente, fizessem aescolhavotarmim ou não com base efunção dessa questão. Nunca fiz dois discursos. Há aqueles que iam para dentro das igrejas e faziam um discurso e depois, lá fora, faziam outro.

BBC News Brasil - Para finalizar, gostaria que a senhora explicasse melhor o que a faz acreditar que Bolsonaro é um candidato competitivo nas eleições2022.

Marina Silva - Apesartudo o que ele tem feito,haver um caso graveconcussão envolvendo propinavacinas no governo dele (o caso ainda é investigado pelo Ministério Público Federal e pela Polícia Federal),ficar o tempo todo atacando as instituições,ser contra a democracia, defendendo regimes autoritários,ficar numa posição como essanão condenar o que a Rússia está fazendorelação ao povo ucraniano [...] apesartudo isso ele mantém essa basesustentação.

E mais do que isso. Agora, você tem um campo bolsonaristadireita, extrema, e radical e grupos que levam a política para uma formapolarização violenta. Então, não vamos fazer nenhum tiposubestimação. Aliás, subestimar traz embutido, quando isso é feito conscientemente, uma formaarrogância.

Quando a gente subestima porque não sabe, porque os elementos que você tem indicam que não há uma ameaça, aí você não conseguiu fazer a avaliação correta e tem que reconhecer que não fez a avaliação correta. Agora, sábios são os que aprendem com os erros dos outros. Estúpidos são os que não aprendem nem com seus próprios erros.

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