Como nasceu a Cracolândia, bairro dos barões do café que virou problema 'sem solução'betboo 268São Paulo:betboo 268

Em alguns momentos, podem ser algumas dezenasbetboo 268pessoas,betboo 268outros, centenas, que chegam a ocupar dois ou três quarteirões inteiros.

A Cracolândia é considerada por alguns especialistas como um dos problemas urbanosbetboo 268saúde, segurança pública e social mais difíceisbetboo 268solucionar no Brasil.

Mas como a Cracolândia chegou ao pontobetboo 268que está hoje?

A BBC News Brasil conversou com especialistas, moradores e ex-usuários para entender como a Cracolândia nasceu e por que ela nunca foi desmantelada.

O fluxo, como é chamada a maior concentraçãobetboo 268usuários, já mudou incontáveis vezesbetboo 268lugar.

A presença dele é motivo para desvalorização imobiliária, queda nas vendas do comércio nas redondezas e insegurança por conta do medo que os moradores têmbetboo 268serem roubados.

Recentemente, o governador do Estadobetboo 268São Paulo, Tarcísiobetboo 268Freitas (Republicanos), chegou a anunciar que migraria essa concentraçãobetboo 268usuários para o bairro do Bom Retiro, mas logo recuou.

Glória, uma moradora local que pediu para não ter seu nome verdadeiro revelado, diz ter comprado um apartamento na região por conta da quantidadebetboo 268serviços que havia no abastado bairrobetboo 268Campos Elíseos na décadabetboo 2681980.

"Aqui era considerada uma região nobre. Com estaçãobetboo 268trem, comércios nos arredores, uma salabetboo 268teatro, o Liceu Sagrado Coraçãobetboo 268Jesus. Eu morava na [avenida] Novebetboo 268Julho, mas queria comprar um apartamento novo. Era tudo muito lindo, então compramos um aqui perto. Eu achei o bairro interessante porque era perto da rodoviária também. E, na época, não tinha crack", conta ela.

Da Boca do Luxo à Boca do Lixo

O bairrobetboo 268Campos Elíseos já nasceu como uma região nobre da capital paulista. Com a intençãobetboo 268abrigar os barões do café, foi a primeira área planejada da cidade.

Os pesquisadores ouvidos pela BBC News Brasil contam que o local foi escolhido pela burguesia para erguer seus casarões porque era privilegiadobetboo 268diversos aspectos, principalmente pela proximidade com a estação da Luz, que levava ao interior e à então capital do país, o Riobetboo 268Janeiro.

Também era um local estratégico para que os barões tivessem próximosbetboo 268onde partiam as locomotivas carregadas com o café negociado por eles.

Raquel Rolnik, professora da Faculdadebetboo 268Arquitetura e Urbanismo da Universidadebetboo 268São Paulo (USP), afirma que essa estrutura foi decisiva para que a elite paulistana se instalasse ali.

“No final dos anos 1800, as estações ferroviárias da região eram usadas pela elite como meiobetboo 268transporte. Mas isso mudou com a instalação da rodoviária, que trouxe um movimentobetboo 268ônibus e migrantes recém-chegados, além da instalaçãobetboo 268pensõesbetboo 268curta duração. Isso foi tensionando com o uso dos palacetes, que foram deixandobetboo 268ser habitados”, conta.

Em 1961, o bairro inaugurou a rodoviária da Luz, a primeira da cidade. O local se tornou instantaneamente o principal pontobetboo 268chegada à metrópole, e isso foi um divisorbetboo 268águas para a região.

A chegadabetboo 268massabetboo 268migrantes vindosbetboo 268outras regiões do país atraiu o comércio popular para os arredores da Luz.

Com um aumento exponencial do númerobetboo 268pessoas que passaram a circular pelo bairro, a região se tornou movimentada, popular e poluída por conta do grande fluxobetboo 268veículos, afirmam os especialistas à BBC News Brasil.

Dezenasbetboo 268lojas foram inauguradas na região para atender às demandas dos viajantes, e a Luz se tornou um dos principais polosbetboo 268trabalho da cidade.

Aos poucos, as famílias mais ricas começaram a se mudar para as avenidas Paulista e Faria Lima, além dos bairrosbetboo 268Moema, Jardim Europa, Jardim Paulista e Higienópolis.

Mas esse cenário mudou completamentebetboo 2681982, quando o então prefeito Paulo Maluf inaugurou a rodoviária do Tietê, a maior da América Latina e a segunda maior do mundo - atrás apenas do terminalbetboo 268Nova York.

