Fim da cracolândia: o que especialistas, governo e prefeitura apontam como solução para a feiradrogasSP:
O governadorSão Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), e o prefeito João Doria foram ao local e disseram que essa ação será constante para inibir o tráficodrogas na região.
Nos últimos 22 anos, apesardiferentes ofertastratamento, emprego e acomodação por governos e ONGs, a região continua a atrair traficantes, moradoresrua, ex-condenados e pessoas incapazesse integrar à sociedade.
Mas o que pode ser feito para impedir que dependentes tomem ruas e se aglomerem para comprar, negociar e usar crack? E qual seria a forma mais eficaztratar essas pessoas para que abandonem o vício, retomando a saúde e a perspectivauma vida normal?
A BBC Brasil consultou as gestõesDoria eGeraldo Alckmin, alémespecialistas e agentes que atuam na região sobre o que pode ser feito para acabar com a cracolândia e seus problemas sociais.
Segurança pública
Em geral, houve consenso sobre a importância do policiamento ostensivo para coibir a atuaçãotraficantes e evitar que as drogas cheguem aos usuários na cracolândia.
Para a professora livre-docenteDireito Internacional na USP Maristela Basso, por exemplo, uma atuação rígida da polícia inibirá a ação do tráfico e devolverá confiança à população sobre a efetividadepolíticas para a região.
"Não sei o que será daqui para frente, mas o importante é que o primeiro passo foi dado (megaoperação). O que não pode é parar. Deve haver um sufocamento (dos traficantes). Prender quem tem que prender e tratar quem tiver que tratar", diz.
Basso defende a iniciativa da gestão Doria e diz que seria "uma fraude" caso a ação anticrack do governo enfraquecesse com o tempo.
"Não adianta só espalhar os usuários. A sociedade não vai aceitar que eles migrem para outros bairros e nada seja solucionado. Mas é necessária uma aliança com a sociedade. Se as críticas forem tão severas sobre as ações, ele (prefeito) pensa: 'Vamos encerrar isso'", afirma Basso.
Maurício Fiore, pesquisador do Cebrap (Centro BrasileiroAnálise e Planejamento) e coordenador científico da Plataforma BrasileiraPolíticaDrogas, diz que é importante que o debate público sobre soluções "não misture o tratamento dos usuários com a regiãosi".
"Quando você busca uma solução para o espaço nem sempre é a mesma para as pessoas", afirma o cientista social, para quem os dependentes químicos "se cansaram das ações repressivas porque isso não resolveu".
O advogado ArielCastro Alves, integrante do Conselho EstadualDireitos Humanos, diz que houve violência excessiva na ação organizada pela prefeituraparceria com o Estado, e opina que isso não pode se repetir.
"Colhemos (após a ação policial) depoimentos30 vítimasviolaçõesdireitos humanosuma semana, entre dependentes agredidos por policiais ou por guardas municipais, moradores despejados pela prefeitura e outros ameaçadosdespejo", afirma.
A Polícia MilitarSão Paulo diz que ninguém se feriu na ação e que houve despejos por irregularidades nos imóveis, como riscodesabamento, faltaestrutura eequipamentossegurança obrigatórios.
A Secretaria da Segurança Pública afirma ainda manter o policiamento na cracolândia "com equipes das polícias Civil e Militar para, alémcombater o tráfico no local, prestar apoio às equipessaúde e assistência social".
A pasta informa ainda que o departamentonarcóticos (Denarc) prendeu 162 traficantes na região desde 2015. Trinta deles, incluindo o suspeitoser responsável por abastecer o tráfico na região, foram presos durante a megaoperação21maio.
A prefeitura diz que há nove carros da Guarda Civil Metropolitana na cracolândia, com 26 agentes. Cinco câmerasvigilância foram instaladas na região e há quatro ônibus que gravam a movimentação no local e funcionam como centralmonitoramento.
Saúde
Cuidar dos usuáriosdrogas, tirá-los das ruas e oferecer tratamento médico até que eles tenham condiçõesretomar suas vidas também é uma política unânime entre os entrevistados. Mas a internação compusória, aposta da gestão Doria, divide opiniões.
A gestão chegou a conseguir uma decisão judicialprimeira instância que autorizava a remoção à forçausuários da região para avaliação médica, mas o TribunalJustiçaSão Paulo derrubou a decisão.
De acordo com o governo Alckmin,2013 até o final2016, o programa Recomeço fez 53.214 triagens e acolhimentos e internou 11.507 pacientes, sendo 8.904 voluntários, 2.580 involuntários e apenas 23 à força. A prefeitura afirma que a internação compulsória é usada apenasúltimo caso.
Para Ronaldo Laranjeira, psiquiatra e coordenador do Recomeço (programa do governo estadual para tratamento dos dependentes químicos), a internação compulsória deve ser usada apenascasos extremos.
"Você acha humano ver uma pessoa com dependência química grave aliada a doenças graves, como Aids e sífilis, e não fazer nada? Não agir num caso desse é omissãosocorro", diz.
Em relação à ação judicial da prefeitura que pede autorização para internar usuários à força, ele diz apenas que a lei deve ser seguida.
"Há uma resolução do Conselho RegionalMedicina que prevê internação compulsória individual após autorização da família, médico e Ministério Público. É o que fazemos há cinco anos", diz.
Para Fiore, do Cebrap e Plataforma BrasileiraPolíticaDrogas, a internação forçada "nunca pode ser usada como uma política pública". Ele acrescenta que o recurso é importantemuitos casos, mas não pode ser eixo centralpolítica.
"A internação compulsória tem o pior resultado entre os tratamentos, alémenvolver violaçõesdireitos", defende.
O advogado ArielCastro Alves vai na mesma linha.
