Ivermectina: o que a ciência diz sobre a 'nova cloroquina':
O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) fez menções à ivermectina, e muitas mensagens circularam no WhatsApp recomendando seu uso "para prevenir o contágio".
Além disso, alguns médicos vêm recomendando, nos consultórios e na internet, que as pessoas a tomem para evitar ou tratar a covid-19.
Mas tudo isso parece ignorar um fato simples, mas importante: não há até agora comprovação científicaque a ivermectina - ou qualquer outro medicamento - previna ou trate a covid-19.
"A ivermectina é hoje o que a cloroquina eramarço. As pessoas se convenceramque ela pode ter algum efeito (contra a covid-19) e foram atrásforma descontrolada", diz a infectologista Raquel Stucchi, professora da Universidade EstadualCampinas (Unicamp).
'As pessoas estão desesperadas'
A ivermectina é comercializada desde o início dos anos 1980 para combater verminoses e parasitas, como piolhos, pulgas e carrapatos,animais e seres humanos.
O medicamento atua no sistema nervoso central dos vermes e parasitas, provocando paralisia, e costuma ser usadodose única.
Stucchi conta que há mais ou menos seis semanas começou a receber mensagensconhecidos e pacientesbuscainformações sobre a medicação.
"Elas perguntam se devem tomar porque souberam que todo mundo está tomando. Nunca tinha ouvido falarpessoas pedindo ivermectina40 anosprofissão", diz Stucchi.
A infectologista afirma que a grande procura ocorre,parte, porque é um remédio barato e que costuma causar poucos efeitos colaterais. Mas também atribui isso a colegasprofissão que têm indicado seu uso aos pacientes.
Stucchi cita o casouma amiga que foi à dermatologista para renovar receitascremes e saiu da consulta com uma receita para ivermectina.
A dermatologista disse que ficava a critério da paciente usar ou não, mas que tinha receitado porque se sentia na obrigaçãoavisar que acreditava que o medicamento previne a covid-19.
"Não seionde tiraram isso, porque essa informação não existe. Acho que é porque as pessoas estão desesperadas por uma cura e aconteceu um movimento muito bem planejadodivulgar a ivermectina como se ela fosse esse milagre", diz Stucchi.
Estudo preliminar levou à procura por medicamento
Os dadosbuscas no Google mostram que a procura pela ivermectina no Brasil deu um salto pela primeira vez no inícioabril.
A esta altura, a cloroquina e o antiparasitário nitazoxanida, vendido no Brasil sob a marca Annita, eram os mais procurados nas farmácias contra a covid-19, mesmo sem eficácia comprovada.
A cloroquina era há tempos propagandeada por Bolsonaro como um remédio eficaz contra o coronavírus, e a nitazoxanida seria testada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações para o mesmo fim.
O aumento do interesse por eles fez com que ambos passassem a ser controlados, ou seja, comprados só com receita, o que restringiu o acesso.
Ao mesmo tempo, um estudo indicou que a ivermectina poderia matar o coronavírus. A pesquisa da Universidade Monash, na Austrália, concluiutesteslaboratório que o antiparasitário pode neutralizar as propriedades infecciosas do vírus48 horas.
Mas trata-se apenasuma análise preliminar, na qual a substância foi testadauma culturacélulas, e ainda há outros passos fundamentais até que seja possível verificar se esse efeito também ocorrepessoas.
Um bom resultado nesta etapa está longegarantir a eficácia contra o vírus. Além disso, a dose testada no estudo, se usada como medicamento, poderia gerar sérios danos à saúde.
A revista Science destacou ser fundamental "uma investigação mais aprofundada sobre possíveis benefícios (da ivermectina)humanos" no combate à covid-19.
"Não há nenhuma evidência científicaque funciona, zero, nada", reforça Alberto Chebabo, vice-presidente da Sociedade BrasileiraInfectologia (SBI) e diretor médico do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, da Universidade Federal do RioJaneiro.
"O que teve foi esse teste in vitro que mostrou que a ivermectina pode ter uma atividade antiviral, mas a dose necessária para isso também mata as células do organismo. Então, precisaríamosuma hiperdose, que seria tóxica para nós, para ela funcionar."
Ivermectina é o mais buscado no Google no Brasil
A procura por ivermectina no Google caiu ao longoabril e teve um novo picobuscasmaio, mas nada comparado ao que vem registrando desde o início do mês passado.