Meses depois, o terminal da Luz foi desativado, e isso causou um efeito dominó na região.

Da noite para o dia, ocorreu um esvaziamento repentino dos hotéis e comércios, explica o pesquisador e urbanista Aluízio Marino, pós-doutorando pela USP.

A área abandonada foi ocupada rapidamente por pessoasbetboo 268situaçãobetboo 268rua.

“As pessoas começaram a dormir na marquise da rodoviária. Mas, no começo, eram poucos e não incomodava. Anos depois, fechavam a rua”, afirma Glória, a moradora que vive há maisbetboo 268três décadas na região.

Rolnik lembra que o Shopping Fashion Center Luz foi inaugurado no lugar da rodoviária, mas a Prefeitura o desocupou para construir um teatrobetboo 268ópera e dançabetboo 268uma tentativabetboo 268atrair a classe médiabetboo 268volta para o bairro.

“Desde os anos 1980, o governo não reconhece a existênciabetboo 268um bairro popular na região e tenta atrair a classe média. Essas tentativas são feitas sem levarbetboo 268conta as necessidadesbetboo 268quem vive ali,betboo 268precariedade”, diz Rolnik.

"A Prefeitura mandou fechar o shopping, mas ficou abandonado. E lugares abandonados atraem pessoas abandonadas. Hoje, há uma guerra contra as pessoas abandonadas para tentar transformar aquele lugar no que ele não é".

Ela ainda cita que outros equipamentos culturais, como a Sala São Paulo, a Pinacoteca e o Museu da Língua Portuguesa foram inaugurados na região ainda nessa tentativabetboo 268atrair a classe média. Mas essa estratégia também fracassou.

A cola e o crack

A região esvaziada, com quartosbetboo 268hotéis e pousadas com preços promocionais para tentar manter a ocupação, se tornou um conhecido pontobetboo 268prostituição e consumobetboo 268drogas. Na época, era conhecida como Boca do Lixo.

Para entender a origem do nome, é necessário saber que, nas décadasbetboo 2681920 e 1930, se instalaram na região empresas cinematográficas, como Paramount, Fox e MGM.

A partir do final da décadabetboo 2681960, a indústria do cinema independente ganhou destaque no bairro.

O pesquisador Aluízio Marino afirma que a região passou a ter uma relevância também para o samba.

“Nesse momento, iniciou-se um processobetboo 268abandono do território pelas elites. Saiu da Boca do Luxo para a Boca do Lixo. Mas a classe popular nunca abandonou a região”, afirma o professor.

"O crack foi o acesso à cocaína para as pessoas que não tinham dinheiro."

Naquele momento, Glória entendeu que o sonho dela tinha se tornado um pesadelo.

Trinta anos depoisbetboo 268se mudar para a região, ela evita sairbetboo 268casa por medobetboo 268ser roubada. E conta que o glamourbetboo 268décadas atrás deu lugar ao desespero.

“Para você ter uma ideia, a Paróquia Sagrado Coraçãobetboo 268Jesus, do Liceu, fazia muitos casamentos. Tinha filabetboo 268até dois anos. Era lindo ver as noivas e as pessoas felizes. Mas, com o tempo, os próprios flanelinhas que pediam para olhar os carros passaram a quebrar os vidros e fazer furtos. As pessoas saíam, viam tudo destruído e aquilo acabava com o dia delas. Então, as pessoas não querem mais se casar lá”, afirma.

Em 2022, o Colégio Salesiano, ligado à paróquia, anunciou que fecharia as portas por conta da insegurança na região e baixa procura por novas matrículas.

Para evitar o encerramento das atividades, a Prefeiturabetboo 268São Paulo fez uma parceria com o colégio e manteve o ensino para 500 crianças do ensino infantil e fundamental público.

A chegada da pedra

A possibilidadebetboo 268se hospedar por um preço baixo, ser um pontobetboo 268prostituição e ainda a grande ofertabetboo 268drogasbetboo 268uma área abandonada atraiu traficantes e usuáriosbetboo 268diversas regiões, até mesmobetboo 268outros Estados, para a Boca do Lixo.

Pessoas que viviam nas praças Roosevelt e da Sé, também localizadas no Centro, por exemplo, migraram para a região onde hoje fica a Cracolândia.

Edivaldo Godoy,betboo 26865 anos, conta que foi um deles. Na época, diz ele à BBC News Brasil, era moradorbetboo 268rua e foi um dos primeiros a experimentar o crack e viver nas ruas da Cracolândia, no início da décadabetboo 2681990.

