'1984': livroGeorge Orwell é uma crítica 'contra a esquerda'?:
A pasta é a responsável pela propaganda e pela falsificaçãodocumentos históricos, garantindo a narrativa pró-governo. Sua função principal é alterar registros para que estes espelhem a versão oficial da história promovida pelo Partido — garantindo que a instituição sempre esteja certa e anarrativa seja a única verdade.
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No contexto do livro, este instrumentomanipulação serve para o controle do pensamento dos cidadãos e a manutenção do poder.
Quando a Companhia das Letras reeditou, quatro anos atrás, o livro A Fazenda dos Animais (‘Animal Farm’) —traduções mais antigas, publicado no país como A Revolução dos Bichos —, tambémOrwell e também com um peso político importante, o professorliteratura da UniversidadeSão Paulo (USP) Marcelo Pen ressaltou, no posfácio, que a obra orwelliana era vítima do que ele chamou“apropriação retrógrada”, por meioleituras que tendem a atribuir a suas obras o viéspropaganda anticomunista.
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Mas pessoalmente, o escritor inglês se definia como “socialista democrático”. Orwell, no entanto, fazia críticas duras ao stalinismo, o socialismo implantado na União Soviéticaviés autoritário. O livro A Revolução dos Bichos é muitas vezes visto como uma crítica ao regime soviético.
“Talvez seja complicado falarmensagem [em 1984], sobretudo com relação à forma do romance moderno que, ao contrárioformas narrativas mais antigas, não contém, propriamente, uma mensagem ou liçãovida”, argumenta Pen, à BBC News Brasil.
“No entanto, podemos dizer algo acerca da intenção do autor, que chegou a dizer, publicamente, queobra não seria um ataque ao socialismo, por exemplo, mas sim um alerta sobre o perigo do totalitarismoqualquer parte, tanto com relação ao fascismo e ao tal stalinismo soviético quanto ao que ele chamava‘americanismo’ das terras do Tio Sam.”
Professor na Pontifícia Universidade Católica do Rio (PUC-Rio), o poeta e tradutor Paulo Henriques Britto lembra à reportagem que Orwell “era um jovemesquerda” quando participou como voluntário da Guerra Civil Espanhola “e, por mero acaso, foi parar num grupo anarquista”.
“Vendo que os comunistas, na época controlados por Stálin, tratavam os anarquistas como se eles, e não os franquistas, fossem o inimigo, Orwell voltou da Espanha como um antiestalinista ferrenho, e a União Soviética passou a ser vista por ele como a encarnação do totalitarismo”, contextualiza Britto.
“‘Animal Farm’ é o livroque ele mostramodo mais claroposiçãorelação ao que lhe parecia a transformação do comunismo, sob Stálin,totalitarismo”, compara. “Em 1984 ele imagina um mundo dividido entre um número reduzidoEstados totalitários que parecem fundir o que hápior no fascismo e no estalinismo.”
Para o professor Britto, “os dois livros são, portanto, essencialmente manifesto antitotalitários”.
Com a experiênciatambém já ter trabalhado com obrasOrwell, o escritor e tradutor Antônio Xerxenesky ressalta à BBC News Brasil que, “pela biografia” do escritor inglês, “podemos dizer que 1984 representa uma desconfiança a qualquer formatotalitarismo”.
“Ecos disso se encontram1984: a figura do Grande Irmão pode muito bem ser associada àStalin, e todo o regime retratado tem características estéticas do comunismo linha-dura. Isso não quer dizer quecrítica se restrinja ao comunismo”, diz Xerxenesky, ressaltando que “muitas leituras são capazesassociar outros traços do regime ao nazismoHitler”.
Autor da versãographic novel1984, o artista e ilustrador Fido Nesti comenta à reportagem que, a seu ver, “Orwell esperava alertar sobreque maneira um país, ou o mundo, poderia degringolar nas mãosum governo extremamente autoritário”.
“Criou um universo, que passamos a chamarorwelliano, onde a sociedade é estrangulada a pontoser incapazter um pensamento ou existência autônoma”, salienta Nesti.
Outro tradutorOrwell para o português, o jornalista e escritor Bruno Cobalchini Mattos diz à BBC News Brasil que o livro “de forma bastante clara, é sobre o perigo e o risco do totalitarismo,como o regime totalitário acaba permeando o pensamento das pessoas muitas vezes sem que elas percebam”.
