Combustível, pistas clandestinas, armas e rádios: como funciona logística do garimpo na terra yanomami:
Normalmente, esse transporte é feitolanchasalumínio rudimentares chamadas"voadeiras". Nessas embarcações são transportadas pessoas, alimentos e equipamentos usados na extração do ouro.
Além das voadeiras, os garimpeiros também usam pequenas estradas vicinais e uma intrincada malha aérea.
Namaior parte, ela é composta por voos e pistaspouso clandestinos que transportam pessoas e suprimentos, mas que também é utilizada para escoar a produçãoouro ilegal para fora dos garimpos.
A rota do combustível
O cicloações contra o garimpo ilegal na região foi batizadoOperação Xapiri. Ela é resultadoum processo movido pelo Ministério Público Federal (MPF)Roraima contra o garimpo ilegal na região e envolve órgãos como o Instituto BrasileiroMeio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama), a Agência Nacional do Petróleo (ANP), a Agência NacionalAviação Civil (Anac), Polícia Federal e Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP).
Diante daimportância estratégica, os agentes começaram a atuar para paralisar a estrutura aérea dos garimpos. Desde o início das investigações sobre a malha aérea clandestina que dá apoio aos garimpos na região, um dos principais "mistérios" era descobrir a origem do combustívelaviação que alimentava essa frota.
Os agentes, então, cruzaram informações contidasnotas fiscais e outros documentos e chegaram à filialBoa Vista da Pioneiro Combustíveis, uma das maiores distribuidorascombustívelaviação do Brasil, com 24 unidades nas regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste e Sudeste.
A empresa é apontada como a principal fornecedoracombustívelaviação para a estrutura aérea que dá suporte ao garimpo ilegal na terra indígena yanomami.
Pelas normas da ANP, distribuidorascombustívelaviação só podem vender o produto para postosabastecimento devidamente licenciados ou para aeronaves que tenham o certificadoaeronavegabilidade da Anac dentro do prazovalidade.
O certificado é uma espécie"autorização" para que a aeronave possa voar. As exigências, quando cumpridas, facilitam o rastreio do combustível.
Os documentos da empresa, segundo a investigação, apontam que ela vendeu pelo menos 860 mil litroscombustívelaviaçãoforma irregular. O valor é mais da metade do 1,5 milhãolitrosgasolina e queroseneaviação comercializados pela PioneiroRoraima.
Até chegar aos garimpos, no entanto, o produto faz uma viagemquase 4,6 mil quilômetros, saindoCubatão,São Paulo, até chegar a Boa Vista.
O combustível é produzido pela Petrobras, que o então revende para a Vibra Energia, novo nome da antiga BR Distribuidora, uma ex-subsidiária da Petrobras privatizada2019.
A Petrobras foi procurada pela reportagem e enviou uma nota afirmando que a Pioneiro Combustíveis não écliente.
"A Pioneiro Combustíveis não é clientecombustíveisaviação da Petrobras. A empresa adquire o produto das distribuidorascombustíveisaviação", diz a nota da estatal.
A Vibra Energia também foi procurada pela reportagem, mas até o momento da publicação deste artigo, ela não havia se manifestado.
Em nota, a ANP informou que a Pioneiro Combustíveis foi autuada por descumprimento da norma que regula a vendacombustívelaviação e que o caso ainda estátramitação, mas que ela se encontrasituação regular e autorizada a continuar vendendo o produto. Se for considerada culpada ao fim do processo, a empresa poderá ser alvomultas entre R$ 5 mil e R$ 5 milhões.
A BBC News Brasil contactou a advogada da Pioneiro Combustíveis e enviou perguntas sobre as conclusões preliminares da investigação. Por mensagemtexto, a advogada da empresa, Janaina Sousa Lopes, disse que a empresa "tem mais30 anos no mercado e não compactua com qualquer suposta irregularidade".
Distribuição do combustível
Depoischegar aos tanques da Pioneiro Combustíveis, parte do produto era, segundo as investigações, vendidoforma irregular para pontosabastecimento localizadosáreas próximas à terra indígena. Nesses locais, aviões que voavam para os garimpos seriam abastecidos clandestinamente.
Em um dos casos, os agentes descobriram que uma empresa que opera um desses pontosabastecimento comprou 40 mil litroscombustívelaviação. Em uma das fases da operação, os agentes chegaram a apreender sete aeronaves no local.
Dias depois, duas dessas aeronaves foram encontradas e destruídas pelo Ibamauma pistapouso clandestina próxima à terra indígena yanomami.
Em outra situação, documentos da Pioneiro mostram que ela entregou 39 mil litroscombustívelnovembro para um aeródromo que havia sido embargado pelo Ibamaoutubro, o que o proibiareceber o produto.
De acordo com as investigações, a empresa não poderia alegar desconhecimento sobre o destino do produto porque o combustível foi entregue pelos próprios caminhões da Pioneiro.
