Milei: o economista libertário que convenceu os argentinos a 'dinamitar o sistema':
Ele também promete combater o que chama"casta política". De fato, o desgaste com a política tradicional e a faltaalternativas parecem ter trabalhado a seu favor.
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"Ele conseguiu captar o cansaço dos ricos, dos pobres, dosclasse média, dos jovens, dos adultos, o cansaçotodos", disse Juan CarlosPablo, economista da UniversidadeSan Andrés e amigoMilei há mais30 anos, à BBC News Mundo, serviçoespanhol da BBC.
"Milei soube se conectar 'a partir do exótico' com o cansaçouma sociedade argentina que prefere mandar tudo às favas a continuar vivendo como agora", disse Juan Negri, diretor da carreiraCiência Política e Governo da Universidade Torcuato Di Tella.
Mas quais são os marcos na vida e na carreiraJavier Milei?
'Sem medo'
Javier Gerardo Milei nasceu22outubro1970 na cidadeBuenos Aires e cresceuuma famíliaclasse média no bairroVilla Devoto.
Seu pai, Norberto Horacio Milei,78 anos, passou a vida trabalhando com ônibus, primeiro como motorista e depois como proprietáriosete linhastransporte. Sua mãe, Alicia Luján Lucich,73 anos, é donacasa.
Ele descreveinfância como reservada, dividindo seu tempo entre os estudos e o esporte. O apelido"O Louco" foi dado a ele quando frequentava a escola Cardenal Copello, um sinalque naquela época seu tom, palavras e imagem eram únicos entre seus colegas.
Ele chegou a jogar como goleiro no Club Atlético Chacarita Juniors, da segunda divisão do futebol argentino, uma posição que,suas próprias palavras, melhor refletia seu caráter singular.
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No entanto, como ele mesmo contou, o que realmente marcouinfância foi a violência. Tanto que, desde 2010, ele não tem mais contato com quem ele prefere chamarseus "genitores".
Milei lembra que,2abril1982, ele assistia pela televisão ao general e presidente Leopoldo Galtieri anunciar o desembarquetropas argentinas nas Ilhas Malvinas/Falklands, sob controle do Reino Unido.
O episódio marcou o iníciouma guerra que tirou a vida655 combatentes argentinos e 255 militares britânicos. Ele tinha apenas 11 anos e disse a seu pai que a decisão do governo militar lhe parecia um "delírio" devido à desigualdadeforças entre os exércitos.
"Meu pai teve um acessofúria. Ele começou a me dar socos e chutes. Ele me chutou por toda a cozinha", lembrou Mileiuma entrevista ao jornalista Agustín Gallardo cinco anos atrás.
"Quando cresci, ele paroume bater e passou a infligir violência psicológica", contou. "Ele sempre me disse que eu era lixo, que eu iria morrerfome, que eu seria inútil."
Mas, na perspectivaMilei, o abuso físico e psicológico que ele sofreu na infância e juventude,vezenfraquecê-lo, o fortaleceu.
"Isso fez com que agora eu não tenha medonada", afirma.
O verdadeiro chefe
Mas "O Leão", como seus seguidores o chamam devido ao cabelo"juba" — um apelido que muitos aproveitaram vendendo camisetas comfigura —, não cresceu sozinho.
Karina Milei,única irmã, um ano e meio mais nova do que ele, desempenha um papel central emvida.
Apelidada no masculino como "O Chefe", Karina foi peça fundamental na formação política que o levou à Presidência.
Milei reconhece que "sem ela, nada disso teria acontecido".
O presidente eleito comparou o vínculo deles com o do profeta mais importante do judaísmo, Moisés, e seu irmão Aarão.
"Moisés era um grande líder, mas não um grande divulgador. Deus enviou Aarão para que ele se comunicasse. Eu sou para a Kari o que Aarão é para Moisés."
Milei, que se considera católico, mencionou a possibilidadese converter ao judaísmo e expressou críticas severas ao papa Francisco, a quem chamou"representante do maligno na Terra" e que "tem afinidade com comunistas assassinos".
Embora tenha amenizado seu discurso, como fezoutras ocasiões, as críticas ao papa argentino estão alinhadas com a rejeição contundente que ele demonstrou ao comunismo e socialismo, afirmando que isso o colocasintonia com outros líderes da direita radical, como o brasileiro Jair Bolsonaro, o chileno José Antonio Kast e o partido espanhol Vox.