Corrupção da linguagem
“Precisamos sempre tomar muito cuidado, porém, para não transformar Orwellum caso, como base para uma discussão geral, digamos,denúncia como o totalitarismo”, pontua Pen
O acadêmico avalia que “esse romance fala diretamente,um modo assombroso e inquietante, à nossa época”. “E não exatamente porintenção antitotalitária, pois diria que várias outras obras, antes e depois, cumpriram esse papel, mas por atrelar o totalitarismo à corrupção da linguagem”, explica.
“Esse é um ponto crucial do enredo. O protagonista trabalha no Ministério da Verdade, cuja tarefa é adulterar a verdade por meionarrativas inventadas ou falsificadas, que interessem ao regime do Grande Irmão”, resume o professor. “Mas há um plano mais insidioso: a substituição da língua corrente pela novafala, uma versão empobrecida, padronizada, ideologicamente manipulada do idioma.”
Como bem diz um dos personagens do livro, se trata da “destruição das palavras”.
“Com a introdução definitiva da novafala não seria mais necessário adulterar os fatos: a própria linguagem se ocuparia do embotamento da consciência, impedindo o pensamento crítico e a ação reformadora”, frisa Pen.
O professor acredita que, com isso, “ele antecipou o risco não apenas do que hoje passou a ser chamado‘fatos alternativos’ ou ‘fake news’, mas ainda da pobreza da linguagem que prolifera nas novas mídias,certo proselitismo políticos e religioso, e nas redes sociais, que tem consequências nefastas para o pensamento, a imaginação e a democracia.”
“A meu ver, Orwell previumodo certeiro um aspecto do mundo contemporâneo: hojedia tudo que fazemos ou dizemos é registradomodo implacável”, acrescenta Britto. “Só que a imensidãodados gerada por essa vigilância constante não está nas mãos dos Estados, porém é controlada pelas big techs.”
Paralelismos e fake news
O tradutor Mattos atenta para um fato, para ele “mais interessante mas menos comentado” presente em 1984 e no mundohoje: mais do que a vigilância constante, “a disposição das pessoasviverem assim”. “As câmeras hoje nem precisam estar escondidas, porque a gente está acostumado a viver rodeado por câmeras e a se expor”, diz.
Sem cairanacronismos, é possível traçar muitos paralelos entre o mundo distópico imaginado por Orwell e as sociedades contemporâneas.
“Hoje é impossível a gente não olhar para essa obra e não fazer uma analogia a partir do nosso mundo. Não temos nem mais ficção quecontanossos modelos, dos meiosvigilância que são muito maiores do que os apresentados pelo livro”, diz à BBC News Brasil o filósofo e psicólogo Marcos da Silva e Silva, professor na Escola SuperiorPropaganda e Marketing (ESPM) e da Universidade Federal do ABC.
“Observando as alegorias tecnológicas, […] o autor pretendeu-se uma espécieprofeta, desenhando o que viriam a ser uma realidade na virada para o século 21”, aponta à BBC News Brasil o historiador Rafael Maranhão, professor no Colégio Presbiteriano Mackenzie Brasília.
Para ele, considerando “o controle do fluxoinformações proposto por alguns governos atuais, há uma linha tênue entre vigilância para a contençãocrimes e o controle total daquilo que o cidadão fazseu cotidiano”.
“A evolução na tecnologia da informação ampliou a possibilidade do controle das percepções, promovendo uma educaçãomassa”, prossegue. “Em nenhum outro momento da humanidade foi tão simples definir as preferências da populações. O uso dos algoritmos nos diversos aplicativos e as AIs [inteligências artificiais] tomando os espaços refletem um pouco da proposta e crítica realizadas pela obraOrwell.”
Maranhão ressalta que “o totalitarismo, emessência, se alimenta do controle nos diversos setores e da criaçãorealidades paralelas que resumem suas pretensões políticas, econômicas, sociais e culturais”.
O ilustrador Nesti conta que a repercussãosua graphic novel é praticamente um atestadocomo há paralelos entre o universo orwelliano e o mundo contemporâneo. “Como a adaptaçãoquadrinhos foi lançadamais20 países, é curioso receber mensagensleitores dos mais diversos lugares e com todo o tipogoverno, declarando que arealidade é muito parecida com a do livro” comenta.