“Ali sempre foi uma bocabetboo 268fumo. Tinha muita cola, maconha e cocaína. Eu costumava cheirar cola, mas, quando o crack chegou, a estrutura para o tráfico já estava pronta”, afirma.

Ele conta que a droga tem um efeito "devastador" por contabetboo 268seu potencialbetboo 268dependência e que logo se popularizou na região.

Ele descreve o que sentiu nas primeiras experiências.

“O efeito é muito rápido, forte e gostoso. Aquilo mexe com qualquer um porque ele acaba muito rápido. E ficar sem aquela sensação é devastador.”

Depoisbetboo 268idas e vindas no sistema penitenciário, ele deixoubetboo 268usar drogas, virou pastor e hoje lidera o projeto SOS Carentes, que acolhe usuários, principalmente da Cracolândia, e egressos do sistema penitenciário.

Ele conta que, assim que o crack chegou a São Paulo, algumas pessoas do crime discordavambetboo 268que a droga deveria ser vendida por contabetboo 268sua potência. Todos os que discordavam foram mortos, diz Edivaldo.

“Foram morrendo os caras que eram contrários. Mataram um deles e colocaram o corpobetboo 268um carrinhobetboo 268lixo”, lembra ele.

Na época, a droga mais consumida era a colabetboo 268sapateiro, por ser barata,betboo 268fácil acesso e ser um potente alucinógeno. Mas, assim que o crack apareceu, se tornou a bola da vez.

A primeira apreensão da droga ocorreubetboo 2681990, no bairrobetboo 268São Mateus, no extremo leste da capital.

O pastor explica ainda que a dinâmica do usobetboo 268crack foi determinante para essa constante concentraçãobetboo 268usuários a céu aberto.

“O cara que fuma maconha ou usa cocaína vai até a biqueira, compra e volta para casa. Já quem usa crack precisa daquilo toda hora. Acaba uma pedra e o cara quer outra. Então, ele não se distancia da boca, fica sempre ali por perto sempre juntando dinheiro para comprar mais", conta ele.

Edivaldo diz que foi preso diversas vezes. Ele conta que chegou a ficar preso no Carandiru e foi um dos sobreviventes do massacre que deixou 111 mortosbetboo 268outubrobetboo 2681992.

Ele diz que só saiu com vida porque se fingiubetboo 268mortobetboo 268meio a corpos ensanguentados.

Desocupa, derruba e espalha

Aluízio Marino afirma que a primeira grande operação tolerância zero na Cracolândia ocorreu durante a gestão do então prefeito Celso Pitta, aliadobetboo 268Paulo Maluf,betboo 2681997.

"Na época, surgiu a ideiabetboo 268delimitar o território para estigmatizá-lo e justificar as operações policiais", afirma.

"A guerra às drogas e a desumanização das pessoas que vivem ali criou uma carta branca para as operações. Mas essas ações ocorreram diversas vezes e não resolveram o problema.”

Em 2005, o arquiteto conta que o poder público passou a inaugurar uma sériebetboo 268espaços públicos para tentar atrair mais abastadosbetboo 268volta para a região.

“A Cracolândia só mudoubetboo 268lugar", afirma Marino.

"As construtoras querem derrubar tudo e erguerbetboo 268novo, mas ali é uma regiãobetboo 268que há muitos processosbetboo 268herança mal concluídos, muitas dívidasbetboo 268imóveis e patrimônio histórico. Tudo ali é tombado, e isso é uma pedra no sapato do mercado imobiliário. Dificulta muito o lado deles.”

Para Marino, o governo deveria testar novas estratégias para tentar desocupar a Cracolândia.

Uma delas é dar moradia e emprego para todos os usuários. No pontobetboo 268vista dele, a tentativa mais próximabetboo 268ao menos amenizar o problema da região foi a implantação do programa De Braços Abertos, da gestãobetboo 268Fernando Haddad (PT) na Prefeitura.

De maneira resumida, o programa oferecia moradia e um saláriobetboo 268R$ 15 por dia para que os usuários fizessem a limpeza das ruas da região.

O programa foi criticado na época por moradores e comerciantes da região que avaliavam que o projeto não conseguiria resolver o problema e poderia até agravá-lo ao supostamente facilitar a permanência dos usuários na região.

Em 2014, um dos idealizadores do projeto também apresentou críticas a ele. Em entrevista ao jornal O Estadobetboo 268S. Paulo, o psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira apontou que faltavam equipes médicas e treinamento.