Na imprensa, Milei tem sido comparado várias vezes ao ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. "Minha afinidade com Trump e Bolsonaro é quase natural", disserelação ao americano e ao ex-presidente do Brasil.
Agora na Presidência, Milei prometeu se distanciar da China, país que investiu consideravelmente na Argentina nos últimos anos, e do Brasil, já que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva éesquerda.
"Meus aliados serão os Estados Unidos e Israel", declarou antes da vitória.
Sobrevida pessoal, sabe-se que ele é um amante do rock e liderou a banda Everest, dedicada a fazer versõesmúsicas dos Rolling Stones.
Milei mantém seu estilo roqueiro, com jaquetacouro e longas madeixas, embora também tenha revelado ser um apaixonado por ópera.
Ele também fala repetidamenteseu amor por seus cães, chamados Conan, Murray, Milton, Robert e Lucas, nomeadoshomenagem aos economistas liberais Murray Rothbard, Milton Friedman e Robert Lucas.
"Agradeço a vitória aos meus filhotesquatro patas", disse após vencer as primáriasagosto, referindo-se aos seus cinco mastins, cópias genéticasum cão chamado Conan, criadosum laboratório no norte do EstadoNova York. Ele não tem filhos.
As únicas namoradas conhecidas são personalidades famosas no mundo do entretenimento: a cantora Daniela Pérez e a humorista Fátima Flórez, com quem anunciou um relacionamento algumas semanas apósvitória nas primáriasagosto passado.
De acordo com relatos da imprensa, foi ela quem o apelidou"O Rei",referência ao leão.
O 'catecismo' do anarcocapitalismo
A primeira vez que Javier Milei votou para presidente foi1989. Naquele ano, ele não escolheu o peronista Carlos Menem, que acabou vencendo, nem o representante do governo, o radicalcentro-direita Eduardo Angeloz.
Naquelas eleições, ele se inclinou pelo político, militar e economista Álvaro Alsogaray, que na década1950 foi ministro da Indústria no governo ditatorialPedro Eugenio Aramburu. Alsogaray é reconhecido como o principal defensor do liberalismo na Argentina na segunda metade do século 20.
Com o passar dos anos, no entanto, Milei esclareceu que as ideiasAlsogaray não refletem com precisão suas preferências políticas.
Ele prefere se identificar como anarcocapitalista, uma corrente que busca minimizar o papel do Estado na economia, ou, como ele mesmo colocou, "um 'não-Estado'".
É uma proposta radical e complexa, que seus críticos alertam que pode funcionar bem como discurso, mas que pode se tornar um problema na prática diante da eventual perdaempregos públicos eprogramasassistência social dos quais depende uma boa parte da população.
Na Argentina, as universidades são gratuitas há quase um século, o sistemasaúde pública é robusto, e o emprego no setor público, acima da média regional, representa 18% dos trabalhadores empregados.
No entanto, embora ele repita isso e o caracterize tanto, Milei nem sempre foi um "anarcocapitalista".
Nos primeiros anossua carreira como estudanteEconomia na UniversidadeBelgrano, assim como durante as mestrados que realizou no InstitutoDesenvolvimento Econômico e Social (Ides) e na Universidade Torcuato Di Tella (UTDT), ele se considerava um liberal clássico.
"Naquela época, ele era um economista matemático, um neoclássico tradicional, com uma atração especial por matemática", lembra Stefanoni, que se dedicou nos últimos anos ao estudo do movimento libertário na Argentina e cursou Microeconomia na UniversidadeBuenos Aires com Milei como professor.
Foi somente2014 que Milei aderiu ao mundo da Escola Austríaca, graças à leitura do libertário Murray Rothbard, um economista americano reconhecido por unir ideias libertárias à extrema direita e dar forma ao chamado "paleo-libertarismo".
"Milei adota ideiasum libertarianismoextrema direita e tenta aplicá-las na Argentina, algo sem precedentes neste país", diz Stefanoni.
Para o economista Juan CarlosPablo — que acredita que essas ideias têm aspectos excelentes e outros muito ruins, como a crençaque não há falhasmercado — Milei adotou a Escola Austríaca "de forma extrema, mais como um catecismo do que como um pensamento".
