Os desempregados 'desesperados para ter algo no currículo' que tentam a sortecursos profissionais:
Alguns culpam a crise econômica pela situação difícil. Segundo o IBGE, o Brasil tinha 14,1 milhõesdesempregadosjulho, taxa13,7% da população. Esse índice vem caindo lentamente, mas os economistas não acreditamuma ampla retomada do mercado nos próximos meses.
Já outros alunos reclamam das empresas por não darem oportunidades a quem tem mais40 anos. Por outro lado, os mais jovens dizem que a faltaexperiência também pesa na hora da seleção.
Para ir ao centro da cidade, muitas vezes eles gastam o pouco dinheiro que sobrou do mês, ou pegam emprestadoparentes. Tudo válido pela busca do certificadoconclusão da "reciclagem". Veem na profissãoporteiro (ou controladoracessos, ou recepcionista), uma chancereencontrar um salário novo no fim do túnel.
E quem sabe agora, com o currículo um pouco mais recheado, algum empregador não se convençaque chegou a horadar uma oportunidade?
'Ninguém me chama'
A rua BarãoItapetininga ganhou a famaMeca dos desempregados paulistanos por causa das dezenasagênciasrecrutamento, lan houses que escrevem e imprimem currículos, empresas terceirizadasserviços gerais, escritóriosadvogados trabalhistas e centenasanúnciosemprego colados nos postes do calçadãopedras portuguesas.
No quarto andar do edifício Claudina, número 273 da Barão, fica a escola Discimus Cursos e Treinamentos, um dos locais procurados por desempregados todos os dias.
Em média, ela vende cursos a 200 pessoas por mês: temzelador, portaria virtual, gerentecondomínio, monitoramento por vídeo, controladoracessos, informática básica. As aulas,duas salas, duram no máximo dois dias e custamR$ 40 a R$ 270, a depender do curso.
Antesfalar sobre questões técnicascada profissão, o professor Carlos Quiroga sempre ensina como fazer um currículo e dá dicasboas maneiras para se portaruma entrevista.
Segundo ele, no dia do embate final: 1) "Esteja descansado, não beba na noite anterior"; 2) "Evite gírias, tenha postura, vá bem vestido, nadaboné"; 3) "não fale malsua ex-empresa nemseus antigos colegas"; 4) "seja verdadeiro, não venha com textos prontos"; 5) "explique como você será útil para aumentar os lucros da empresa".
Para Aldo Amaro dos Santos,54 anos, o problema é que as entrevistas ainda parecem distantes. "Para mim, a dificuldade mesmo é ser chamado. Ninguém me chama. Nem para a entrevista", conta ele, desempregado desde março.
Foram 20 anos organizando um arquivo até que... "A empresa fechou na pandemia, fui o último funcionário. No final eu não não era nem mais registrado", diz, num dos intervalos da aula. "Acho que conta muito a idade, desistemme chamar quando veem 54 anos..."
Nos últimos meses, tem vivido do pémeia que construiu com seu emprego anterior, onde ganhava R$ 1.600 por mês. "Minha sorte é que desde jovem sempre guardei um pouquinho aqui, outro ali. Mas uma hora o dinheiro acaba: eu tinha para um ano, mas já são sete meses parado", conta ele, que mora no Jardim Monte Azul (periferia da zona sul paulistana).
Então Aldo dos Santos decidiu que era melhor mudarárea para ter mais chancesreceber um salárionovo - um porteiro ganha por voltaR$ 1.500São Paulo. "Acho que essa áreasegurança eportaria tem mais vagas e não se importam tanto com a idade", diz.
Para TailaneAlmeida, 24, o empecilho não é a idade, mas a faltaexperiência. "Se você tenta entrar numa área nova, pedem experiência. Mas como a gente vai ter isso se ninguém te dá uma chanceentrar? Não dão oportunidadevocê aprender...", diz ela, desempregada desde o início do ano.
De família pobre, Tailane parouestudar no 6º ano do ensino fundamental. Trabalhou como operadoratelemarketing e, mais recentemente,uma lanchoneteSão João do Miriti, na Baixada Fluminense, onde vivia com a família. Mas o comércio fechou na pandemiacovid-19. "Vim para São Paulo pra tentar alguma coisa. No Rio estava muito difícil", diz.
Hoje ela mora no Tremembé (periferia da zona norte), onde divide a casa com outros familiares. Soube do cursofiscalpiso por uma prima, que também emprestou os R$ 170 da inscrição. "Acho que é uma área que posso deslanchar, porque tem bastante vaga. A gente só coloca a mão onde consegue alcançar", diz.
Sem emprego garantido
Um dos sócios da escola Discimus é FábioOliveira,50, que por duas décadas trabalhou na áreasegurança. Em 2018, juntou-se a um primo e abriu a empresacursos no Edifício Claudina.
"Somos procurados por pessoas desesperadas por colocar alguma coisa no currículo. Eu diria que a maioria tem ensino médio incompleto, ou parouestudar no fundamental", diz ele, que anota os dados dos alunosuma planilha.
Segundo Oliveira, a procura pelos cursos aumentou durante a pandemia, principalmente depois que o governo Bolsonaro instituiu o auxílio emergencialR$ 600,abril do ano passado. "Muita gente pegou o dinheiro e pensou: 'preciso melhorar, fazer um curso, me atualizar", diz. Depois da diminuição do benefício para valores abaixo dos R$ 400, o movimento caiu um pouco, afirma.
