'Capitães da Areia': o diaque o Estado Novo queimou um dos maiores clássicos da literatura brasileira:
Metade do lote, 808 no total, erasua obra lançada meses antes, Capitães da Areia.
Paíschamas
O Brasil dos anos 1930 fervilhavatensões políticas, e o comunismo era um dos seus ingredientes.
Após a chamada Intentona Comunista, tentativalevante liderada pelo capitão do Exército Luís Carlos Prestes1935, o governo passou a perseguir não apenas membros do Partido Comunista Brasileiro (PCB), como intelectuais associados (corretamente ou não) à ideologiaMoscou.
Um dos casos mais notórios foi o do escritor Graciliano Ramos. Em Memórias do Cárcere, ele narrahistória como preso político1936 a 1937.
Em 1937, a poucos meses das eleições presidenciais, passou a circular nos principais veículoscomunicação do país um plano falso para instaurar o comunismo no Brasil, elaborado pelo general Olympio Mourão Filho - o mesmo que lideraria mais tarde o golpe1964.
BatizadaPlano Cohen (um toqueantissemitismo que os historiadores não deixariam passar), a trama forjada sustentava a versãoque havia ordens da Terceira Internacional Comunista para assassinar diversos políticos e tomar o poder no país.
No poder desde 1930, Getúlio Vargas usou a estupefação criada pelo Plano Cohen para fechar o Congresso, cancelar as eleições e implantar o golpeEstado no dia 10novembro1937. Começava assim a ditadura do Estado Novo.
Sob o novo regime, não surpreende que Capitães da Areia, uma crítica mordaz à desigualdade, que transformava meninosruaheróis,veztratá-los como delinquentes e malandros, tenha engrossado desde o início a longa listaobras censuradas. Além disso, o livro foi escrito por um autor filiado ao PCB - e que seria preso duas vezes por conta disso.
"No Estado Novo, qualquer coisa considerada ofensiva à moral e aos bons costumes virava alvo do regime", disse à BBC Brasil o escritor Lira Neto, autor da trilogia Getúlio.
"Os principais intelectuais do Brasil naquele momento ou foram presos ou cooptados."
Lira Neto lembra que até ReinaçõesNarizinho, livro infantilMonteiro Lobato, seria alvo da censura do Estado Novo.
O próprio Lobato seria preso1941 - ironicamente, depoisrecusar o conviteVargas para dirigir o DepartamentoPropaganda, órgão que tinha a dupla missãopromover o culto à personalidade do mandatário e exercer censura prévia a ideias contrárias.
De volta ao ano1937, na mesma fogueiraque ardiam centenaslivrosJorge Amado, engrossavam as chamas algumas cópiasMeninoEngenho,José Lins do Rego, uma exposição da desigualdade nas relações sociais no campo brasileiro.
Longevidade
Mas, apesar da intenção do governoenterrar a obra, Capitães da Areia se tornou, 80 anos após o lançamento, um clássico da literatura nacional, uma denúncia longevaum fracasso social que continua atingindo as cidades brasileiras.
"Era uma cartadenúnciauma situação social gritante,extrema pobreza, sobretudorelação aos jovens e às crianças", disse à BBC a cineasta e neta do escritor, Cecília Amado.
"Não é à toa que os livros foram queimados, porque (para o governo) era uma vergonha mostrar aquilo."
NascidoItabuna, no sul da Bahia, Jorge Amado viveu e frequentou a região do Pelourinho, do porto e da Cidade BaixaSalvador quando se mudou para a capital baiana.
"Eram regiões muito populares e, portanto, ele conviveu muito com os capitães da areia da época", contou Cecília,um documentáriorádioinglês para o Serviço Mundial da BBC.
"Ele gostavaconversar com as pessoas do povo, da rua. Era um hábito dele puxar conversa com as pessoas, ouvir suas histórias, e acredito que desse modo ele se relacionou com esses meninos, que eram personagens reais."
Jorge Amado era um jovem25 anos, politicamente engajado, quando Capitães da Areia começou a decolar. A expressão, disse a neta, não foi inventada pelo escritor - era como a imprensa da época se referia aos menores abandonados na região das praias.
"Falar desses meninos,uma classe oprimida, marginalizada e rejeitada pela sociedade, e transformá-losheróis, eracerta forma buscar nesses meninos um heroísmo que tinha a ver comideologia política da época."
'Capitães da areia' modernos
Mas até que ponto a atualidade do tema explica a travessia de Capitães da Areia ao longodécadas? Afinal, menores brasileiros continuam sobrevivendo nas ruas, expostos a todo tipoviolência e sem contar com direitos e garantias básicos.
Em visita recente da BBC ao centroSalvador, cerca50 crianças se aproximamum carro branco para receber doaçõescomida ao cair da tarde. Uma das meninas, que diz ter dez anos, segura uma caixapizza contendo nuggetsfrango.
"Isso aqui é comida", diz a criança, que com o braço equilibra uma boneca sobre a caixapizza.
"A gente está precisando muito. Nem tenho vergonhadizer. Tenho vergonha éroubar."
Há poucas estatísticas sobre o númerosem-tetoSalvador. Um levantamento feito neste ano pela ONG Projeto Axé estima que entre 14 mil e 17 mil pessoas morem nas ruas da capital baiana - incluindo 3,5 mil menores25 anos.
Se contabilizadas as pessoas que tiram o seu sustento das ruas, o número supera 20 mil, segundo a ONG.
