'Vi famílias dizimadas': relatos dramáticos da pandemia que deixou 400 mil mortos no Brasil:
Despedidas, mortes por faltarecursos básicos e óbitosdiferentes integrantes da mesma família são algumas das situações que marcam os trabalhadores na linhafrente.
"É o pior período para a saúde mental dos profissionaissaúde. Muitos médicos pararamdar plantão ou diminuíram o ritmotrabalho porque estavam muito estressados. Tem sido um período muito grandeestresse", relata o médico intensivista José AlbaniCarvalho.
Os profissionaissaúde relatam que cenas difíceisserem esquecidas se tornaram cada vez mais comunsmeio à pandemia. Para dimensionar a tragédia vivida no país400 mil mortes pela doença, a BBC News Brasil pediu para médicos relatarem algumas das situações mais dramáticas que presenciaram desde o ano passado.
'Vimos um paciente morrer atrás do outro'
O médico cirurgião Pierre Oliva Souza nunca esquecerá as cenas que presenciou no plantão que começou da noite14janeiro até o dia seguinte,uma unidadesaúdeManaus, no Amazonas.
Ele chegou para o plantão no ServiçoPronto Atendimento (SPA) Joventina Dias por volta das 19h. Na unidade, logo foi informado por um colega que não havia estoqueoxigênio medicinal — item fundamental para auxiliar pacientes com dificuldades respiratórias, como aqueles com quadro gravecovid-19.
"Havia apenas dois cilindrosoxigênio, que durariam por algumas horas somente, porque a unidade estava lotada. Normalmente, havia 20 pacientes com suspeitacovid-19 que precisavam desse oxigênio, mas naquele período tinha mais40", relata o médico.
Ele conta que alguns gestores da região falaram que logo chegaria um caminhão carregado com oxigênio. "Deram falsas esperanças, porque isso não era verdade. Não havia oxigêniolugar nenhumManaus, porque também faltou no mesmo diaoutras dezenasunidades do Amazonas", comenta.
Na madrugada15janeiro, o oxigênio acabou completamente no SPA Joventina Dias. "Ninguém tinha avisado, dias antes, que o estoqueoxigênio estava acabando no Estado. Foi muito chocante para todo mundo", diz Souza.
"A gente sabia o quanto essa faltaoxigênio seria danosa e grave. O governador chegou a comentar, na semana anterior, que o Estado estava à beirauma criseoxigênio, por causa do aumentocasoscovid-19. Mas nós, profissionaissaúde, não tínhamos noçãocomo,fato, a situação estava", diz o médico.
"Por causa da faltaoxigênio, a equipesaúde teve que assumir a difícil decisãoquem vai sobreviver ou morrer por conta da absoluta faltaestrutura. Vimos um paciente morrer atrás do outro naquela madrugada. Eles definhavam, buscavam respirar, ficavam com a coloração azulada e morriam asfixiados na nossa frente. Não tínhamos o que fazer", relata Souza.
Segundo Souza, somente no SPA Joventina Dias foram contabilizadas oito mortes naquela madrugada. O médico relata que, normalmente, havia duas ou três mortes por plantão. "Seilugar que registrou mais20 mortes por causa da faltaoxigênio", comenta.
A situação no Amazonas se tornou notíciatodo o mundo. Diversos pacientes foram transferidos para outros Estados. Posteriormente, a cidade recebeu abastecimentosoxigênio. "A situação foi normalizada depois. Hoje as coisas estão bem, principalmente porque os númerosinternações caíram nas últimas semanas", diz o médico.
Apurações apontam que a faltaoxigênio causou dezenasmortes no Amazonasmeadosjaneiro.
Então ministro da Saúde, Eduardo Pazuello afirmou, na época, que foi avisado por volta8janeiro que o alto númerointernaçõesManaus até quintuplicou o uso do oxigênio medicinal. Em razão disso, segundo ele, o Ministério da Saúde logo passou a tomar providências junto com o governo estadual e a prefeitura.
