As crianças da zika esquecidasAlagoas, entre o futuro incerto e o medo da pneumonia:
Na ruaque a família mora no bairroTabuleiro do Pinto, na periferiaMaceió, as casas não têm esgoto tratado, a rua não tem asfalto e há muito lixo espalhado pelo mato.
"Aqui é tudo zero, bem caótico". No terreno vizinho à casaAna, uma enorme montanhalixo forma uma mistura pantanosarestoscomida, entulho e sobrasmaterialconstrução.
Todos os membros da famíliaAna já pegaram pelo menos uma das doenças transmitidas pelo mosquito Aedes aegypti: zika, dengue e chikungunya. Mas nenhuma delas transformou tanto a história da família como a zika, que2016 atingiu Yuri, Yan, e Yanara, justamente quando a jovem estava grávidadois meses e voltavauma viagem ao interior do Estado, aos 17 anosidade.
"Aos cinco meses da gestação fizeram o ultrassom e detectaram a suspeitamicrocefalia na bebê. Eu comecei a chorar, entreipânico, a minha filha perguntava o que era que os médicos estavam dizendo e eu não tinha coragemcontar. Ela sonhava que a filha dela ia ser linda, e contar aquilo para ela foi muito difícil", lembra Ana, mãeYanara, que acompanhou a filhatodo o pré-natal: a jovem é deficiente auditiva, e coube à mãe mediar e "traduzir" toda a comunicação com os médicos e profissionaissaúde,libras.
A família do pai, ex-namoradoYanara, paga um planosaúde para Dayara, mas não convive com a criança.
Dayara foi uma das 82 crianças que,2016, nasceramAlagoas com a síndrome congênita do zika, alteração no desenvolvimento do feto que causa diversos efeitos neurológicos no recém-nascido. O mais conhecido deles é a microcefalia, condiçãoque a cabeça do bebê é menor do que a cabeçacrianças com a mesma idade e sexo.
De acordo com a secretariaSaúde do Estado, existem atualmente 614 crianças com a síndrome sob atendimentoAlagoas desde 2015, quando um surtozika no Nordeste do Brasil foi seguidoum aumento anormal nos casosmicrocefalia entre os recém-nascidos.
A síndrome congênita do zika, registradabebês expostos ao vírus ainda no útero, abrange outras manifestações como malformações na cabeça, movimentos involuntários, convulsões, irritabilidade, problemasdeglutição, contraturasmembros, baixa visão e audição.
Aos três anosidade, dependente dos cuidadostempo integral da avó, Dayara ainda não consegue sentar sozinha. Não fala, não anda, é cardiopata e está desenvolvendo glaucoma no olho esquerdo. Ana costumava esperar respostas que dessem mais qualidadevida e oportunidades para a neta, mas reduziu a expectativa.
"O meu objetivo hoje é manter a Dayara viva o maior tempo que eu puder. As outras coisas já são um acréscimo", diz, desanimada. Uma das causas mais frequentesmortecrianças com microcefalia é a pneumonia, doença que assombra cada vez que Ana precisa correr com a menina para o hospital.
"Só este ano a Dayara já teve três pneumonias. Tenho muito medo por ela", diz.
Com Dayara, Ana já viajou no ano passadoMaceió até Porto Alegre atrástratamentos mais modernos. Em 2019, passou uma temporadatrês meses morandoCampina Grande, na Paraíba, cidade referência na pesquisa sobre a doença.
"Descobri exames que,três anos, Dayara nunca tinha feito". É a avó quem cuida da neta tantocasa quanto nas consultas e tratamentos - para que a mãe, Yanara, possa cursar a faculdadeLetras - Libras e realizar o sonhoser professora.
"Dayara está sempre sorrindo, para ela não tem tempo ruim. É o amor da minha vida", conta a avó, que convive também com o medo do Aedes.
Em 2019, o EstadoAlagoas voltou a registrar 48 casos prováveiszika, quase o dobrorelação ao ano anterior, segundo boletim divulgado pelo Ministério da Saúdeabril; além disso, este ano o ministério colocou 62 cidadesAlagoassituaçãoalerta para riscosurtosdengue, zika e chikungunya.
Mas Ana diz que não recebeu a visitanenhum representante do poder público que oferecesse ajuda para combater o mosquito, tirar o lixo acumulado na rua ou mesmo distribuir repelentes, para evitar que mais grávidas sejam picadas. "A zika não sai mais na televisão. Ninguém fala mais nada."
