Antes da abolição, intelectuais faziam 'vaquinha' para libertar escravos:
Mas não só no Rio Grande do Sul atividadeslibertaçãoescravos ocorreram no período. Por todo o Brasil,1868 a 1888, há registrosgrupos mobilizados pela causa abolicionista. No RioJaneiro, São Paulo, Ceará, Pernambuco e Espírito Santo, por exemplo, as cartasalforrias também eram entreguesapresentações culturais com direito a registro na imprensa.
Em 10agosto1886, Nadina Bulicioff, uma cantora russa, apresentou a opera Aida,Verdi, no Teatro Lírico do RioJaneiro. Ao final, "arrebentou suas algemas cenográficas e, diante do público, quepé afitava lenços, entregou-lhes (a seis escravas) cartasliberdade", conta a pesquisadora Angela Alonso, no livro Flores, votos e balas: o movimento abolicionista brasileiro (Cia das Letras, 2015). A apresentação carioca foi organizada pelos abolicionistas André Rebouças, José do Patrocínio e Joaquim Nabuco.
Quanto ao grupo gaúcho Partenon Literário,bandeira ia além das letras.
"O Partenon não foi uma sociedade meramente literária, masordem cultural e com viés político. A maioria dos partenonistas tinha dois ideais. Eles defendiam sobretudo a República, sendo contrários à Monarquia vigente, e eram abolicionistas", explicou Maria Eunice Moreira, professora da FaculdadeLetras da PUCRS à BBC News Brasil.
Juntamente com os pesquisadores Alice Campos Moreira e Mauro Nicola Póvoas, a professora escreveu um estudo que serviráapresentação a todo o acervo digitalizado da "Revista Mensal da Sociedade Partenon Literário". A revista, publicada entre 1869 e 1879, poderá ser acessada pela internet a partiroutubro (o site ainda não divulgado). No periódico também eram publicados textos contra a escravidão, como o registroCaldre Fião sobre o teatro apresentado no São Pedro.
Atualmente, quem deseja pesquisar todas as 71 edições precisa alternar visitas a diferentes acervos, entre eles o da coleção especial da biblioteca da PUCRS, onde esteve a reportagem.
As revistas eram diminutas para o padrão atual, com menosvinte centímetroslargura e altura, com somente a capapapel colorido e raras ilustrações, como nos casostextos sobre figuras históricas.
'Ultraje'
A peça teatral1869 foi considerada um ultraje por quem defendia a escravidão. Vale lembrar que, no Brasil, a abolição ocorreu 19 anos depois do espetáculo,13maio1888. A Lei do Ventre Livre, que daria liberdade às crianças, também foi posterior à montagem teatral, assinada1871. A Lei dos Sexagenários, que libertou os escravos idosos, foi firmada1885.
No Rio Grande do Sul, a escravidão foi abolida1884, resultado da pressãodiversos grupos, como o Centro Abolicionista e o Partenon Literário.
O livro que contém a ata original da sessão na CâmaraVereadores da capital gaúcha que acabou com a escravidão no Estado está preservado no Arquivo HistóricoPorto Alegre Moysés Vellinho, da prefeitura.
Barreiras
Os integrantes do Partenon Literário não organizaram o espetáculo sem encontrar barreiras. Pelo contrário. Se conseguiram libertar as 21 crianças19setembro foi por que foram impedidos na data originalmente planejada - 7setembro, Dia da Independência do Brasil, declarada1822.
"Alguns senhores mal-intencionados especularam. Riu-se com estúpido desdém, e a situação pressentiu um golpe certeiro que lhe dirigíamos. Daí os óbices, as dificuldades com que o Partenon teve que lutar e que retardaram a festa da santa liberdade até o dia 19", relembrou Caldre Fião. A passagem também está registrada no livro História da Academia Rio-GrandenseLetras (1901-2016) e Parthenon Litterario (1868-1885) (Metamorfose, 2016),José Carlos Laitano.
Segundo a historiadora Marília Conforto, autoraEscravoPapel (Educs, 2012) e Faces da Personagem Escrava (Educs, 2001), muitos dos escravos que chegavam ao Rio Grande do Sul vinham pela rota do comércio interno, já que o tráfico internacional era proibido desde 1850. O tráfico passou a ser ilegal por pressão da Inglaterra, que chegou a apreender navios negreiros. Com o desenvolvimento do capitalismo inglês e da consequente industrialização, novos mercados consumidores eram necessários para o comércio dos produtos da Inglaterra.
"Escravo não tinha salário e não consumia", resumiu criticamente a pesquisadora durante a entrevista.
'Purgatório dos negros'?
Conforme Conforto, ser vendido com destino ao Rio Grande do Sul era um novo castigo aos escravizados. "Se criou a ideiaque o Estado era o 'purgatório dos negros'. O negro que se rebelava era o primeiro a ser vendido e mandado para o Rio Grande do Sul. No inverno, as temperaturas eram gélidas, muitas vezes abaixozero. Se não ficavam no espaço urbano, comoPorto Alegre, eram mandados para o campo. Lá, trabalhavam nas charqueadas, que exigia manejofacas afiadas. Eles tinham que matar os bois a pauladas, tirar o couro, cortar, colocar o sal nas chamadas 'mantas'carne, algo muito bruto", explica a pesquisadora.