De acordo com a CNN Brasil, o secretárioSaúde do Amazonas, Marcellus Campelo, alegou,depoimento à Polícia Federal que a faltaoxigênio ocorreu porque a principal fornecedora do insumo no Estado informou somente dias antes que não teria capacidadeatender a demanda na região,razão do aumentointernações.
Segundo o secretário, o governo local logo comunicou o Ministério da Saúde e foram adotadas todas as medidas necessárias para o "enfrentamentouma crisesaúde sem precedentes na história do Amazonas".
Em meadosabril, o Ministério Público Federal (MPF) do Amazonas apresentou uma açãoimprobidade administrativa por omissão sobre a crise no fornecimentooxigênio medicinal no Amazonas. Entre os alvos do procedimento estão três secretários do Ministério da Saúde e o então responsável pela pasta, general Eduardo Pazuello, e dois integrantes do governo do Amazonas, entre eles o secretário estadualSaúde, Marcellus Campelo.
O MPF apontou falhas como omissão no monitoramento da demandaoxigênio medicinal e adoçãomedidas para evitar o desabastecimento, alémdemora nas transferênciaspacientes para outros Estados. O caso segue na Justiça Federal do Amazonas.
Maistrês meses depois, as cenasmeadosjaneiro agora fazem parte das piores lembranças da pandemia para os profissionaissaúde do Amazonas.
"Eu vou superar, porque nosso trabalho pede, mas não vou esquecer nunca. Apesartodo ensinamento que tivemos na faculdade, nunca pensei que fosse vivertempospaz aquilo que só acontece na guerra, que é escolher quem vai viver ou morrer", desabafa Souza.
'Vi famílias dizimadas'
O médico intensivista José AlbaniCarvalho, que atuaUnidadesTerapia Intensiva (UTIs)hospitais da grande São Paulo, comenta que algumas das situações mais tristes que presenciou envolvem as mortesmembrosuma mesma família pela covid-19.
"Ver famílias inteiras morrendo foi uma das coisas que mais me marcaram. Não foi uma, nem duas, nem três. Foram vários casosirmãos, pais e filhos ou outros parentes morrendo com diferençashoras ou dias. A grande verdade é que na minha vida inteira nunca tinha visto isso tão frequentemente", desabafa o médico, que trabalhaUTIs há mais30 anos.
"Teve uma famíliaque morreram três irmãosdois dias. Dois deles estavamleitos próximos. Isso impacta muito, porque você vê uma família ser dizimada", diz o médico.
Ele detalha o casotrês mortespessoas na faixa dos 40 anos que eram da mesma família. "O rapaz foi intubado com covid-19. A mulher dele foi internada, mas parecia que evoluiria bem e não precisaria ser intubada. Mas é muito difícil saber, porque às vezes um paciente demora 10 dias na UTI e você não sabe para onde ele vai, se vai melhorar ou piorar", comenta Albani.
"O rapaz acabou morrendo. A mulher dele, que a gente achava que daria altapoucos dias, piorou também e foi intubada. Dias depois, ela morreu. Depois, a irmã dela, que estava internada no hospital, também faleceu", relata o médico.
O intensivista foi o responsável por contar sobre as mortes à família. "Nunca é fácil comunicar isso, porque você acompanha essas famílias e aquele sofrimento durante as internações, que muitas vezes duram dias ou semanas", diz.
"Por incrível que pareça, esse comunicado para as famílias acaba sendo algo que a gente se acostuma. Não é ser insensível, mas é que há mais30 anos na UTI isso acaba se tornando algo do cotidiano. Mas claro, quando você vai comunicar três mortes para uma mesma família, como tem acontecidoalguns casos, é mais difícil", acrescenta Albani.
O médico comenta que os familiares dos pacientes sempre reconhecem o trabalho dos profissionaissaúde.