Nem mesmo quando Dayara nasceu,2016 - anoque a Organização Mundial da Saúde declarou que a zika, a microcefalia e a síndrome eram emergência internacionalsaúde - a avó sentiu que o bem-estar da neta fosse prioridade da agenda pública.
"Dayara só fez exames quando nasceu e ficou 13 dias internada. Depois, não fez mais nenhum. A primeira vez que ela foi fazer um eletrocardiograma para ver se tinha problema do coração foi quando ela tinha um ano e meio", lembra Ana.
Quando as imagens dos bebêscabeça pequena nascidos no Nordeste começaram a correr o mundo, as histórias e personagens que se tornaram mais conhecidos eramfamílias da Paraíba e ePernambuco - Estadosque o númerocasos foi maior.
Em 2015, enquanto Pernambuco e Paraíba registraram, respectivamente, 1.031 e 429 casos suspeitosmicrocefalia relacionada ao vírus zika, Alagoas, Estado com o menor ÍndiceDesenvolvimento Humano (IDH) do Brasil, percentuais baixíssimosacesso a saneamento básico e renda per capita que corresponde a apenas um quarto da média nacional, teve 114 casos suspeitosmicrocefalia, segundo o Ministério da Saúde.
Procurado pela reportagem, o ministério afirma que repassou R$ 1,3 milhão ao EstadoAlagoas entre 2016 e 2018 para a execução das ações previstas no Plano NacionalEnfrentamento do Aedes e suas consequências. Informa também, por meionota, que Alagoas tem 52 serviçosreabilitação, sendo 19 centros especializados, e 31 serviçosreabilitação credenciados pelas prefeituras.
Há também uma rede142 unidades do NúcleosApoio à Saúde da Família (que prevê visitas à residência para saúde básica),99 dos 102 municípios alagoanos, segundo a pasta. Já a secretariaSaúde estadual diz que tem o papelarticular com os municípios e capacitar as equipes para atender as crianças com a síndrome - o que exige especialização e constante pesquisa, já que trata-seuma doença ainda pouco conhecida pela ciência. A prefeitura diz que monitora as crianças com a síndrome e as acolhe no grupo Ciranda do Cuidado, que prevê reuniões mensais das crianças e famílias com especialistas para orientar e tirar dúvidas.
No entanto, o apoiotodas as esferas do poder público às crianças está muito longe do suficiente e é alvomuitas críticas por parte da Associação FamíliaAnjos do EstadoAlagoas (Afaeal), criada2017 para lutarmaneira mais organizada pelo direito das crianças e que representa 210 famílias afetadas pela síndrometodo o Estado.
"A maioria das crianças até hoje não recebeu as cadeirasrodas, e os centrosreabilitação do Estado, que são para receber todas as pessoas com deficiência, e não só as crianças com a síndrome, estão sempre lotados. Por isso que eles alegam que cada criança só pode fazer sessões30 minutos (de terapias),vez50", afirma a presidente da Associação, Alessandra Hora dos Santos.
"As crianças que são um pouco mais assistidas são as que conseguem pagar algum planosaúde. Pelo SUS está uma calamidade".
Ana, avóDayara, foi uma das primeiras mães a participar da associação. Elas se mantêm conectadas por um grupoWhatsApp, e compartilham o luto a cada notíciaum novo "anjinho", apelido que elas dão às crianças que morrem por efeitos decorrentes da síndrome.
Crianças com microcefalia podem ter mais dificuldadedeglutição e mais riscobroncoaspiração - quando líquidos ou alimentos são aspirados para as vias aéreas - tornando-se mais vulneráveis a infecções pulmonares.
De 2016 para cá, já faleceram Maria Giulia, Ana Clara, João Miguel, Isabelle e Emerson, este últimomaio deste ano - todos por complicações relacionadas à pneumonia. Desde 2015, 29 crianças com a síndrome congênita do zika já morreramAlagoas, segundo a secretariaSaúde.
Além da incerteza sobre o futuro da neta, a zika deixou outras dúvidas que continuam sem respostas para a família. Yan, o filho mais velhoAna, está noivo há cinco anos, mas teme ter filhos por medo que o vírus da zika ainda esteja ativoseu organismo.
"Ele teve zika muito forte e diz que tem medo porque vê o meu sofrimento, o sofrimento da Yanara", diz Ana.