As buscas pelo medicamento cresceram 125% do iníciojunho até 20julhocomparação com os 50 dias anteriores, diz o Google.
Nesta mesma época,um vídeo publicado8junho, o jornalista Alexandre Garcia afirmou estar tomando a ivermectina "preventivamente". "Não vou fazer propaganda nenhuma, não estou recomendando, só vou contar para vocês, que a gente é amigo, né?", disse Garcia.
Em 11junho, Bolsonaro também se referiu à ivermectina durante uma transmissão pela internet. "Acho que o resultado é até melhor que a cloroquina, porque mata os vermes todos", afirmou o presidente.
O infectologista Alberto Chebabo acredita que a ivermectina ganhou popularidade conforme cresceram as evidênciasque a cloroquina não é capazcombater o coronavírus.
"Ela é uma droga pouco tóxica, fáciltomar eencontrar, aí virou a bola da vez. Tem um montegente usando e recomendando porque todo mundo quer uma balaprata contra a covid-19", diz Chebabo.
Os dados do Google apontam na mesma direção. A empresa diz que a cloroquina vem perdendo espaço para a ivermectina nos últimos meses. Entre maio e julho, a ivermectina foi três vezes mais buscada do que a cloroquina e é hoje o medicamentoteste contra a covid-19 mais buscado no Brasil.
De acordo com a empresa, o país é o terceiro país do mundo com mais interesse pela droga, atrás apenas da Bolívia e do Peru, onde a ivermectina tem sido usada no tratamento da covid-19.
Milhõesvisualizações no YouTube
Também se multiplicaram na internet defesas do suposto benefício do antiparasitário contra a covid-19.
Nas redes sociais eaplicativosmensagens, circulam inúmeros depoimentospessoas que afirmam ter tomado o medicamento e se recuperado da doença. Citam até mesmo protocolos supostamente elaborados por médicos contra a covid-19 que incluem a medicação.
No YouTube, há vídeos sobre o assunto que passam1 milhãovisualizações. Muitos deles foram publicados no iníciojunho, quando disparou o interesse pela droga no Brasil.
Os vídeos da médica Lucy Kerr, que é especializadaultrassonografia e uma defensora da ivermectina, estão entre os mais acessados e compartilhados. Neles, ela ensina "protocolostratamento" com a medicação contra a covid-19.
Kerr diz que isso é importante para divulgar a eficácia da ivermectina que não é abordada pela "grande mídia". A médica afirma que há "um monteestudos" que atestam que a droga funciona contra o coronavírus.
"Na República Dominicana, 1,3 mil pessoas foram tratadas com o medicamento, que garantiu 99%cura. Estão saindo estudos observacionais que comprovam 100%cura com a ivermectinacinco dias com pacientes internados, mais graves", diz ela.
Mas os estudos observacionais são considerados só uma das etapas do processouma pesquisa.
"Eles têm uma relevância baixa, porque não são, por exemplo, randomizados (quando participantes são definidosforma aleatória). Podem ter muitos vieses. Não são adequados (para atestar a eficáciaum medicamento)", diz o infectologista Sergio Cimerman, diretor científico da SBI.
A Sociedade BrasileiraInfectologia emitiu, no fimjunho, um alerta contra o compartilhamento na internetsupostos tratamentos para a covid-19.
A entidade e o Conselho FederalMedicina dizem que médicos não devem compartilhar e incentivar o usomedicações que não têm comprovação científica, ainda que possam receitar individualmente esses remédios, ressaltando que não há comprovação.
Kerr defende a ivermectina como prevenção e tratamento dos primeiros sintomas da covid-19 e afirma não estar cometendo irregularidades.
"Temos muitas comprovaçõesque funciona. Há relatos extraordinários. Não daria tempo para termos grandes estudos neste momento", diz a médica.
O que dizem a Anvisa e o Ministério da Saúde?
Diante do aumento da procura pela ivermectina, a Agência NacionalVigilância Sanitária (Anvisa) divulgou9julho uma notaque alertou contra os efeitos colaterais do medicamento e disse que não há provassua eficácia.
"Também não existem dados que indiquem qual seria a dose, posologia ou duraçãouso adequada para impedir a contaminação ou reduzir a chancegravidade da doença. Os resultados encontrados in vitro não podem ser tomados como verdadeiros in vivo", disse a agência.