Enquanto precisam enfrentar númerosinternações e mortes como nunca tinham presenciadoperíodo recente, os profissionaissaúde também enfrentam o estresse causado pela faltacuidadosmuitosrelação ao coronavírus.
"Do pontovista da sociedadegeral os profissionaissaúde não são reconhecidos. Enquanto vemos as dificuldades, as mortes e trabalhamos sob muito estresse, há muitas pessoas nas ruas que falam que máscara é bobagem e fazem aglomerações. Olhar essas situações causa ainda mais estresse a esses profissionais", desabafa Albani.
'Ficamos com medodar a notícia da morte da esposa'
Para a médica Luisa Frota Chebabo, um dos momentos mais tristes da pandemia envolveu uma família completamente afetada pela covid-19. Ela conta que foram internados mãe, pai e filho no mesmo diaum mesmo hospital público da capital do RioJaneiro,novembro passado.
"A mãe (de 60 anos) chegou muito grave e foi intubada no momento da admissão (no hospital). O pai e o filho estavam um pouco mais estáveis", diz Luisa.
Ela comenta que os leitoscovid-19 estavam sobrecarregados na unidadesaúde, por isso os três integrantes da mesma família tiveramficar na áreaemergência.
"O filho foi mantidoobservação, sem precisaroxigênio suplementar. O pai necessitou do oxigênio. Os dois ficaram ao lado da mãe, intubadaestado grave", detalha a médica.
Luisa conta que o pai, que tinha 62 anos, dizia para todos os médicos que o filho havia frequentado festas e transmitiu a covid-19 para a família.
No dia seguinte à internação, o pai foi internadoum leito que ficou vago na enfermariacovid-19. O filho, por volta dos 30 anos, se recuperou e logo teve alta hospitalar. A mãe continuavaestado grave na emergência.
"O pai foi internado com piora progressiva. Todos os dias, ele perguntava pela esposa, que também estava piorando cada vez mais", detalha a médica.
Dois dias após chegar na unidadesaúde, a mãe da família morreu. "O marido dela, cada vez mais precisandosuplementaçãooxigênio, continuava perguntando pela esposa", diz Luisa.
"A gente falava para ele que não tinha como ver muitos detalhes sobre ela, já que estava internadaoutro setor. Mas a gente falava que ela continuava intubada, mesmo após a morte dela", relata a médica.
"Esse paciente era bem ansioso, então ficamos com medodar a notícia do falecimento e precipitar uma descompensação da parte respiratória. A própria família falou que era melhor não dar a notícia enquanto ele não melhorasse, por causa desse componenteansiedade importante", diz Luisa.
A equipe médica optou por informar sobre a morte da companheira somente quando o homem apresentasse melhora clínica. Cinco dias após o falecimento da esposa, ele foi intubado. Três dias depois, morreu. "Somente o filho ficou bem", diz Luisa.
A médica comenta que histórias como a da família que ela acompanhounovembro demonstram a gravidade da covid-19comparação a outras enfermidades. "Nenhuma outra doença tinha esse agravantemuitas pessoas da mesma família morrendo juntas. Os casos são impactantes", diz a médica.
Jovens internados
O cardiologista Roberto Kalil, que está há maistrês décadas na Medicina, não tem dúvidasque tem vivido o período mais dramáticosua carreira.
"O que impacta é a agressividade do vírus, que até então (antes do início da pandemia) era algo inesperado. É uma agressividade tanto na fase hospitalar como até,alguns casos, depois da alta", relata o médico, que atuahospitaisSão Paulo.
Uma das situações que mais impactaram Kalil foi quando notou, neste ano, a explosãocasoscovid-19 e a gravidade que a doença passou a ter também entre muitos pacientes mais jovens, que foram parar na UTI ou até morreram.
"No ano passado, a gente via pessoas mais velhas na UTI. Agora vemos muitos jovens. Muita gente fica grave rapidamente", diz à BBC News Brasil.