Gravidez na juventude e maratona no transporte público
Sentada enquanto aguarda o início da sessãofisioterapiauma sala na Universidade EstadualCiências da SaúdeAlagoas (Unicsal),Maceió, a donacasa Maria José GuilhermeOliveira não sabe dizer quantos anos tem. Quando a reportagem pergunta, ela tira da bolsa acarteiraidentidade, que mostra que ela nasceu1978. Analfabeta aos 41 anos, ela conta que aprendeu a escrever o próprio nome há três,um curso gratuitoum colégio da cidade.
"Era minha vontade antiga, eu tinha vergonhacarimbar meu dedo (no lugar da assinatura)", conta. "Queria continuar, mas depois que meu neto nasceu não tenho como ir para a escola, ele é muito apegado comigo."
Maria trabalhava como faxineira, mas precisou parar com o trabalho para dar conta da rotinaconsultas e tratamentos do neto Erik Gabriel,3 anos, que nasceu com a síndrome congênita do zika. Maria morauma casa no conjunto Benevides 2, uma das regiões mais violentasMaceió, com o marido, dois filhos e um sobrinho.
Hoje eles sobrevivem com o salário mínimo que recebem do BenefícioPrestação Continuada (BPC) a que as crianças que nasceram com a síndrome congênita têm direito desde 2016, e dos R$ 250 que eles recebem do Bolsa Família.
Maria diz que metade do dinheiro do benefício vai para os remédios; uma caixaanticonvulsivo, por exemplo, custa R$ 300. Ela também precisa comprar fraldas, que pediu na secretariasaúde do Estado, mas não conseguiu. "Do dinheiro dele eu só pego R$ 100 para ajudarcasa."
A secretaria estadual diz que fornecer fraldas é responsabilidade da prefeitura. Já a secretariasaúde do municípioMaceió afirma que as fraldas só são gratuitas para crianças a partir dos três anosidade.
Mas quem vê o alegre e espevitado Erik falando e correndo pelos corredores nem imagina que, poucos meses antes, ele havia passado por uma complexa cirurgia no coração. "O sangue dele não corria direito no corpo. Agora colocaram a veia dele no lugar, a cirurgia foi muito boa", explica Maria. "A médica disse que ele vai usar uma prótese na perna, mas com o coração está tudo bem", diz, aliviada.
Depois da cirurgia, o desenvolvimento do menino deu um "salto", conta a avó: está falante, anda com firmeza, ágil e menos irritadiço do que antes. "Eu imaginava que ele ia ficar diferente do sonho que eu queria, por causa do problema. Mas nem parece", comemora a avó. "Ele é um guerreiro."
A mãeErik e filhaMaria é Sandra,18 anos, que tinha só 15 quando engravidou. Mora na mesma rua que Maria, mas casou, tem duas bebês e pouco convive com Erik. Nem ela nem o marido quiseram conversar com a reportagem. "Ela não aceitou muito bem a doença do Erik. Está aceitando melhor agora", diz Maria.
Pesquisa realizada2016 pelo Anis - InstitutoBioéticaBrasília, da antropóloga e pesquisadora Débora Diniz, aponta que a maioria das mulheres afetadas pelo zika vírus na gestaçãoAlagoas é jovem, negra ebaixa escolaridade. O estudo aponta, ainda, que a maioria delas vivenciou a primeira gravidez ainda na adolescência.
A rotinaErik e Maria é pesada: o menino tem sessõesterapia ocupacional às terças-feiras, fonoaudiologia às quartas e fisioterapia motora às quintas, todastrinta minutos cada. Para chegar até as consultas, Maria pega dois ônibus,viagens que levammédia três horas, carregando no colo o menino e a bolsa com roupas, fraldas e comida para o dia. O calor e a lotação deixam Erik agitado, o que torna a viagem mais difícil.
"Ele fica nervoso dentro do ônibus, morde, belisca, grita", diz Maria. "Fico aperreada para chegar logocasa e arrumar tudo. Vou dormir meia noite, acordo umas 5h para arrumar a bolsa dele e fazer alguma comida para os outros", diz a avó, que não reclama dos cuidados com o neto.
"Eu não sabia o que era microcefalia, mas depois que eu entendi, pensei: agora vou cuidar mais do meu neto do quemim. A minha vida como era antes acabou; agora eu sou só para ele", diz.
Uma das queixas mais recorrentes das mãesAlagoas é justamente a faltaum transporte mais adequado para levar as crianças, como um carro ou uma vanuma das secretarias municipais ou estaduais.