'Ir se acostumando'
Na Cidade Baixa, a reportagem encontra mãe e filha dormindo sobre caixaspapelão. Ao longe, um numeroso grupomeninos e meninas brinca na rua. João Vítor e seu amigo, Ronald, dividem um colchão.
João Vítor tem 20 anos e vive na rua "há uns quatro ou cinco anos". Simpático, não se envergonhamostrar os seus pertences - uma Bíblia, um perfume e uma sacolaplástico contendo balas que ele vende na rua para ganhar o pão.
O rapaz não foi criado pelos pais. Antesmorar na rua, vivia com a avó, a quem ajudava a vender acarajé.
"Acarajé é delicioso, mas você não sabe quanto trabalho dá. Levantar às quatro da manhã para ir ao mercado, depois para casa para preparar. Quando você vai sentar, são cinco da tarde."
Ele conta que foi uma infância difícil.
"Desde os oito anosidade, trabalhando, trabalhando. Quantas vezes eu não chorei no meu canto? Natal, Ano Novo e eu não tinha nenhuma balinha para comer."
"Sabe qual era meu sonho? Ter uma bicicleta. Juntei dinheiro três anos, vendendo acarajé, três anos pra comprar uma bicicleta."
Masvida tomaria outro rumo depois que a avó voltou para o interior por problemassaúde. João Vítor, então adolescente, tevesobreviver por conta própria.
"Foi bem difícil me adaptar a essa coisadormir na rua, ter que comer o que tiver. O medooutras pessoas tentarem te agredir - policial - mas aí, com o tempo, porque não tinha outra opção, você vai se acostumando, entendeu?"
"E aí eu me acostumei evoluindo. Porque você não pode se acostumar diminuindo. Sempre evoluindo. Fui crescendo. Fui mostrando a eles que eu tinha meu espaço. Mas na conversa, no diálogo, porque nem tudo se resolve com faca nem com briga. Entendeu?"
'Coisas bem maiores'
João Vítor tem um jeito envolventefalar. Se fosse um personagemCapitães da Areia, não estaria longe do Professor, que passa as noites lendo para as outras crianças do grupo que não sabem ler.
Ele diz que leu o livroJorge Amado e comparaprópria vida à dos meninos retratados na obra.
"Eu sou um capitão da areia, porque olha a vida que a gente leva, não é verdade? A única parte que eu não sou é o lado do roubo", diz.
"Agora, o ladoviver aventuras, viver explorando sempre o dia que a gente vive, dia após dia... Eu durmo, mas não sei se eu vou acordar, porque pode acontecer alguma coisa. Então eu durmo e, quando eu acordo, tenho que usufruir bastante daquele dia."
Mas isso não o impedeimaginar uma vida diferente.
"Se eu pudesse ter uma casa para morar, viverpaz, arranjar uma esposa, ter um filho… Eu queria ser biólogo. Marinho. Porque eu sempre me identifiquei muito com animais, entendeu? Desde pequeno. E principalmente com o mar", relata.
"Gosto muito. Amo. Sou apaixonado. Porque eu não vou viver isso aqui minha vida toda, eu penso coisas bem maiores."
Dramas e alegrias
Comparar a vida dos capitães da areia dos anos 1930 com a realidade do século 21 foi um dos motivos que levaram Cecília Amado a adaptar o romance do avô para o cinema2011.
Ela ficou fascinada com a narrativa original, quando leu o livro na adolescência. E, já adulta, se questionava se aquelas crianças poderiam ser tão apaixonantes quanto seu avô as retratara.
Parte do processopesquisa para o filme foi conhecer o trabalhoONGs locais. A cineasta conta que trabalhou com um total1,2 mil crianças, quase todas com históriasdesestrutura familiar que as levaram a viver na ruaalgum momento.
"Nenhum menino nasce na rua, são poucos os que nascem na rua. É uma fragilidade da estrutura familiar, exatamente como era nos anos 1930", observa.
Assim como o livro do avô, seu filme foi criticado por romantizar as criançasrua e caracterizá-las como meninos alegres e apaixonados pela vida. Cecília Amado se defende.
"Ninguém vive só no drama. Nós, que somos abastados, com berçoouro, pertencentes a uma classe social da burguesia, por assim dizer, também temos nossos dramas. E os meninos que vivem no drama da miséria, os capitães da areia, também têm suas alegrias."
Humanismo
Ela diz que, ao longo das filmagens, Capitães da Areia foi passandouma adaptação do romanceJorge Amado sobre meninosrua a um filme feito para os meninosrua na Salvador do século 21. De certa forma, mais fiel ao romance original que uma adaptação pura e simples da obra.
Cecília Amado diz que isso condizia mais com o avô que ela conheceu. Como muitos da esquerda mundial, Jorge Amado se decepcionaria com o comunismo real a partir das revelaçõesabusos do stalinismo soviético.
"A partir dos anos 1960, elecerta forma se afastou do universo político. Mas nunca se afastou do universo social", explica a cineasta.
"Eu digo que quando fiz o filme Capitães da Areia, me inspirei não no Jorge que escreveu o livro, mas no Jorge que eu conheci, que era essencialmente um humanista."
Se voltasse a Salvador2017, o escritor baiano talvez se inspirasse a escrever novas obrastemática social, diz ela. Certamente se daria conta do imenso trabalho ainda a ser feito para reduzir o imenso abismo social no país.
Mas já não haveria razão para promover a queimaexemplarespraça pública, a exemplo do que ocorreu há 80 anos.
O escândalo maior é que, mesmo passadas tantas décadas, as histórias dos capitães da areia continuem se desenrolando, na vida real, aos olhostodos.