'Aos 17 anos, já tinha feito 4 operações para adequar minha anatomia ao meu sexo':betesporte comercial
A produção excessivabetesporte comercialandrógenos (hormônio masculino) havia causado a "virilização dos genitais externos"; ou seja, o desenvolvimentobetesporte comercialcaracterísticas sexuais masculinas externas - ou um "clitóris superdesenvolvido" - que não contradizia a presençabetesporte comercialórgãos genitais internos femininos.
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Intersexual é o termo usado para descrever pessoas que nascem com características sexuais biológicas que não se encaixam nas categorias típicasbetesporte comercialsexo feminino ou masculino.
No hospital, a equipebetesporte comercialespecialistas recomendou iniciar uma sériebetesporte comercialcirurgias: duas antesbetesporte comercialcompletar 1 ano, outra aos 13 e uma última aos 17, para fazer com que a "anatomia se encaixasse no sexo".
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Apesarbetesporte comercialque os únicos objetivosbetesporte comercialseus pais fossem obetesporte comercialprotegerbetesporte comercialrecém-nascidabetesporte comercialacordo com os padrões da medicina do início da décadabetesporte comercial1980, Candelaria descreve essas operações como "desnecessárias e evitáveis".
"Mutilaram meu clitórisbetesporte comercialnome da normalidade. Não havia nenhuma necessidade médicabetesporte comercialfazer isso, cortaram para que não parecesse um pênis", disse Schamun à BBC Mundo, o serviçobetesporte comercialespanhol da BBC.
Ao longo dos anos, a ciência confirmou que intervenções cirúrgicas que não são motivadas por urgência médica são frequentemente invasivas e irreversíveis e, portanto, não são recomendadasbetesporte comercialcrianças.
Foi só aos 27 anos, uma década após descobrirbetesporte comercialverdadeira história, que esta escritora e jornalista conseguiu começar a dar voz ao que por anos foi um segredo familiar.
Em 2023, Candelaria publicou o livro Ese que fui: Expedientebetesporte comercialuna rebelión corporal (Aquele que fui: Memorialbetesporte comercialuma rebelião corporal,betesporte comercialtradução livre), um relato sincero que narrabetesporte comercialbusca pela identidade.
Esta ébetesporte comercialhistória contadabetesporte comercialprimeira pessoa.
A pasta verde
Eu sou Candelaria, mas ao nascer os médicos acreditaram que eu era um menino e meus pais me chamarambetesporte comercialEsteban.
No diabetesporte comercialque descobri esse segredo, minha vida mudou para sempre.
Lembro-mebetesporte comercialestar no quarto da minha mãe, no primeiro andar da minha casa - uma mansão enorme do início dos anos 1900 na cidadebetesporte comercialLa Plata (Argentina) - experimentando um vestidobetesporte comercialfesta que eu usaria para sair com minhas amigas da escola.
Depoisbetesporte comercialfalar ao telefone com uma delas, quasebetesporte comercialmodo involuntário, desci as escadas e fui até o escritório do meu pai, que permanecia intocado desde o diabetesporte comercialsua morte.
Na escrivaninha onde ele guardava todos os seus papéis, abri uma das gavetas e encontrei uma pasta verde que dizia: "Candelaria. Saúde".
Não sei por que tive o impulsobetesporte comercialir ao escritório do meu pai. Não tenho um porquê. Isso para mim continua sendo um mistério.
Entre os documentos, descobri a certidãobetesporte comercialnascimento, com a mesma databetesporte comercialaniversário que a minha, com o nomebetesporte comercialEsteban Schamun.
Instantaneamente, me dei contabetesporte comercialtudo: Esteban não era um irmão gêmeo falecido, mas eu mesma.
Senti pânico. Comecei a me perguntar: quem eu era, quem fui, por que fui um menino.
Depois da surpresa, veio a repugnância. Para me proteger, escondi a pasta embaixo do colchão.
Era verão, do ladobetesporte comercialfora fazia um calor infernal, mas eu estava gelada. Enroladabetesporte comercialposição fetal, comecei a chorar.
O que eu havia lido era desesperador. Em cada página,betesporte comercialcada envelope, havia uma informação que me expunha.
Saí da cama e corri para o chuveiro. Me sentia suja.
Amaldiçoei minha mãe: "Tomara que você morra". O meu pai: "Que sorte que você está morto". Eu amaldiçoei minha própria existência: "Sou repugnante, um monstro".
A partir desse momento, minha adolescência se obscureceu. Comecei a me machucar, a beber mais álcool, a me afastar dos meus amigos, a ficar zangada com minha mãe, zangada com todos.
Passei por situaçõesbetesporte comercialmuito desamparo porque não podia contar a ninguém.
Demorei muito para conseguir contar. Muito. Maisbetesporte comercialdez anos.
'Um remendo sobre outro'
Tudo começou quando, um mês após meu nascimento, minha mãe notou que, cada vez que me amamentava, eu vomitava leite. Preocupada com minha saúde, me levou ao médico.