Muitas crianças com a síndrome precisamcadeirasrodas ou órteses, equipamentos usados para corrigir deformidades e que dificultam ainda mais a tarefacarregar a criança.
Mas a secretaria estadualsaúde disse à BBC News Brasil que garantir transporte para as mães e crianças é papel da prefeitura; já a prefeituraMaceió disse que as mãescrianças com a síndrome têm direito a uma carteirinha que dá direito a usar o ônibus sem pagar tarifa. Diz que alguns centrosreabilitação oferecem carros para famíliasoutras cidades, mas "existe uma grande demanda e filaespera, por este motivo nem todas as crianças são contempladas com este benefício".
Tarde demais?
Maria divide a criação do neto com a outra avóErik, a presidente e fundadora da Afaeal, Alessandra,40 anos. "Não conseguíamos marcar exames, consultas com o neurologista, era tudo muito difícil", lamenta.
A liderança na associação tornou Alessandra mais ausentecasa, e as avós, que moram na mesma rua, reorganizaram a divisãotarefas.
"Tem dia que eu saiomanhã e só volto à noite. Hoje quem cuida ainda mais do Erik é a Maria", diz Alessandra, articulada e falante, que hoje é uma liderança para as famílias afetadas pela síndrome.
Na opinião dela, faltam tratamentos mais evoluídos e atualizados com os achados científicos sobre a síndrome, a exemplo dos ela já viuviagens a Campina Grande, na Paraíba. Outra demanda é aque os tratamentos sejam realizados com mais frequência, todos os dias da semana, como recomendam os médicos e ainda não aconteceAlagoas.
Erik tem uma versão mais leve da síndrome congênita. Quando nasceu,fevereiro2016, teve alta no dia seguinte sem passar por nenhum exame, lembra Alessandra, porque a maternidade estava lotada. Pediram para que eles voltassem dali a uns dias.
"Três dias depois do nascimento a equipe do postosaúde da família veio nos visitar e viu que estava escrito na carteiravacinação: suspeitamicrocefalia. Mas não haviam dito nada pra gente", diz.
A confirmaçãoque havia algo errado com Erik só veio aos dois mesesvida, quando os sintomas começaram a ficar mais evidentes. "Eu não sabia o que era uma convulsão a primeira vez que vi acontecer", conta Alessandra. "Eu estava trocando a roupa dele na clínica infantil e uma outra mãe disse: olha, o Eric está mudandocor, está todo roxinho", diz Alessandra, que correu com o neto nos braços para o hospital.
"Ninguém falavazika ou microcefalia. Suspeitavampneumonia". Foram quatro mesesinternação e, enfim, o diagnóstico correto. "Se eu já amava meu neto, quando soube amei ainda mais", lembra Alessandra. "Os médicos falavam que poderia ser que o Erik nunca pudesse andar. E hoje ele quer fazer tudo sozinho", comemora.
A reportagem da BBC News Brasil conversou com dezenasmãescrianças com microcefalia que nasceram desde 2016Maceió, e ouviu muitos relatoscrianças que só foram diagnosticadas muitos meses após o nascimento.
Na prática, equivale a dizer que muitas mães saíram do hospital pensando que seus filhos estavam saudáveis, com a orientaçãoagendar futuros exames, para meses depois descobrirem que eles tinham microcefalia e outros efeitos da síndrome do zika, como ocorreu com Erik Gabriel.
"Perde-se muito quando o bebê é diagnosticado tardiamente", explica a médica obstetra paraibana Adriana Melo, uma das maiores especialistas no tema e pioneiraidentificar que havia relação entre a infecção pelo vírus da zikagrávidas e os casosmicrocefalia nos bebês.
A recomendação, diz ela, é que o diagnóstico seja feito ainda durante a gravidez, para que a criança com a síndrome seja acompanhada, examinada e estimulada desde o primeiro diavida. "Desde 2015, nas primeiras reuniões com o Ministério da Saúde, já dizíamos que a síndrome do zika é uma doença do feto. O diagnóstico durante a gravidez deveria ser estimulado justamente para que a criança já comece a fisioterapia no primeiro diavida", diz.
Não foi o casoGilza Santos da Silva,33 anos, que só soube que a filha Maria Giulia era portadora da síndrome congênita do zika quando a menina já tinha oito mesesvida.