O mesmo pode ser dito do liberalismo com o qual frequentemente explica suas decisões.
Um diálogo que exemplifica claramente a liberdade que ele defende é aquele que ele teve no canal TN, depois que seu partido votou contra uma lei para expandir o programacombate a doenças cardíacas congênitas, uma das principais causasmortalidaderecém-nascidos.
Quando perguntado sobre a razão da recusa, ele respondeu: "Isso implica mais intervenção do Estado na vida dos indivíduos e mais gastos. Isso não funciona assim. Nós votamos com base nos princípios liberais".
Na mesma linha, estão algumas das posições que mais preocupam aqueles que o consideram um salto no escuro.
São exemplosoposição ao aborto e ao feminismo,defesa do portearmas e da vendaórgãos, e a ambiguidade com que ele se referiu até mesmo ao tráficobebês.
'Moralmente superiores'
Embora Milei tenha ocupado seu primeiro cargo público apenas2021, quando foi eleito deputado pela capital, ele já havia incursionado no âmbito público como divulgador das ideias libertárias.
Foi no início dos anos 2000 que ele se aproximou dos meioscomunicação e2015 começou a aparecer com mais frequência.
O jornalista argentino Roberto García, um dos primeiros a convidá-lo para um programatelevisão, notou que ele era um homem que "dizia coisas diferentes dos outros economistas".
Na época, quando era diretorredação do jornal Ámbito Financiero, García o convidou para falar sobre seus relatórios econômicos, mas rapidamente percebeu que Milei tinha a habilidademanter a audiência atenta devido ao seu tom fervoroso.
"Milei é uma avis rara", disse García à BBC News Mundo. Ele afirma que, há 15 anos, ninguém poderia imaginar que algumas das propostasMilei poderiam ser aceitas pela sociedade argentina.
Foi nesse contexto que Milei começou a promover o que chamou"batalha cultural", na qual introduziu questionamentos que raramente eram ouvidos até então, como a possibilidadedolarização ou críticas ao consenso alcançadorelação aos direitos humanos após o governo militar dos anos 1970 e 1980.
"Os esquerdistas estão perdendo a batalha cultural. Enquanto continuarem repetindo suas mentiras, nós, os liberais, continuaremos defendendo nossas verdades. Venceremos porque somos moralmente superiores", disse Milei2018.
Na televisão, ele construiu uma imagem que soube se conectar com a ansiedade econômica dos argentinos que querem mudanças e se identificam com ele.
"Milei criou um personagem para a televisão. Muitas vezes eu disse a ele para ter cuidado, para não enlouquecertanto se fazerlouco", confidencia seu amigo Juan CarlosPablo, com quem Milei trocava opiniões sobre o pensamento econômico e alguns discosópera.
"Não é a primeira vez que o personagem devora a pessoa", afirma.
Estabelecido como figura fácil nos meioscomunicação, chegou a vez do que ele chamou"batalha política", que começou há dois anos com a fundação da coalizão A Liberdade Avança, com o qual disputou as eleições legislativas2021 e superou as melhores expectativas ao obter 17% dos votosBuenos Aires.
Além dos corredores das universidades e dos estúdiosTV, ele passou pela Corporación América, um grupo do poderoso empresário Eduardo Eurnekian, que administra os principais aeroportos da Argentina e da América Latina, onde ocupou o cargoeconomista-chefe até o dia anterior àposse como deputado2021.
Dois anos depois, Milei conseguiu chegar à Presidência, tendo ocupado apenas um cargo público, com um partido novo e diversificado, que não conta com governadores regionais.
A primeira questão que se coloca agora é até que ponto suas ideias radicais poderão ser realmente aplicadas a partirum Estado que ele considerou seu principal "inimigo" eum ambiente que ele conhece pouco porque despreza.
Inicia-se agora o verdadeiro teste para O Rei, O Leão, O Louco, o Avis Rara, o homem que expressoufúria contra o que ele se tornará a partir desse dia: o líder do governo e do Estado argentino.
"Por meses me chamaramlouco por propor um caminho diferente para nosso país. A loucura é continuar fazendo a mesma coisa e esperar resultados diferentes", disse durante a campanha.