Depoisbetesporte comercialanálises clínicas, o pediatra pediu minha internação com urgência.
Minha mãe ligou para o meu pai, pediu para que viesse o mais rápido que pudesse e decidiu me levar ao Hospital das Criançasbetesporte comercialLa Plata, um respeitado hospital públicobetesporte comercialBuenos Aires.
Mas as horas passavam e ninguém arriscava um diagnóstico. Foram dez diasbetesporte comercialangústia e desespero, até que o médico clínico solicitou a intervençãobetesporte comercialuma endocrinologista.
Foi então que chegou o diagnóstico: "hiperplasia adrenal congênita perdedorabetesporte comercialsal".
Uma alteração genética que afeta as glândulas supra-renais e, consequentemente, a capacidade do corpobetesporte comercialproduzir hormônios. Isso havia alterado a conformação dos meus órgãos genitais externos.
Fui tratada pelos melhores endocrinologistas do país, e eles concluíram que eu precisavabetesporte comercialmedicação vitalícia ebetesporte comercialalgumas cirurgias programadas para melhorar a "malformação".
A Organização Mundial da Saúde (OMS) define a mutilação genital feminina como a remoção parcial ou total dos genitais externos femininos por razões não médicas.
Esta prática é reconhecida internacionalmente como uma violação dos direitos humanos das mulheres e meninas, embora no casobetesporte comercialCandelaria, os pais tivessem a intençãobetesporte comercialprotegê-la.
Maisbetesporte comercial200 milhõesbetesporte comercialmulheres e meninas vivas no mundo já passaram por essas práticas,betesporte comercialacordo com informações da OMSbetesporte comercial30 países.
Aos 3 mesesbetesporte comercialvida, fui submetida à primeira operação. Entrei no bloco cirúrgico nos braços da minha mãe, ela quem colocou a máscarabetesporte comercialanestesiabetesporte comercialmim. Para adequar o tamanho do clitóris aos padrõesbetesporte comercial"normalidade médica", eles o mutilaram.
As consequências foram irreparáveis: destruíram as terminações nervosas do órgão responsável pelo prazer. Sequelas que ainda sofro até hoje.
Aos 9 meses, veio a segunda operação: uma vaginoplastia. Construíram minha vagina e um princípiobetesporte comercialabertura do canal vaginal. Cortaram, costuraram, removeram os excessos e formaram os pequenos lábios por meiobetesporte comercialuma labioplastia.
Aos 12 anos, pela terceira vez, entrei no bloco cirúrgico. O chamado "abocamento" desta vez foi mais profundo, para conectar o exterior com o interior. Nessa ocasião, descobriram que eu tinha ovários, útero e trompasbetesporte comercialFalópio.
Mas a imperícia dessa operação me levou a um quadrobetesporte comercialincontinência urinária. Durante cinco anos, eu tossia e urinava.
Finalmente, aos 17 anos, veio a quarta e última operação. Esta intervenção visava separar a vagina da uretra e reparar os danos da cirurgia anterior.
Meu corpo tem um remendo sobre outro.
Nenhuma das cirurgias trouxe benefício médico. Não havia nada para curar. Todas foram intervenções estéticas, feitas para satisfazer o olhar do outro, para dizer que "esta pessoa é Candelaria e possui uma vulva e uma vaginabetesporte comercialacordo com o que uma mulher deve ter".
Além da incontinência urinária, essas cirurgias resultarambetesporte comercialoutros problemas: perdabetesporte comercialprazer, traumas e choque pós-traumático.
Meus pais seguiram rigorosamente o que os melhores especialistas diziam. Jamais quiseram me prejudicar. Naquela época, os médicos diziam que era o melhor para mim.
É incrível o que um corpo tem que suportar para se encaixar na sociedade.
O segredo familiar
Enquanto a vida familiar giravabetesporte comercialtorno da minha saúde, meus pais juraram guardar o segredo e prometeram nunca me contar nada.
Ao mesmo tempo, nos meus primeiros mesesbetesporte comercialvida, eles iniciaram um processo judicial para solicitar a mudançabetesporte comercialnome e sexo na certidãobetesporte comercialnascimento. Não queriam apenas uma correção na certidão existente, mas sim um novo documento, para nunca precisarem dar explicações a ninguém.
Um ano depois, meus pais receberam a notíciabetesporte comercialque um juiz havia assinado a sentença anulando a certidãobetesporte comercialnascimentobetesporte comercialEsteban Schamun e ordenando uma nova certidãobetesporte comercialnomebetesporte comercialMaría Candelaria Schamun. O documentobetesporte comercialEsteban ainda existe e está arquivado no processo com seu nome.
Meus pais comemoraram a decisão judicial como um novo nascimento.
A fé religiosa deles, especialmente abetesporte comercialmeu pai - um homem que aos 12 anos sonhavabetesporte comercialser padre - tornava quase impossível discutir questões consideradas desconfortáveis na família.
O silêncio me causou muito dano, mas agora sei que tudo o que buscavam era me proteger.