"Ela tinha convulsões aos cinco mesesidade e eu não sabia o que era. Para mim isso foi o momento mais difícil; eu vendo a minha filha com dificuldade e não sabia o que fazer. Mesmo quando eu ia para uma emergência eles não sabiam o que fazer, porque não tinha o diagnóstico. Não pediam exames e me mandavamvolta pra casa", recorda.
"Acredito que esses meses sem o diagnóstico prejudicaram muito ela", lamenta Gilza, que ainda se emociona ao falar da filha, que morreumaio2018, com 1 ano e oito mesesvida, por complicaçõesuma pneumonia. Gilza, que mora com o marido, motoboy, e duas outras filhas,13 e 7 anos, atribui ao descaso do poder público e à precariedade do atendimento a morte da filha.
"Quando ela nasceu a médica suspeitou, mas logoseguida descartou essa hipótese. Ela atendeu a Maria Giuliauma clínica depois do parto e ali, na dúvida que ela teve, já tirou, sem exame. Mas Maria Giulia nasceu com 28 centímetrosperímetro cefálico (medida do crânio), o que significa que ela já poderia ter sido diagnosticada", afirma a mãe.
Pesquisa realizada pelo Institutobioética Anis2016 alertava para sinaisque,Alagoas, poderia haver muito mais casoscrianças com microcefalia do que indicavam os números oficiais. Nesse cenário, significa que muitas crianças no Estado continuam até hoje sem atendimento, fora do radar da saúde pública.
"Casos descartados por critérios provisórios adotados durante os primeiros dois anos da epidemia podem ser atuais casos 'desconhecidos' para a rede assistencial", diz.
A pesquisa também aponta que,Alagoas, o númerocasos descartadosmicrocefalia - ou seja,que houve suspeitamicrocefalia no recém-nascido, mas o diagnóstico não se confirmou - foi bem maior que oEstados próximos, como a Bahia.
De acordo com protocoloatendimento do Ministério da Saúde divulgadomarço2016, no auge da preocupação global com a epidemia, devem ser considerados casos suspeitosmicrocefalia os recém-nascidos com medida do crânio igual ou inferior a 31,9 cm para meninos e igual ou inferior a 31,5 cm para meninas - perfilque Maria Giulia se enquadrava. O Ministério também determina que a medição do crânio seja sempre realizada logo após o parto, para que o diagnóstico seja precoce.
A confirmação do diagnóstico, no entanto, deve ser feita após a realizaçãoexames complementares, como ultrassonografia e tomografia. Relatório realizado pelo instituto Anis Bioética também2016, no entanto, aponta queAlagoas somente dois hospitais públicos possuem aparelho tomográfico (Hospital GeralMaceió e HospitalArapiraca), e há uma esperameses para o acesso ao exame. A prefeituraMaceió, questionada pela reportagem, alega que as crianças com a síndrome têm prioridade nas tomografias, mas não informou quantos aparelhos existem na cidade.
A secretariasaúdeAlagoas atribui o diagnóstico tardio ao desconhecimento inicial sobre a doença e à faltasintomas na maioria dos casos.
"Inicialmente atribuiu-se apenas ao tamanho do perímetro cefálico desses recém-nascidos, mas com as pesquisas e acompanhamentos dos casos com médicos e equipes multidisciplinares foi sendo verificado que existiam outros padrões a serem considerados, por exemplo: deformidadesmembros, deficit visual, deficit auditivo e atraso no desenvolvimento psicomotor", disse,nota.
A nota também informa que,2016, no auge da epidemia, eram disponibilizadas diariamente até 12 vagas para tomografia. E que, atualmente, a realização desses exames "demoratornosete dias, entre marcação e consulta. O que demora mais um pouco é a entrega do laudo".
Crescendo fora do radar da assistência
Para a médica Adriana Melo, há muitas crianças com a síndrome do zika que ainda não foram diagnosticadas e vivem sem acompanhamento que seria fundamental para melhorar o futuro dessas crianças.
"Eu acho que ainda tem mais crianças que não estão sendo atendidas,Alagoas etodo o Nordeste. Porque muitas vão começar a ser percebidas agora, que estão chegando na escola, com três anos: baixa visão, crises convulsivas", diz.
"Essas crianças que tiveram o diagnóstico tardio provavelmente seriam as que mais se beneficiaram (do tratamento desde o primeiro diavida), porque provavelmente são casos mais leves (de síndrome congênita do zika)", afirma a médica.