A Anvisa informou ainda que havia então 26 estudos clínicos da droga contra o coronavírus, entre eles apenas um feito no Brasil, pela Universidade FederalSão Carlos, que só deve ser concluídomeados do ano que vem.
O documento também dizia que a Anvisa não recomendava seu uso para tratar a doença ou como prevenção. Mas a agência suprimiu esse trecho, bem como um alerta contra os perigos da automedicação,uma segunda versão da nota publicada no dia seguinte.
O novo comunicado manteve a mençãoque um remédio deve ser usado conforme indica a bula, mas acrescentou que não há estudos conclusivosque a ivermectina não funciona contra o coronavírus.
No dia da publicação da primeira nota, Bolsonaro voltou a falar sobre a ivermectina ao vivo na internet. O presidente disse que as pessoas que o criticavam por se tratar com cloroquina deveriam "ao menos apresentar uma alternativa".
"Ora, se não dá certo a hidroxicloroquina, você tem que tomar a ivermectina ou o Annita, que é outro que tá muito comentado por aí, que são eficazes no tratamento do coronavírus", afirmou.
A Anvisa diz que a mudança da nota não teve relação com a opiniãoBolsonaro e que simplificou o texto para não gerar "conclusões equivocadas". Quando houver estudos científicos conclusivos, "irá debater se inclui ou não a indicação do medicamento contra a covid-19".
A BBC News Brasil apurou quefato não teria ocorrido uma interferência do Planalto neste episódio.
A posiçãoBolsonaro já era conhecida antes da divulgação da primeira versão. E antes do presidente fazer a transmissão, a diretoria da Anvisa já tinha concluído que a nota precisava ser revista, porque a posição da agência teria sido mal interpretada. Não caberia à agência recomendar ou não o usoum medicamento, uma atribuição dos médicos e do Ministério da Saúde.
À BBC News Brasil, o Ministério da Saúde disse que "não há orientaçãousoIvermectina para o tratamento da covid-19".
A pasta afirmou ainda que "até o momento, não há nenhum medicamento, substância, vitamina, alimento específico ou vacina que possa prevenir a infecção pelo coronavírus ou ser utilizado com 100%eficácia no tratamento".
Ivermectina para metade da população
Mesmo sem respaldo científico, cidades brasileiras têm adotado a ivermectina para tratar pacientes com a covid-19 ou, supostamente, evitar a infecção pelo vírus.
Em Itajaí, onde há 2,7 mil casos confirmados e 73 mortes pelo novo coronavírus, o medicamento foi distribuído para pessoas com ou sem sintomas da covid-19.
A Prefeitura diz que, para receber o remédio, a pessoa precisa passar por uma consulta médica e assinar um termo no qual atesta saber que não há provas científicasque ele funcione contra o coronavírus.
O prefeitoItajaí, Volnei Moraston (MDB), que é pediatra, acredita que a ivermectina é a melhor alternativa para a covid-19 no momento.
"Desde meadosmarço, quando a pandemia chegou à nossa região, estamos com sucessivas medidas restritivas. Mas ainda assim os casos aumentaram. Não podemos ficar apenas nas medidas que não são farmacológicas", justifica.
Assim como Kerr, ele cita estudos observacionais e argumenta que "não é possível esperar até que a ciência comprove a eficáciauma medicação."
A Prefeitura estima que, entre os cerca200 mil habitantes, metade da população já recebeu o medicamento.
O TribunalContasSanta Catarina cobrou o prefeito sobre o gastoR$ 4,4 milhões com ivermectina e questionou por que não houve licitação.
Moraston afirma que licitação não foi feita porque há "uma situaçãoemergênciasaúde pública" e afirma que pagou R$ 5,90 por cada caixa com quatro comprimidos, enquanto, segundo o prefeito, nas farmácias locais, o preço varia entre R$ 15 e R$ 30.
Ele diz que não está prejudicando a populaçãoItajaí ao distribuir o remédio. "Em último caso, fiz um tratamento antiparasitário. Uma vez por ano, é bom que todo cidadão faça", diz.
O prefeito afirma ainda que, enquanto os casos na cidade continuarem aumentando, seguirá distribuindo a ivermectina, mesmo sem provasque ela funcione.
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