Mas, ao contrário do que dizem muitas das postagens nas redes sociais brasileiras sobre o viés do livro, as críticas não se resumem ao espectro político à esquerda.
“O aumentotendências autoritárias da extrema direita, o desprezo pela democracia, o culto à personalidadegovernantes e o negacionismo são apenas alguns dos paralelos. O meu celular, que volta e meia parece escutar meus pensamentos, me faz lembrar das vigilantes teletelas da Oceânia. As fake news, que estão aí para manipular a direção que uma pessoa deverá votar, me remetem ao trabalhoWinston Smith no Ministério da Verdade, alterando o passado para controlar o presente e o futuro”, exemplifica ele.
“O fatoque 1984 foi um grande sucesso na época e nunca saiu da listabest-sellers é provaque cada época encontra vitalidade no livro”, sintetiza o tradutor Xerxenesky.
“A ameaça do totalitarismo mudarosto, mas segue presentetodas as épocas, o que com certeza inclui a nossa, com a ressurgênciapartidosextrema-direita globalmente. A reescrita da história, a alteraçãofotos, a busca pela construçãouma história alternativa aos fatos, porvez, encontra muitos paralelos no mundo contemporâneo regido por fake news e pela manipulação digital.”
'Cooptado por regimes despóticos e pela indústria cultural'
O usoclássicos literários para defender posições políticas não é algo novo.
Há décadas, por exemplo, a direita italiana usa O Senhor dos Anéis,J.R.R. Tolkien (1892-1973) como uma espécie“bíblia” para fundamentar o discurso“nós contra eles” e a pretensa luta contra “um sistema globalista”.
Em vida, Tolkien não eradireita. Era conservador, mas costumava se posicionar contra totalitarismos e autoritarismos.
“Desde que mundo é mundo, as obrasarte canônicas são lidasmodo a favorecer governos e movimentos políticos. A Igreja Católica transformou Aristóteles num cristão avant la lettre, e se convenceuque Virgílio previu o nascimentoJesus na quarta ‘Bucólica’. A coisa vemlonge”, comenta Britto.
“A transformaçãoOrwellarauto da direita foi favorecida pelo fatoque ele se tornou anticomunista, leia-se antiestalinista, e a própria CIA [o serviçointeligência dos Estados Unidos] incentivou a difusãoAnimal Farm como propaganda ideológica pró ‘mundo livre’. Mas, apesar do Fla-Flu ferrenho instaurado pela Guerra Fria, Orwell, que publicou esses dois livros no final da vida, justamente quando tinha início a Guerra Fria, sempre foi um libertárioesquerda”, completa o professor.
Pen diz que usar obras literárias como panfletos é algo que “simplificaimediato a complexidade da discussão”. “É um pouco o princípio da novafala. Você alija a linguagem do dinamismo humano e trabalho com significantes ocos, desprovidosvida, capazesser manipulados para restringir o pensamento”, explica.
Ele lembra que as obrasOrwell “integraram o rol das leituras difundidas no Brasil para sustentar o programa ideológico da ditadura militar”.
Mas ele lembra que é possível “que esse aspecto polêmico” tenha contribuído para o sucesso das obras do inglês.
“É um dos paradoxos da recepçãoOrwell. Trata-seum autor que defendia a liberdadepensamento e a importância da luta contra o totalitarismo e que foi cooptado por regimes despóticos e pela indústria cultural, pensemos no Big Brother, para veicular justamente o oposto: a pobreza da linguagem, o embrutecimento da imaginação criadora, o autoritarismo, a vigilância”, acrescenta. “E,parte por isso também, mantém-se até hoje como fenômeno editorial.”
Xerxenesky lembra que “este é um risco que qualquer obraarte corre”. “Nunca esquecerei que os principais defensores da teoriaque a Terra é plana amam o livroOrwell”, afirma. “A alegoria construída pelo autor pode ser moldada para encaixar muitas leituras, até mesmo as mais delirantes. Claro que isso não é ideal, mas nenhum autor é capazcontrolar o sentido daobra.”
“Quando ela chega ao mundo, os leitores são seus donos. E 1984, por tratartemasparanoia contra o governo, inevitavelmente será mais usado por teóricos da conspiração do que outros títulos”, diz ele.