O próprio ministério da Saúde reconheceu,documento divulgado2015, que os númeroscrianças com microcefalia registrados no Brasil tendem a ser maiores que os registros oficiais.
"É impossível conhecer o número realinfecções pelo vírus Zika, pois é uma doençaque cerca80% dos casos infectados não irão manifestar sinais ou sintomas da doença e grande parte dos doentes não irá procurar serviçossaúde", afirma o "Protocolovigilância e resposta à ocorrênciamicrocefalia relacionada à infecção pelo vírus zika", divulgado pelo Ministério.
No interior do Estado, longe dos serviçossaúde da capital, o monitoramento é ainda mais precário. Leonice, que vive com o marido e dois filhos no municípioUnião dos Palmares, com 65 mil habitantes a 70 kmMaceió, só soube que o filho Cauê tinha microcefalia há cercaum ano, quando a criança já tinha dois anos e sete mesesidade.
Até aquele dia, Cauê nunca tinha tido uma consulta com um neurologista. "Quando ele nasceu, escreveram no papel dele que havia a suspeitamicrocefalia. Mas após um exameultrassom, o caso foi descartado. Agora o neurologista disse que ele tem sim", diz.
Cauana, a filha mais velha,8 anos, tem paralisia cerebral e recebe o BPC, que sustenta toda a família. Leonice afirma que já pediu fraldas para os dois filhos na secretariasaúde do Estado e do municípioUnião dos Palmares, mas desistiu.
"Eles dizem que se derem fralda vão ter que cortar o benefício do BPC", afirma a mãe. "No fim do mês faltam fraldas e eles ficam sem. É muito duro", diz Leonice, com a voz desanimada. "Queria ter alguém para me ajudar, mas não tenho dinheiro. Se um filho especial já é difícil, imagina dois", lamenta. "Tem hora que eu tenho vontadedesistirtudo".
Gilza, mãeMaria Giulia, diz que a dificuldade financeira é quase unanimidade entre as mãescrianças com microcefalia, já que os cuidados exigem dedicaçãotempo integral. "O dinheiro do BPC ia todo para ela e nem dava para todas as despesas. Só um medicamento dela, o Sabril, era R$ 300. Fora Depakene. Fora transporte. Eu iaônibus com ela para todos os tratamentos", recorda.
Gilza, que também faz parte da Afaeal, diz que casosmães desassistidas são muito comunsAlagoas, e teme que, com a microcefalia fora das prioridades do poder público, mais casos como oMaria Giulia se repitam.
"Como a minha filha foi descartadauma maternidade, outras mães que sofrem o riscoviver o mesmo que eu vivi com a Giulia", afirma. "Essas crianças já nasceram com esse problema devido a um descaso público. Porque o que faltou foi o quê? Saneamento básico, repelente para as mães, ou que o governo fornecesse o que fosse necessário para prevenir a zika. No meu bairro não tem saneamento básico, na maioria das mães não tem. Isso é uma calamidade pública e eles tratam como: isso é um problema seu, se vira", diz.
Geraçõesabandono e poucas oportunidades
Alessandra, presidente da Afaeal e avóErik, ainda se recorda do diaque seu filho Matheus Hora dos Santos, então com 15 anosidade, chegoucasa animado, contando que estava interessadoSandra,14 anos, filhaMaria, vizinha que morava na casa da frente.
"Mãe, vou pedir a menina ali da frente para namorar. O pai dela disse que a senhora tem que ir comigo". As famílias selaram o compromisso e, pouco tempo depois, Alessandra descobriu que seria avó.
O relacionamento entre os dois terminou quando Sandra ainda estava grávida, aos 15 anosidade,Erik. Foi por volta dos 7 meses da gestação que ela sentiu os primeiros sintomas da zika,fevereiro2016. "Começou com uma febre e ficou 14 dias internada". Terminado o namoro, Matheus começou a passar mais tempo foracasa, andando com "amizades erradas" que tiravam o sono da mãe.
Até que um dia Matheus desapareceu e, aflita, Alessandra passou dias e noites a procurá-lo, sem notícias. "Ele me disse: só vou na praça e já volto. Mais tarde ficamos sabendo que mataram dois mototáxis no bairro e minha mãe me perguntou: onde está o Matheus? Fui até a praça e ele já não estava, e ninguém tinha visto", lembra. "Já comecei a chorar, porque já era noite e ele não erasair assim, pra não voltar."
Fazia nove dias que Alessandra não comia e nem dormiabusca do filho quando o corpoMatheus foi encontrado nas margensum riacho próximo ao bairro.