Apenas aos 17 anos descobri a verdade. E, paradoxalmente, apenas me unibetesporte comercialsilêncio ao segredo dos meus pais.
Durante anos, não contei a ninguém.
Mas à medida que os anos passavam, o segredo se transformavabetesporte comercialescuridão.
Tive uma briga com minha mãe - meu pai já havia falecido -, a relação se tornou insuportável e saíbetesporte comercialcasa aos 18 anos.
Foi apenas uma década depois que consegui falar sobre isso pela primeira vez com uma psicóloga.
O assunto me envergonhava. Tinha medobetesporte comercialque deixassembetesporte comercialme amar oubetesporte comercialque me fizessem perguntas que eu não podia responder.
"É compreensível. A mutilação genital é considerada tortura. Você foi torturada. Você está passando por um choque pós-traumático, que pode ser comparado ao choque que os soldados sofrem ao retornar da guerra", me disse a terapeuta.
Aos 30 anos, consegui confrontar minha mãe. Ela me escreveu uma carta confessando que nunca quiseram me criar como uma criança doente. Queriam que eu fosse livre. E conseguiram.
"Fizemos tudo o que os médicos nos mandaram. Se precisássemos ir à China, íamos à China, corríamosbetesporte comercialum lado para o outro", diz um dos trechos da carta.
"Fizemos o impossível para que você tivesse uma infância feliz e normal como as outras crianças dabetesporte comercialidade".
Depoisbetesporte comercialconversar com minha mãe, consegui transformar a raiva acumulada ao longo dos anosbetesporte comercialempatia.
Naquele momento, ainda não entendia completamente a magnitudebetesporte comercialcolocarbetesporte comercialpalavras minha história,betesporte comercialcomo contar o que estava acontecendo comigo poderia libertar muitas pessoas, alémbetesporte comercialme libertar.
Nova etapa
Em 2019, no Encontro Nacionalbetesporte comercialMulheres da Argentina, durante a primeira oficina sobre intersexualidade realizada no evento, decidi amplificar minha voz.
Foi a primeira vez que contei minha história diantebetesporte comercialum grupobetesporte comercialpessoas desconhecidas.
Estava muito ansiosa, queria compartilhar, mas a situação me aterrorizava.
Fui a primeira a levantar a mão e comecei a falar. Falei tanto que mal conseguia respirar. Não conseguia parar, eram anosbetesporte comercialsilêncio.
Quando terminei, fui aplaudida e abraçada. Recebi muito amor. Foi só então que entendi que não era um monstro e que minha história poderia ajudar outros.
Não precisava mais me esconder. Aos poucos, tudo começou a fazer sentido.
Começaram a se aproximar pessoas intersexuais que, pela primeira vez, ouviambetesporte comercialprópria história na vozbetesporte comercialoutra pessoa, que por anos pensaram que seus casos eram únicos.
Nos criaram acreditando que não havia ninguém que pudesse ter algumas características semelhantes. Foram anosbetesporte comercialmuita solidão.
Então, me animei a escrever minha história,betesporte comercialprimeira pessoa. Queria contar o dano irreparável e irreversível que a medicina causou no meu corpo.
Escrever este livro, colocarbetesporte comercialpalavras "Ese que fui", aliviou minha vida e abetesporte comercialtoda minha família. Gostaria que fosse publicadobetesporte comercialoutros países,betesporte comercialoutros idiomas, pois pode ajudar muitas pessoas.
A mutilação genitalbetesporte comercialcrianças que nascem com traços intersexuais já não é a norma.
Apesarbetesporte comerciala ciência recomendar que o melhor é deixar que a pessoa decida sobre seu próprio corpo, ainda são realizadas outras cirurgias genitais, irreversíveis, dolorosas e traumáticas, para normalizar corposbetesporte comercialbebês, crianças e adolescentes.
Há organizaçõesbetesporte comercialpessoas intersexuaisbetesporte comercialtodo o mundo que estão lutando pelos nossos direitos, para que não continuem intervindobetesporte comercialcorposbetesporte comercialcrianças e bebês intersexuais apenas por questões estéticas.
Se você acredita que é intersexual, aproxime-se dessas organizações, você encontrará apoio e acolhimento.
Eu passei por um processo cirúrgico desnecessário, apenas com o objetivobetesporte comercialmodificar meu corpo e, assim, eliminar todas as características que poderiam gerar ambiguidade ou rejeição da sociedade.
É necessário repensar muito a visão que temos sobre os corpos, até que ponto estamos dispostos a permitir que uma pessoa sofra para se encaixar aos olhos dos outros.
Conto minha história para que, entre outras razões, parembetesporte comercialmutilar crianças intersexuais e para que se garanta o direito à integridade corporal e à verdade.
Hoje, sinto orgulho do que meus pais fizeram; este livro,betesporte comercialparte, é uma formabetesporte comercialagradecê-los. E sinto orgulhobetesporte comercialser Candelaria, embora também haja uma partebetesporte comercialmim que ainda é Esteban.
Olho para trás e sinto alegria por ser quem sou.