Em novembro do mesmo ano, no entanto, Dartiu retornou ao De Braços Abertos com um plano para capacitar agentesbetboo 268saúde, médicos, psicólogos e policiais que atuavam no programa.

“O Braços Abertos era um projeto piloto para tentar algo na linha da reduçãobetboo 268danos, com critériosbetboo 268atendimento. Mas a gestão mudou (para o prefeito João Doria), chamou o programabetboo 268Bolsa Crack e o encerrou. Um absurdo, que causou um desmonte”, afirmou Aluízio Marino.

Nas últimas semanas, a Cracolândia viveu uma escaladabetboo 268violência. Foram registrados constantes confrontos entre policiais militares, guardas civis e os usuários. A maior parte foi filmado por moradores da região.

No início da noitebetboo 268terça-feira (15/7), o porteiro João da Silva Sousa,betboo 26854 anos, foi morto durante uma tentativabetboo 268assalto no largo General Osório, na região da Cracolândia.

Ele foi golpeado por uma "arma branca cortante" usada por um homem que tentou roubar a mochila dele.

João chegou a ser levado ao hospital, mas não resistiu aos ferimentos.

Na mesma noite, as polícias civil e militar fizeram uma açãobetboo 268conjunta com a Guarda Municipal na Cracolândia. O resultado foram três pessoas detidas por tráficobetboo 268drogas e a prisãobetboo 268uma mulher procurada pela Justiça.

A Secretaria da Segurança Pública informoubetboo 268nota enviada à reportagem que "a operação também incluiu investigações visando à identificação das cercabetboo 268800 pessoas na região, com o propósitobetboo 268melhor compreender o perfil dos usuários para aprimorar os serviçosbetboo 268saúde e assistência social. Além disso, buscou-se identificar desaparecidos e indivíduos que estivessem descumprindo penas ou medidas alternativas na área, a fimbetboo 268informar o Poder Judiciário".

A morte ocorreu no mesmo diabetboo 268que usuáriosbetboo 268drogas entrarambetboo 268confronto com lojistas da região.

Comerciantes, principalmente da rua Santa Ifigênia, conhecida pelo comérciobetboo 268eletrônicos, frequentemente usam paus e pedras para expulsar os usuários da região.

Os lojistas acusam os usuáriosbetboo 268cometerem furtos e roubos contra comércios e pedestres, o que leva insegurança para a área e atrapalha as vendas. Vídeos publicados no YouTube mostram multidões se enfrentando nas ruas da Santa Ifigênia.

Procurada pela reportagem, a Secretaria da Segurança Pública informou "que, ao longo deste ano, tem intensificado seus esforços na Cracolândia, buscando aprimorar a qualidadebetboo 268vida dos moradores, comerciantes e pessoas que passam pelo local. Como resultado dessas iniciativas, os índicesbetboo 268roubo e furto têm diminuídobetboo 268comparação ao mesmo períodobetboo 2682022. Entre os dias 31betboo 268julho e 6betboo 268agosto, os registrosbetboo 268tais crimes nos bairrosbetboo 268Campos Elíseos e Santa Cecília caírambetboo 26824%, apontando para uma tendênciabetboo 268redução sustentada por 18 semanas consecutivas".

A pasta disse ainda que "essa queda nas estatísticas criminais reflete a atuação da polícia tanto na área central como nos arredores da região frequentada pelos usuáriosbetboo 268drogas. Ainda, neste ano foram apreendidos 512,78% entorpecentes a mais do que no ano passado. Adicionalmente, o policiamento ostensivo foi intensificado com um acréscimobetboo 268120 policiais nas ruas diariamente".

Já a Prefeiturabetboo 268São Paulo disse à BBC News Brasil que vem ampliando e melhorando a ofertabetboo 268serviçosbetboo 268tratamento e assistência à populaçãobetboo 268situaçãobetboo 268rua que faz usobetboo 268álcool e outras drogas.

"Hoje, já são maisbetboo 268450 beneficiários que deixaram a Cracolândia e foram inseridos no mercadobetboo 268trabalho. O monitoramento e aprimoramento desta política é constante", disse a Prefeiturabetboo 268nota.

Para o urbanista Aluízio Marinho, da USP, a melhor maneirabetboo 268lidar com o problema ébetboo 268forma humanizada e oferecer estrutura para que ela tenha atendimento médico, moradia e emprego.

“É preciso tratar o problema sem cair no debate moral”.