Iemanjá, a divindade africana que ganhou feição branca no Brasil:betmotion nao paga
"Iemanjá é a representação da grande mãe da tradição iorubá", explica o sociólogo, antropólogo e babalorixá Rodney William Eugênio, doutor pela Pontifícia Universidade Católicabetmotion nao pagaSão Paulo (PUC-SP).
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"Seu nome vem da expressão 'a mãe dos peixes' ou 'a mãe cujos filhos são como peixes'. É considerada a mãebetmotion nao pagatodos, a que nos prepara para a vida, nos dá a imensidão das águas para que possamos realizar todas as potencialidades", afirma Eugênio. Na língua original, seu nome é Yemoja.
Contudo, atualmente há uma aparente contradição que se torna evidente: se a divindade é originalmente negra, por quebetmotion nao pagarepresentação mais comumbetmotion nao pagaterras brasileiras é uma mulher branca?
A resposta estaria na violência do processobetmotion nao pagasincretismo, muitas vezes romantizado como algo inerente à chamada "democracia racial".
Dos rios para o mar
Para os que creem na divindade, ela tem a propriedadebetmotion nao paga"comandar as cabeças", reger o domínio da consciência.
"Na tradição iorubá, dizem que a cabeça carrega o corpo, então, é ela quem traz o equilíbrio emocional e psíquico", prossegue o babalorixá Eugênio.
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"Yemoja é a mãebetmotion nao pagatodas as águas. Se existe água, existe Yemoja, se nós existimos é porque Yemoja existe. Não há uma cabeça que Yemoja não tocou e cuidou. e não há uma cabeça que Yemoja não possa tocar e cuidar", diz a estudiosa do tema Yasmin Fernandes Sales dos Santos, psicóloga e mestrebetmotion nao pagaSociologia Política.
"Iemanjá é um orixá, ou seja, uma divindade africana cultuada a partir do panteão divino dos povos iorubás. Embora, no Brasil, assuma títulos e característicasbetmotion nao paga'rainha do mar', na África, é cultuada na regiãobetmotion nao pagaAbeokutá, na Nigéria, onde seus cultos se estabeleceram inicialmente nas águas doces do rio Yemoja, entre Ifé e Ibadan", contextualiza o sacerdotebetmotion nao pagaumbanda David Dias, pesquisadorbetmotion nao pagaCiência da Religião na PUC-SP.
Ou seja: para os iorubás, ela é a divindade dos rios. Essa transposição para os mares é resultado do movimentobetmotion nao pagadiáspora quando, já nos chamados navios negreiros, a ela continuaram recorrendo os "seus filhos".
Dias explica que por ser "orixá das cabeças", ela "concede saúde mental" e "propõe harmonia entre o sentimento e a razão".
"Esta orixá traduz o símbolo feminino das mulheres dos seios fartos, é capazbetmotion nao pagaalimentar todo o mundo. É a orixá que nutre, que alimenta, gerando abundância e prosperidade às suas filhas e seus filhos", completa.
O sociólogo Rodney William Eugênio ressalta que todo orixá tem seus arquétipos, mas o que sintetiza Iemanjá é o da "grande mãe".
"Todos somos filhosbetmotion nao pagaIemanjá, ela é a grande mãe do mundo, a representação das águas que, pelos oceanos, unem todos os continentes", argumenta ele.
"Ela traz também essa noção fundamentalbetmotion nao pagaancestralidade."
"A mensagembetmotion nao pagaIemanjá para a humanidade ébetmotion nao pagaunião,betmotion nao pagarespeito,betmotion nao pagaigualdade. Todos lembrando que somos filhos dela, somos irmãos", resume o babalorixá.
"Na festabetmotion nao pagaIemanjá estão todos, não só os adeptos do candomblé. São pessoasbetmotion nao pagavárias origens, várias crenças e ela abençoa a todos sem nenhuma distinção."
No Brasil
Os estudiosos ouvidos pela reportagem acreditam que a divindade ganhou importância no Brasil justamente por conta do processobetmotion nao pagaescravização.
