O que é o 'arrebatamento', a doutrina da voltaCristo que ganhou destaque no Carnaval:

Legenda do áudio, Os quatro cavaleiros do apocalipse,pinturaViktor Vasnetsov,1887

“Porque o Senhorpessoa, ao sinal dado, à voz do arcanjo e ao toque da trombetaDeus, descerá do céu; então os mortosCristo ressuscitarão primeiro;seguida nós, os vivos que tivermos ficado, seremos arrebatados com eles sobre as nuvens, ao encontro do Senhor, nos ares, e assim estaremos sempre com o Senhor”, diz o trecho.

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Em outras palavras, o texto bíblico descreve o que acontecerá quando ocorrer a aguardada voltaJesus pelos cristãos, com a ressurreição dos mortos e o arrebatamento, aos céus, dos vivos.

“Essa passagem [da cartaPaulo] é alvomuitas interpretações”, pontua à BBC News Brasil o historiador, teólogo e filósofo Gerson LeiteMoraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Assim como toda leitura bíblica, ele adverte que é preciso observar o contexto histórico do texto.

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“Paulo estava vivendo um problema específico com essa comunidadeTessalônica. A comunidade entrou num marasmoesperar a voltaCristo, as pessoas estavam simplesmente abandonando suas atividades, seus afazeres… O apóstolo tentoualguma maneira dizer: continuem vivendo, porque ninguém sabe quando isso vai acontecer. Aí ele escreve essa passagem falando desse suposto encontro entre os que estiverem vivos e Jesus”, contextualiza Moraes.

Algumas informações sobre o que se dizia na época são necessárias para que a leitura não seja feita com anacronismos.

“A primeira coisa a ser pontuada é que Paulo esperavamaneira confiante e com uma certeza inabalável que Cristo voltaria enquanto ele ainda estivesse vivo”, lembra o teólogo. “E isso não aconteceu. Quase 2 mil anos depois, gerações sucessivas, e Cristo não voltou.”

O segundo ponto foi o papelliderança do apóstolo.

“Paulo estava,alguma maneira, tentando tratarum problema: uma comunidade que resolveu simplesmente aguardar a volta, como uma seita. E Paulo diz que não é bem assim. E afirma que quando acontecer, o que nós veremos é que será ouvida a voz do arcanjo, ressoada a trombeta, e descerá dos céus o Senhor, os mortos ressuscitarão e depois os vivos se encontrarão com Jesus: este é o suposto arrebatamento”, explica.

Líder do GrupoEstudos do Protestantismo e Pentecostalismo da Pontifícia Universidade CatólicaSão Paulo (PUC-SP), onde também é professor, o sociólogo Edin Sued Abumanssur afirma que, na carta, Paulo “tentava explicar aos cristãosTessalônica o que iria acontecer no final dos tempos”.

“A igreja dessa cidade estava muito preocupada com o que viria depois. E Paulo tentou esclarecer. Interessante é que outras cidades da época onde havia igrejas cristãs, onde o cristianismo estava começando, não tinham o mesmo problema, as mesmas preocupações”, atenta Abumanssur.

Ele ressalta que, “na ideiaPaulo, os cristão que permanecerem firmes na fé serão arrebatados e vão se encontrar com Cristo nas nuvens”.

“A questão do arrebatamento é uma doutrina muito polêmica, muito disputada, absolutamente não consensual: a doutrina da voltaCristo”, diz o sociólogo.

Pregador cristãoruaToronto, Canadá, com vestes que citam escrituras bíblicas

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Pregador cristãoruaToronto, Canadá, com vestes que citam escrituras bíblicas

Significados do arrebatamento

Explicada a ideia, é horaentender como essa passagem bíblica acabou sendo interpretada ao longo dos séculos — e como é entendida por grupos contemporâneos, que tendem a expressar frases como a proferida pela cantora Baby do Brasil.

“Fica a pergunta: o que significa esse encontro com Jesus nos ares? Porque supostamente você flutuar e se encontrar com ele, quando mortos estão ressuscitando, isso me parece uma coisa até trivial tendovista o que está acontecendo. O fenômeno é que,repente, uma divindade vem ao encontroseu povo, mortos estão ressuscitando e ganhando novamente seus corpos e os vivos estão sendo elevados”, comenta Moraes.

O teólogo acrescenta que toda essa narrativa é “miraculosa”. Ele diz que a determinados setores do neopentecostalismo é cara a "ideiaflutuar,se encontrar nos ares. Por isso se fala tanto desse idealarrebatamento”.

E quando vai ser o arrebatamento?

Mas é preciso mergulhar um pouco mais nas escrituras para vislumbrar o entendimento do tempo do fim do mundo, conforme cada interpretação.

Pois se Baby do Brasil diz que esse arrebatamento está prestes a acontecer, isso configura seu pensamento dentrouma das linhas interpretativasoutro livro bíblico, o último do cânone, o livro do Apocalipse.

Ela se situa naquilo que se entende como pensamento pré-milenismo. Ou seja: entende, como é comum entre a maioria dos cristãos pentecostais e neopentecostais, que um tempotragédias indica a voltaJesus que, então, chegará para estabelecer seu reinopaz e justiça na Terra.

Aquecimento global, pandemiacovid-19, guerras na Ucrânia eIsrael, enchentes, terremotos: tudo isso seriam indicativos dessa ideia para alguns religiosos.

A narrativa está no capítulo 20 do Apocalipse. Descreve um anjo que desce do céu e aprisiona um dragão “que é o Diabo e Satanás”, “para que não seduzisse mais as nações até que se completassem os mil anos”.

Depoistal período, o demônio novamente seria solto para a batalha final.

“Essa passagem é uma espéciecomplemento teológico da visão do arrebatamento”, comenta Moraes.

O teólogo lembra, contudo, que há, na história do cristianismo, três interpretações para essa alegoria bíblica: os pré-milenistas, os pós-milenistas e o amilenistas.

“A maioria dos chamados pentecostais, sejam os clássicos ou os neopentecostais, acabam adotando o princípio [do pré-milenismo]”, explica Moraes.

Nesse sentido, eles entendem que haverá a voltaJesus, com o arrebatamento, e isto estaria atrelado ao estabelecimentoum reinojustiça na Terra, por mil anos.

“Guerras, terremotos ou epidemias são encarados como prenúncio da voltaCristo, como sinaisque este tempo está chegando e seremos arrebatados, que Cristo vai governar a Terra durante mil anos”, observa o teólogo Moraes.

“E eles entendem que este governoJesus Cristo seráJerusalém, a Jerusalém que conhecemos hoje. Há a ideiaum reino políticoJesus”, diz o teólogo.

A outra visão, a dos pós-milenistas, entendem que primeiro será estabelecido um tempopaz e justiça e, só então, Jesus voltará.

Segundo Abumanssur, esta corrente normalmente é defendida por “correntes teológicas mais envolvidas com transformações sociais”, pois pressupõe uma melhoria da qualidadevida do mundo antes do retornoJesus. “Neste caso, o períodomil anospaz e justiça precede a voltaCristo”.

Por fim, há a leitura dos amilenistas, que rejeitam essa crençaum reinado físico terreno literalJesus.

“O Apocalipse éum gênero literário surgidoum ambienteperseguição, o que implicava uma necessidadeliteratura cifrada, enigmática, que somente os iniciados entendiam”, explica Moraes.

“Não é necessariamente a descriçãofim do mundo. É um gênero literário e tem por finalidade trazer consolo aos perseguidos, como se eles dissessem que a situação estava muito ruim mas ‘veja só no que nós acreditamos: no final venceremos’.”