"O médico identificou o corpo do Matheus por uma tatuagem com o nomeErik Gabriel", conta, emocionada. "Eu fiz o sepultamento do Mateus numa sexta, 26maio2016. Quando voltei a trabalhar, na segunda, eu estava demitida". Na semana seguinte, vieram a febre e convulsõesErik, e o diagnóstico da microcefalia.
Alessandra define aquela época como um "furacão" que mudouvida. "Para mim, ali já era o fundo do poço. E hoje tudo que eu tenhomais sagrado, além das minhas filhas e minha mãe, é o meu neto. Faço tudo por ele. E encontrei minha segunda família, que é a associação."
Maria, a outra avó, também teve um filho morto pelo que ela chama"amizades erradas", mas não gosta nemfalar no assunto. "Fez um ano. A gente, que é mãe, nunca esquece."
Manter os filhos seguros e longe do crimeuma cidade violenta como Maceió -2016, registrou 55,6 assassinatos a cada 100 mil habitantes - é uma dificuldade para ela. "Aqui onde a gente mora, não tem postosaúde, não tem escola, creche, não tem nada", lamenta.
'Zika nunca foi prioridade'
Os altos níveisdesnutrição das crianças com microcefaliaAlagoas chamaram a atenção da médica paraibana Adriana Melo quando ela conheceu a sede da associaçãomães,julho do ano passado. Como têm dificuldades para engolir, é comum que as crianças com a síndrome tenham problemas para alimentar-se.
A obstetra havia ido a Maceió para participarum congresso médico e levar a família à praia, mas mudou os planos quando recebeu o convite para visitar a Afaeal.
"No fim da minha palestra tinha duas mães que me convidaram para ir na associação no dia seguinte". "Fizemos um levantamento e mandamos suplemento alimentar, porque elas não tinham acesso", diz a pesquisadora e fundadora do Instituto Professor Joaquim Amorim NetoDesenvolvimento (Ipesq).
Nem mesmo o instituto, considerado referência nacional no tratamento à doença, tem apoiorecursos públicos. Ela mantém até hoje o centro sem nenhum apoiorecursos federais, estaduais ou municipais - apenas por meiodoações.
"A gente passou 2016 todinho indo a Brasília. Chegamos a desenhar um grande projeto, até divulgado na mídia, que seriam centrossaúde e educação. Eram quatro ministérios envolvidos, a gente teve várias reuniões, mas acabou não saindo do papel", diz a obstetra, que tem custo mensal com o institutoR$ 100 mil.
"Se eu fosse oferecer esse tratamento privado, o custo para cada criança seriaR$ 12 mil. Nossa ideia é criar um modelo que possa ser criado pelo resto do país", diz a médica, que recebe doações por meio do siteuma ONG que apoia o Ipesq e tem um siteapadrinhamentoinstituições filantrópicas, a Fraternidade Sem Fronteiras.
"Estamos tentando ampliar o atendimento para João Pessoa, mas eu estou com muita vontadeampliar para Alagoas, criamos um vínculo muito grande com as mãesAlagoas", diz a médica.
O Ipesq tem uma equipe multidisciplinar, com fisioterapeuta, neuropediatra, pediatra, fonoaudiólogo e outros profissionais. Melo criou também uma casaapoio, para receber mãesoutros Estados. Desde o ano passado, 30 mãesAlagoas já passaram uma temporadatrês meses no Ipesq, para ter acesso a tratamentos que não estão disponíveis no Estado. Uma das principais diferenças, pontua Adriana, é a frequência, fundamental para acelerar o desenvolvimento do cérebro.
"Mesmo quando um bebê nasce prematuro, que é uma situação que é considerada normal, essa criança geralmente faz fono, fisio, todo dia. Agora você imagina uma criança que tem uma doença que a gente não conhece, uma das doenças virais mais graves que podem atingir uma criança, e faz terapia duas vezes por semana por profissionais que não foram capacitadosneurofisioterapia?", questiona.
Como exemplo ela cita o riscocomplicações hepáticas nas crianças, devido à grande quantidaderemédio que elas tomam. "São coisas que a ciência ainda têm que desenhar e tentar prevenir. Então se essas crianças são vistas uma vez por ano, o que é que vai acontecer?"
Outro aspecto importante do atendimento é dar apoio psicológico às mães que,geral, são sobrecarregadas com a rotina solitáriacuidados sem intervalo com a criança.