"A maioria das empresas não exige experiência na áreaportaria, mas só contrata se tiver certificado", explica Oliveira.
Porém, o diploma não significa emprego garantido, ressalta. "Um médico consegue emprego só com a faculdade? Eu acho que não. Mas é o que sempre digo para os alunos: a qualificação é o que vai te diferenciar, ou, pelo menos, é o que vai colocar você na média", explica.
Segundo Oliveira, embora algumas empresas terceirizadas procurem a Discimusbuscacandidatos, a escola não promete emprego certo para ninguém.
Empresas e escolas que condicionam uma vaga à compraum curso, por exemplo, podem ser alvooperações da polícia por fraude. Há diversos vídeos na internet sobre desempregados que caíramgolpesempresas que garantiam trabalho se elas fizessem um cursodeterminado local - ao final, a vaga não existia.
Produçãocurrículos
Embora menos procurado, o cursoinformática básica (R$ 40 por quatro horasaula) também reúne alguns desempregados ao longo do mês.
"Muita gente não tem computadorcasa, às vezes não sabe nem ligá-lo. Mas, quando chega na empresa, os chefes pedem para a pessoa fazer uma planilhaExcel com nome dos visitantes do condomínio. A gente ensina o básico: abrir o Word, o Excel, fazer uma planilha", diz Oliveira.
Na aula, o professor Quiroga pergunta se Aldo dos Santos é quem faz o próprio currículo. "Minha irmã me ajuda", responde. "Sua irmã deve saber disso, mas, se não souber, explica que nunca colocamos um idioma estrangeiro se a pessoa estiver um nível abaixo do intermediário. Inglês básico, não. Melhor não colocar", explica.
Fazer o currículo dos desempregados é uma atividade que movimenta o comércio da BarãoItapetininga. Algumas lan houses escrevem e imprimem o documento por R$ 2. Uma delas fica na "sala F" do próprio Edifício Claudina, três andares abaixo da Discimus.
Quem produz o resumo é Robson Silva, 60, que há 22 anos trabalha no prédio. Na verdade, a principal atuação dele é tocar uma empresacontabilidade na mesma sala, mas aproveita o espaço para escrever e imprimir currículos aos desempregados - às vezes atégraça.
"O pessoal até tem acesso (a computadores), mas não sabe fazer. Hojedia, aparece pouca gente aqui, o pessoal da periferia não tem dinheiro para vir até o centro. Precisapelo menos uns R$ 30 pra condução e alimentação. Muita gente não tem. Faço muito currículograça aqui... O cara não tem dinheiro, eu pego e faço, e Deus ajude...", diz.
Silva também arrisca algumas dicas para um bom currículo. "O objetivo tem que ser claro: 'estou à disposição'. O que tiver, você pega", brinca.
"Se você tiver mais35 anos, coloca a datanascimento, nunca a idade. O recrutador tem que ler vários currículos por dia. Ele bate o olho e vê '40 anos', já exclui... Se tiver a datanascimento, ele vai ficar com preguiçafazer a conta", diz.
'Futuro melhor'
Outra escola que oferece cursosreciclagem profissional, o Instituto Educacional 6Maio, fica no primeiro andar da Galeria Boulevard, na rua 24Maio, paralela à BarãoItapetininga.
Ali, o cursoporteiro e fiscalpiso custa R$ 70 por oito horasaula. No período, o estudante aprende, por exemplo, os códigos repassados pelo rádio dos condomínios (QAP: na escuta; QRV: estou à disposição; QSM: repita a mensagem).
Depoisuma aula no iníciooutubro, a ex-vigilante Soraya Ribeiro, 55, desempregada desde fevereiro, exibiu orgulhosa à reportagem seu certificadoconclusão dos quatro cursos dos quais participou na manhãum sábado.
Antes, ela já trabalhoufaxineira, ajudante geral, assistenteprodução, vendedoraroupas e, no último emprego, foi segurança particular.
"Fiquei dez anos na empresa. Terminou o contrato, eles não renovaram e me dispensaram. Estou tentando uma nova área agora, na portaria, porque acho que nesse setor é mais fácilconseguir emprego com minha idade. Parece que mulher não serve mais depois dos 40", diz.
Soraya moraSão Caetano, e hoje vive da ajudauma das filhas e do seguro-desemprego. Mas as parcelas do benefício estão chegando ao fim. "A gente se vira como pode, esperando um futuro melhor, dependendo da mãoDeus", afirma.
Já Renan Batista, 38, foi ascensorista, telefonista, assistente administrativo e, nos últimos meses, detetive particular - até nessa área o serviço anda escasso.
Ele não tem um trabalho regular desde 2014, sobrevivendobicos e do salário mínimo que recebe como pensão por ser cadeirante. O custovida e o aluguelsua casa no Capão Redondo (periferia da zona sul) estão pesando no bolso. As conta se avolumam, diz. Se a situação apertar, ele pretende voltar para a Bahia para viver com a família que tem por lá.
Então ele decidiu tentar a vida como porteiro ou controladoracessos. "Estou investindo nessa área, porque tem mais vagas. Sou otimista: uma hora o emprego vai aparecer, tenho certeza", diz, segurando o certificado do curso.
Agora é a atualizar o currículo.
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