Tim Vickery: Será que quero um celular que faça mais do que telefonemas?:aposta1
Tive necessidade - queria voltar para o Rio na véspera do verão. Tem necessidade maior?
Táxi para o aeroporto? Nem pensar. Táxi para me pegar na casa da minha mãe? Também, sem chance. Tive que carregar a mala por pelo menos dez minutos com neve até os joelhos para encontrar um taxista que me levasse à estaçãoaposta1trem, para depois fazer conexão com o metrô e chegar ao aeroporto.
Uma viagem épica, então - divertida, é verdade, mas um pouco estressante, pois você saiaposta1casa sem a certezaaposta1que vai chegar.
Ou seja, foi o frio que causou o estresse, e o estresse que causou a perda que agora me deixa com um dilema.
Não sei onde eu coloquei, não sei como aconteceu, não sei nada. Só sei que perdi o meu celular brasileiro. Deixei-oaposta1algum lugar no solo britânico.
Acho que é somente o meu terceiro aparelhoaposta1quase 20 anos. Como os dois anteriores, não faz grande coisa. Faz e recebe ligações, manda e recebe mensagensaposta1texto. E só. Ou melhor, fazia essas coisas - não é fácil aceitar, mas tenho que começar a pensar nesse celular somente no passado.
Ter um celular assim, hojeaposta1dia, é uma excentricidade quase imperdoável, algo além da imaginação da grande maioria. Já virei motivoaposta1zoação ao vivo na televisão brasileira por usar um treco considerado peçaaposta1museu.
O que me espanta aqui é a velocidade da mudança. Quase duas décadas atrás, quando adquiri o meu primeiro celular, eu estava à frente da curva. Ainda era raridade.
Lembro que quando fui assaltado, no finalaposta12000, entreguei tudo, menos o celular. O escondi, e, voltando para casa depois, o choque tomando conta, tentei enfiá-lo na meia para não perder - tarefa difícil devido ao tamanho do aparelho, hojeaposta1dia visto como tijolo.
Então, ainda no século 20, eu era quase um pioneiro. Mas hoje parece que já fui ultrapassado várias vezes pela grande maioria da humanidade.
Lá estava eu, feliz com uma máquina que faz (fazia, desculpe) ligações e torpedos. Mas passado menosaposta1um quinto do século 21, as pessoas já se acostumaram a viver olhando para baixo, com as suas fotos e aplicativos, obcecadas com a buginganga portátil.
Quando eu comprei o meu primeiro celular, nem existia no mundo um laptop capazaposta1utilizar conexão wi-fi, o que aconteceuaposta11999. A banda larga chegouaposta12000 - quantos ainda lembram do barulho do modem conectando pelo telefone? Tecnologia 3D chegouaposta12001, Facebook (não, não tenho) foi lançadoaposta12004 e, no final da década, chegaram os tablets, o streamingaposta1música e vídeos e a grande penetração das mídias sociais.
São mudanças incríveis, e parece que não sabemos ainda para onde isso tudo está nos levando. Entramos na época da informação - uma commodity muito difícilaposta1precificar com modelos convencionais, já que o custoaposta1reproduzir alguma coisa numa versão digital é pertoaposta1zero.
E a distribuição gratuitaaposta1informação torna desnecessários vários empregos; penseaposta1jornais, por exemplo. Alémaposta1pessoas para escrever o conteúdo, precisamaposta1gente para imprimir e distribuir os exemplaresaposta1caminhões, alémaposta1jornaleiros para vender. Agora, o público pode receber notícias direto na tela, e muitos cresceram com a concepçãoaposta1que a informação é grátis.
Novas tecnologias criam novas pessoas. Agora, os sociólogos falamaposta1"gente conectada" - e hojeaposta1dia até um operárioaposta1fábrica na China tem acesso à informação além da imaginação do maior tecno-nerdaposta1poucas décadas atrás.
Qual vai ser o efeito disso nos rumos da humanidade? Realmente tem o potencialaposta1unir as pessoas? Ouaposta1separar cada um no seu mundinho? Houve esperançasaposta1que as mídias sociais seriam tijolos para construir uma nova democracia - mas já estamos vendo os perigos, e como eles podem ser manipulados.
Será, então, que realmente quero fazer parte desse (admirável?) mundo novo? Ou seria melhor manter meu estilo e ficar com um aparelho que somente faça ligações e mensagensaposta1texto? A verdade é que não sei. Acho que o frio congelou o meu cérebro.
*Tim Vickery é colunista da BBC Brasil e formadoaposta1História e Política pela Universidadeaposta1Warwick.
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