AlémCaldre Fião, outro líder do Partenon que teve forte atuação abolicionista foi o professor Apolinário Porto Alegre. O primeiro estudou Medicina no RioJaneiro, o segundo, estudou direitoSão Paulo. Segundo Conforto, "estudar fora" influenciava os intelectuais que depois retornavam ao Estado trazendo novas ideias influenciados pelos ideais do positivismo europeu, entre eles a liberdade, por exemplo.
Apolinário publicou na revista do Partenon diversas peçasteatro e textos abolicionistas. Uma peça,especial, foi a mais polêmica e chegou a ser proibida pela polícia. Os Filhos da Desgraça contava a históriaamor entre uma senhora e um escravo (o contrário era mais aceito no Brasil colonial). "Com tal temática, Apolinário não poderia colocar a açãoPorto Alegre, porque provocaria a revoltamuitos chefesfamília", explicou o historiador Moacyr Flores,artigo1978, sobre a obra do autor.
Como a ideia"proximidade" chocava demais os "chefesfamília", o escritor optou por situar a tramaSalvador. "O drama está inserido na filosofia dos abolicionistas que por princípios éticos, além dos econômicos, não admitem a escravidão", acrescentou Flores sobre a peça.
Apolinário também liderou o projetoaulas gratuitas noturnas para os pobres e libertos, explica a professora Maria Eunice Moreira, da PUCRS. Aindaacordo com ela, enquanto ficcionistas, o tema da liberdade interessava os partenonistasmaneira abrangente, incluindo figura do gaúcho cavalgando livre pelos campos, o mítico "centauro dos pampas", que surge na literatura regionalista do período influenciada pelo Partenon.
Campanha pela liberdade
No mesmo anoque a escravidão foi abolida no Rio Grande do Sul,1884, 15 anos depois da alforria das crianças no teatro, o Partenon Literário fez uma nova campanhalibertação. Os integrantes batiamportaporta das casas da região central, especialmente na Rua das Andradas, pedindo a liberdade dos escravos. Com dinheiro arrecadadoações, compravam alforrias. Os libertos foram reunidos no local que hoje é conhecido como Parque da Redenção, oficialmente chamadoParque Farroupilha. Próximo dali, montavam barracos na chamada "Colônia Africana".
Com tamanha movimentação abolicionista, no início do ano seguinte,janeiro1885, a Princesa Isabel, que assinou a Lei Áurea1888, visitou Porto Alegre. A princesa chegou a lançar a pedra fundamental da construção da sede do Partenon, com projeto inspirado no temploAtenas, o que não se concretizou.
Se não há registro fotográfico da visitaIsabel ou do espetáculo19setembro1869, o Museu MunicipalPorto Alegre Joaquim José Felizardo guarda um verdadeiro tesouroformaretratos. São diversos registros fotográficos, alguns1868,escravos e ex-escravos,Porto Alegre. Quase nenhum dos retratados, porém, está identificado.
Uma das fotografias encontrada pela reportagem, do final do século 19, mostra dois ex-escravos: são duas crianças, uma aparentemente com três anos e outra por voltadez anos. Elas estãopés descalços, vestidas, seguram ramalhetesflores e olham para a câmeraVirgílio Calegari, um fotógrafo italiano que instalou um estúdio na capital gaúcha. Calegari fotografou outros escravos e ex-escravos no seu estúdio, mas era conhecido por fotografar também a alta sociedade porto-alegrense. AlémCalegari, os Irmãos Ferrari também fotografaram escravos libertos no seu estúdio montado na rua Voluntários da Pátria.
Porém, as imagens encontradasex-escravos foraestúdio foram feitas por um fotógrafo amador, que assinava sob o psudônimoLunara (das iniciaisLuiz do Nascimento Ramos). Lunara era um comerciante que revelava as fotoscasa. Mesmo amador, chegou a vencer diversos concursos.
Ele registrou cenas bucólicas da capital gaúcha na virada do século. Em 1900, Lunara fotografou um casalnegros libertos,frente ao seu barraco. A foto está catalogada como "Deixa disso, nhô João".
"Os abolicionistas não-negros, os abolicionistas brancos, tinham uma visão ligada ao Iluminismo,humanização. O que dava a possibilidadeuma pessoa negra ser escravizada eranão-humanização. Até 1850, o código comercial colocava os negros como 'semovente', categoriacoisas que se movem. Estão nessa categoria ate hoje, por óbvio, cavalos, cachorros da polícia militar. Então, a discussão dos abolicionistas eraque negros não eram coisas, mas pessoas", afirma o especialistadireito público Gleidison Renato Martins, da coordenação nacional do Movimento Negro Unificado.
Martins aponta o paradoxoa própria "era da razão" ter dado origem a artigos e experiências que tentavam provar a inferioridade dos negros e apontavam os brancos como "raça superior" o que, se sabe, é falso. "Não basta apenas colocar as pessoas nessa outra estrutura sem mudar o pensamento racista e processosdiscriminação", conclui.