Ele comenta que o agravamento do quadro entre os mais jovens érazão da variante P.1, descobertajaneiroManaus. A maior incidência entre os mais novos é uma das características associadas à nova variante.
A maioria dos casos registrados2021São Paulo, por exemplo, se concentra entre pessoas20 a 54 anos. Na Grande São Paulo, dados do iníciomarço mostraram que 80% dos pacientes haviam sido infectados pela P.1.
Dados do governo paulista apontam que na primeira onda da pandemia mais80% dos leitos UTIs eram ocupados por idosos e portadoresdoenças crônicas. Agora, 60% das vagas são ocupadas por pessoas30 a 50 anos, a maioria sem doença prévia.
Essa variante do coronavírus é mais contagiosa, entre outros motivos, por causamutações que facilitaram a invasãocélulas humanas. Essa característica pode estar ligada a duas hipóteses que estão próximasserem confirmadas por cientistas: agravamento mais rápido do quadrosaúde e maior letalidade.
Conforme mostradoreportagem da BBC News Brasil19abril, uma das principais hipóteses para que a nova variante afete duramente os mais jovens é a busca tardia por atendimento, quando a doença está bastante agravada, muitas vezesforma silenciosa.
Um dos principais benefícios da busca por atendimento antecipado é o uso do oxigênio medicinal, que pode ajudar a evitar um maior comprometimento dos pulmões. Além disso, o acompanhamento médico logo nos primeiros sintomas pode evitar maiores complicaçõesoutros órgãos.
Para o cardiologista Roberto Kalil, o cenário da pandemia no Brasil pode melhorar, aos poucos, com a vacinação. Porém, diante da faltaprazo para o avanço da imunização, que ainda está na fase dos grupos prioritários, ele avalia que os trabalhadores na linhafrente ainda devem enfrentar muito estressedecorrência da sobrecarga no sistemasaúde.
"Espero que o cenário melhore a cada semana, mas ainda estamos longesair da pandemia', diz Kalil.
A pediatraestado grave
Entre as histórias que acompanhou desde o início da pandemia, o médico Lucas Antony se recorda do casouma pediatra aposentada que foi internada com a covid-19janeiro deste ano.
A idosa,85 anos, chegou ao hospital particular, na capital RioJaneiro, com dificuldades respiratórias. "Ela foi internada e usamos uma máscaraventilação não-invasiva nela. Mas a paciente não estava respondendo bem. Ela, como médica, também percebeu que não estava evoluindo bem", diz Antony.
O quadro da aposentada se agravou e ela precisou ser intubada no dia seguinte à chegada ao hospital. Antony afirma que a situação se tornou mais difícil por se trataruma paciente que era médica e sabia da gravidadeseu próprio quadro.
"Ela estava falando com a gente com a máscaraoxigênio e debatendo o caso dela quando informamos que ela precisaria ser intubada. Em certo momento, ela paroufalar, ficou olhando para frente e disse que só queria ir para casa", relembra o médico.
Enquanto era intubada, a pediatra reparouuma enfermeira que a auxiliou. "Ela perguntou se a enfermeira já havia sido, na infância, atendidaum determinado serviço médico. A enfermeira disse que não que ela soubesse, mas a pediatra falou que lembrava dela", relata Antony.
Horas após a pediatra ser intubada, a enfermeira entroucontato com a mãe. "A mãe da enfermeira disse que ela levava a filha para ser atendida naquele serviço (citado pela médica aposentada) na infância. Então, provavelmente essa pediatra atendeu a enfermeiraalgum momento", conta o médico.
Dois dias após ser intubada, a pediatra aposentada não resistiu às complicações da covid-19. O médico relata que ficou comovido com o caso da paciente por ser uma médica que sabia que não resistiria à doença e pela lembrança que ela teve da enfermeira. "Foi uma história que me marcou", diz.
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