"Essas internações (compulsórias) só podem ser feitas com baselaudos médicos e decisões judiciais individuais, antecedidas por manifestações do Ministério Público e da Defensoria Pública. O trabalho social esaúde éconquistavínculos e confiança. Não érepressão, abuso e autoritarismo", afirma.
A professoradireito Maristela Basso vê a internação compulsória como parte da função do Estadoproteger o direito das pessoas.
Ela considera a solicitaçãoautorização da prefeitura como "proteção para evitar medidas do Ministério Público, que estava tentando impedir a prefeituracumprir seu dever".
Assistência social
Segundo a PrefeituraSão Paulo, desde a megaoperação policialmaio equipesassistência social fizeram 12.687 abordagens na região da cracolândia, com 7.049 encaminhamentos para acolhimentoequipamentos públicos e 5.638 recusasatendimento.
Para Basso, da USP, a ação policial que espalhou os usuários facilita o trabalhoabordagemassistentes sociais, que poderiam buscar contato com dependentesgrupos menores.
No entanto, psicólogos e agentes sociais que atuam na cracolândia - e pediram para ter suas identidades preservadas - afirmam que o debate sobre internações compulsórias acabou aumentando a desconfiança dos usuários.
"As pessoas passam a nos ver como inimigos. Eles começam a desconfiarque possam ser levados a qualquer momento numa camisaforça, e isso destrói nosso trabalho porque os deixa numa situação eternatensão. Mesmo aqueles que já estavam prestes a aceitar o tratamento acabam se afastando", diz uma agente ouvidacondiçãoanonimato.
Para quem atua no local, a polícia deveria apenas investigar o tráfico, sem causar grande estresse aos usuários.
O coordenador do Recomeço, Ronaldo Laranjeira, explica que foram instalados diversos serviços para atender os usuários na rua Helvétia - um dos pontosgrande concentraçãousuários antes da operação policial.
"Lá, eles podem tomar banho, ter acesso a médicos e até academia. Não faltaserviços. O problema está no engajamento para convencer o usuário a participar", diz Laranjeira.
Para ele, dar o primeiro passo e iniciar o tratamento é a tarefa mais difícil da desintoxicação.
"É muito complicado falar para um viciado deixar aquele ambiente onde estão seus amigos e encontra crack barato eabundância para se internar. Ninguém quer isso", diz.
Laranjeira fala ainda que é essencial ter uma "linhasaídaqualidade, com cursos profissionalizantes e ofertaemprego para que as pessoas retomarvida e todo esse esforço não tenha sidovão".
São 25 conselheiros que atuam como agentes e conversam diretamente com os usuários. Caso aceitem ser internados, os pacientes ficam15 a 30 dias internados para desintoxicação.
Após esse período, ele é reavaliado pelos médicos, que definem se será necessária uma nova internação ou apenas atendimento ambulatorial no CentroAtenção Psicossocial (Caps).
Segundo os agentes, eles passaram a ser vistos com desconfiança pelos usuários após a operação policial. Alguns, inclusive, foram roubados nos últimos dias.
Os profissionais que trabalham na cracolândia ouvidos pela BBC Brasilcondiçãoanonimato disseram que a prefeitura "destruiu um trabalhoanos".
"Vamos ter que começar tudonovo", diz uma mulher que trabalha no Recomeço.
O Caps instalado na cracolândia tem dois psiquiatrasplantão 24 horas.
Habitação e emprego
Mas nada vale um trabalho socialabordagem, convencimento e tratamento se o ciclo da reinserção social não fechar.
É consenso entre os especialistas ouvidos que o sucesso na luta contra o crack só é possível se a pessoa passar a preencher seu tempo livre com trabalho e afetoamigos e familiares, alémter um lugar garantido para voltar e dormir.
Sobre ofertatrabalho, o governo Doria acabou com o programa De Braços Abertos, da gestão anteriorFernando Haddad (PT), que oferecia moradiahotéis da cracolândia e R$ 15 por dia a dependentes que trabalhassematividades como varrição e jardinagem.
Para Maurício Fiore, a iniciativa anticrack da gestão petista "seguia numa direção correta" que deveria ter sido mantida.
"Aquela política não conseguiu resolver, mas pesquisas apontaram que eles estavam reduzindo o consumo e melhorandovida. É um trabalho longo, difícil e que envolve esse estar permanente com agentessaúde. Mais do que cobrar e exigir deles, o importante é oferecer um conjuntodireitos", diz.
A prefeitura destaca que negocia parcerias com empresários para dar emprego a todos os usuários que passarem pelo tratamentodesintoxicação.
Recentemente, Doria anunciou a oferta, por uma redefast food,cem vagasemprego para moradoresruageral - são cerca20 mil na capital paulista.
Sobre ofertahabitação, o governo estadual afirma estudar a construçãocerca3,7 mil moradias na região da cracolândia nos próximos anos. A previsão é que 91 apartamentos sejam concluídos até o fim deste ano e outras 1,2 mil antes até o fim2018.
Segundo o governo, 80% das unidades serão disponibilizadas para financiamentobaixo custo a pessoas que moram fora do centro, mas trabalham na região. Outros 500 apartamentos estão reservados para movimentos sociaismoradia.
Para o secretário municipalHabitação da gestão Haddad e professorurbanismo na USP, João Whitaker, o atual projeto habitacional da cracolândia não irá beneficiar os dependentes químicos que circulam pela região.
"O ideal é oferecer apartamentos para quem aderir ao tratamento. Com moradia oferecida pela prefeitura, ela se reinsere no mercadotrabalho", diz.
"Essas moradias que serão construídas não serão para a população da região porque serão da faixaaté dez salários mínimos estaduais. Isso não vai beneficiar os pobres. É para classe média baixa e média. Dizer que é para pobres é enganação", conclui.