Outra parte do combustível, aindaacordo com os documentos, era colocada diretamente no tanqueaeronaves sem autorização para voar.
Segundo dados fornecidos pela própria empresa, ao menos quatro aeronaves sem autorização da Anac para voar foram abastecidas com pelo menos 4 mil litroscombustível. Na região, aeronaves sem autorizaçãovoo realizam os chamados "voo fantasmas", que fogemqualquer tipofiscalização.
Os agentes encontraram, ainda, pelo menos uma aeronave estrangeira sem autorizaçãovoo dada pela ANAC que recebeu combustível da Pioneiro e que foi flagradapistas clandestinas que operam próximo a garimpos.
No dia 13dezembro, o Ibama multou a Pioneiro CombustíveisR$ 1,5 milhão pelo transporte e comercializaçãogasolina e queroseneaviaçãoforma irregular. Além da multa, a empresa teve suas atividades suspensas.
No dia 21dezembro, no entanto, a Justiça FederalRoraima concedeu uma liminar suspendendo a multa e a paralisação das atividades da empresa sob o argumentoque ela poderia afetar atividades essenciais como o abastecimentoaeronaves que fazem o serviçoatendimento médico na região.
Pistas, armas, rádio e internet
Com o fornecimentocombustível garantido, os garimpeiros montaram uma ampla e bem conectada redepistaspouso clandestinas, que incluía até hangares improvisados no meio da selva.
Em um desses pontos, localizado a pouco maiscinco quilômetros do limite da terra indígena yanomami, agentes do Ibama encontraram um casarão às margensuma pista clandestina que serviaabrigo para aeronaves e helicópteros que operam no garimpo.
No local, os agentes também encontraram armas com mira telescópica, pistolas, muniçõesdiversos calibres, equipamentosrádiotelecomunicação e internet via satélite.
As armas,acordo com os integrantes da operação, servem para fazer a segurança do local contra assaltantes ou grupos rivais.
Os rádios são usados para a comunicação entre as pistas e as aeronaves e a internet via satélite ajuda os garimpeiros a romper o isolamento e a se comunicarem uns com os outros quando são desencadeadas operaçõescombate à atividade.
Diversas tentativasfuga durante a Operação Xapiri foram registradas pelos agentes. Em uma delas, um helicóptero decolouuma pista clandestina no momentoque o helicóptero do Ibama chegou ao local.
Dados preliminares indicam que pelo menos 277 pistaspouso clandestinas foram identificadas nos arredores da terra indígena yanomami.
Mistério resolvido
Para o procurador da República Alisson Marugal, as informações preliminares repassadas pelo Ibama foram úteis para resolver parte do que ele classificava como "mistério".
"Para nós, sempre foi um mistério saberonde vinha a enorme quantidadecombustível que abastecia as aeronaves que dão suporte ao garimpo na região. O que as informações mostram é que boa parte desse combustível chega a Roraimaforma legal e depois é repassada para essa rede que abastece os garimpos", afirmou o procurador.
Marugal explica que, a partir das informações repassadas pelo Ibama, o MPF deverá atuar tanto na direção criminal quanto naresponsabilidade civil.
"Temos que avaliar, do pontovista criminal, todas as responsabilidades dos envolvidos. E na esfera civil, nós vamos verificar se cabe propor alterações no sistemamonitoramento da vendacombustívelaviação para evitar que o produto abasteça atividades criminosas", explicou.
Além da investigação sobre a rede logística que dá apoio ao garimpo, o MPFRoraima eoutros Estados também apura outros ramos dessa atividade, como o escoamento da produção, o "esquentamento" do ouro ilegal e aintrodução no mercado legal do metal. Essas investigações se concentramEstados como Roraima, Rondônia, Pará e Mato Grosso.
Um estudo elaborado pela Universidade FederalMinas Gerais (UFMG) divulgado neste ano indica que 28%todo ouro comercializado no Brasil entre 2019 e 2020 tinha evidênciasirregularidades. Isso equivale a 49 das 174 toneladasouro registradas no país no período. Estima-se que a maior parte do ouro ilegal do Brasil seja oriundogarimpos na Amazônia.
Após a publicação da reportagem, a BR Aviation enviou a seguinte nota à BBC News Brasil:
"A BR Aviation, unidadenegócios da Vibra para serviçosabastecimentoaeronaves e atividades correlatas, informa que já solicitou esclarecimentos àrevendedora Pioneiro Combustíveis sobre as denúnciasque a empresa estaria vendendo combustível para empresas sem certificaçãoaeronavegabilidade e para apoio logístico ao garimpo ilegalreservas indígenas no estadoRoraima.
A companhia ressalta ainda que só comercializa combustíveisaviação para empresas que estejamsituação regular e que cumpram rigorosamente todos os requisitos legais esegurança. Além disso, a BR Aviation repudia veementemente qualquer atividade ilegal, tendo sempre pautadoatuação pelas melhores práticas éticas e comerciais."
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