"Aplicamos um questionário recente e 50% das mães estavam com depressão, precisandoapoio psiquiátrico mesmo. Por isso um dos objetivos ao criar essa casaapoio era esse. Lá temos atividades lúdicas, como um diabeleza, uma zumba, danças, exercício físico, poder assistir televisão sem o bebê no colo. Elas precisamum tempo para sentar a perna para cima", diz.
Gilza, que viveu a experiênciacuidarMaria Giulia sendo mãeoutras duas filhas, diz que o cuidado com o cuidador também deveria integrar as políticas públicas relacionadas à microcefalia.
"Eles têm que ver que o afetado não é só a criança, é a família, e principalmente o cuidador. Até a minha vaidade como mulher eu deixei totalmentelado. Eu acho que me olhava no espelho e nem me via mais. O BPC não resolve tudo isso,forma alguma. O BPC não resolvia nem a vida da minha filha, quanto mais a minha", diz Gilza, que acredita que o trabalho das mulheres que dedicam a vida a cuidar das crianças com a síndrome não é reconhecido ou valorizado pela sociedade ou pelo governo.
"Essa mãe, essa avó, não é reconhecida, parece que não existe. Claro que é com amor. É tanto amor que eu lutei por ela que eu esquecimim mesmo", diz Gilza.
Para as mães ouvidas pela reportagemAlagoas, impedir que as crianças com microcefalia sejam esquecidas na pauta das prioridades públicas é uma missão constante. Em maio, a presidente da Afaeal foi até Brasília participarum seminário promovido por quatro comissões da Câmara sobre políticas voltadas a crianças com microcefalia.
Na ocasião, o ministro da Cidadania, Osmar Terra, disse que o governo federal estuda editar uma medida provisória para criar uma pensão vitalícia para pessoas com microcefaliadecorrência do vírus da zika. Mudanças nas regras do BPC, para reduzir os reajustes no benefício, também são discutidas no âmbito das propostasReforma da Previdência.
No dia 22maio, a pauta do Supremo Tribunal Federal (STF) previa a votaçãouma Ação DiretaInconstitucionalidade 5581, proposta pela Associação NacionalDefensores Públicos (Anadep), com objetivoproteger direitos violados no contexto da crise do vírus zika; propunha, entre outras medidas, acesso universal para todas as vítimas da síndrome congênita do zika ao BPC e acesso a serviçosestimulação precoce para crianças com a síndrome congênita do zikaum raioaté 50 km da residência familiar, ou garantiatransporte gratuito aos serviços quando a distância for maior do que 50 km.
"A ação judicial foi frutoum esforço coletivopesquisadores, ativistas e especialistas da área jurídica", explica a Anadep,nota. A votação, no entanto, foi retirada da pauta pelo presidente do STF, ministro Dias Toffoli, e não há previsãoque seja retomada.
'Não quer dizer que vírus não possa voltar'
Na avaliação da médica Adriana Melo, a zika nunca foi tratada como prioridade, mas é uma doença que o país ainda não venceu.
"Nunca foi tanta prioridade, a não ser naquele períodoque estava na moda", diz, acrescentando que o descaso pode cobrar um preço alto não só para essa geraçãobebês atingidos pela doença.
"A gente não venceu o zika, não venceu nada. Demos muita sorte que esse vírus, embora agressivo, ele não se espalha muito bem, há muitos Estadosque não houve casos", pondera.
"Mas não fomos nós que reagimos bem, e não quer dizer que ele não possa voltar", alerta, citando que a medida mais básica e prioritária seria garantir saneamento básico à população.
Relatório do Instituto Trata Brasil aponta que,2016, só 51,9% da população brasileira tinha acesso a coletaesgoto.
Além disso, pesquisa do Instituto BrasileiroGeografia e Estatística (IBGE) divulgada no ano passado aponta que, dos 102 municípios alagoanos, só 10 têm um planosaneamento; e,2017, 58 municípios do Estado registraram pelo menos uma ocorrênciadoenças ligadas à precariedade dos serviçosabastecimentoágua e esgotamento sanitário2017.
"O que esses Estados afetados têm comum que seria mais barato cuidar? (Falta de) Saneamento. Justificam que tivemos a epidemiazika porque o Brasil é um país tropical, mas a Flórida também teve o vírus. Mas quantos casossíndrome a gente teve na Flóridamicrocefalia mesmo? Porque lá tem saneamento", afirma.
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