Por ter ela esse papel materno e, consequentemente, fazerbetmotion nao pagatodo uma só família, ela foi fundamental para refazer os laços dos escravos separadosbetmotion nao pagaseus parentes durante o processobetmotion nao pagamigração violenta e forçada.
"Em torno dela as famílias se organizam", diz Rodney William Eugênio, doutor pela PUC-SP.
"Para as religiõesbetmotion nao pagamatriz africana, ela foi a possibilidadebetmotion nao pagarefazer, reinventar a família, que no processobetmotion nao pagaescravização havia sido esfacelada. Em termos simbólicos, Iemanjá representou o compromissobetmotion nao pagarecriar a família, promover a união na diáspora."
Para o historiador Guilherme Watanabe, paibetmotion nao pagasanto do terreiro Urubatão da Guia,betmotion nao pagaSão Paulo e membro fundador do Coletivo Navalha, no Brasil o culto a Iemanjá foi a resposta "ao rompimento dos laços familiares e afetivos" causados pelo regime escravocrata.
"Com o sequestro das famílias africanas, há episódiosbetmotion nao pagamortesbetmotion nao pagafamiliares ainda nos navios negreiros e a separação deles no desembarque, quando eram encaminhados para locais diferentesbetmotion nao pagatrabalho", pontua.
"Ser filho ou filhabetmotion nao pagaorixá era uma formabetmotion nao pagaestarem ligados àbetmotion nao pagaorigem ancestral, uma formabetmotion nao pagarecapitular o passado, reestruturar os laços."
No Brasil, a devoção a ela "extrapola as religiõesbetmotion nao pagamatriz africana", ressalta Eugênio.
"Todos os brasileirosbetmotion nao pagaum jeito oubetmotion nao pagaoutro são devotos dela. Ela é a grande mãe do povo brasileiro, faz parte do imaginário. Está profundamente arraigadabetmotion nao paganossa formação."
"Há quem diga que Iemanjá é uma santa católica, muita gente confunde e acha isso. Isso é um traçobetmotion nao pagaaculturação que faz parte da formação do povo brasileiro. Vamos juntando elementos", prossegue o especialista.
Representação
"Ela é uma senhorabetmotion nao pagaancas largas, que pariu toda a humanidade e todos os orixás. Com seus seios fartos amamentou toda a humanidade", diz Rodney William Eugênio.
"Dizem que os rios são como o leitebetmotion nao pagaIemanjá escorrendobetmotion nao pagadireção ao oceano. Se temos uma mãebetmotion nao pagacomum também temos elos, os mesmos direitos."
Na questão da representação reside o principal problema da maneira como Iemanjá acabou sendo incorporada ao imaginário brasileiro.
Porque, originalmente uma divindade africana, é natural que suas primeiras e originais representações fossembetmotion nao pagauma mãe negra.
E seu embranquecimento é visto, por estudiosos atuais, como resultadobetmotion nao pagauma construção racista do século 20, que buscou tornar suas feições mais "europeias".
Nesse sentido, uma violência cultural.
"A figurabetmotion nao pagaIemanjá que está no imaginário coletivo é aquela imagem da mulher brancabetmotion nao pagacabelos longos combetmotion nao pagatúnica azul, se confundindo um pouco com as águas do mar", pontua Eugênio.
"Foi um processobetmotion nao pagaaculturação que levou à difusão dessa imagem. Tem a ver com sincretismo, com a aculturação.
Para o babalorixá, "isso tembetmotion nao pagaser respeitado".
"Povos diferentes, quando convivem, ou eles sincretizam ou eles se matam. Então é importante respeitar, embora essas coisas tenham sido impostas: um povo é submetido à violênciabetmotion nao pagaabarcar uma outra cultura e então acaba assimilando essa cultura".
Outros pesquisadores do assunto têm uma postura mais crítica frente a essa transformação.
O historiador Guilherme Watanabe ressalta que a ideiabetmotion nao pagasincretismo "apaga os processos históricos que deram origem a esse amálgamabetmotion nao pagadivindades."
Mas reconhece que o sincretismo existe inclusive com tradições indígenas.
"Muitas vezes Iemanjá é confundida com Janaína, que seria a divindade da cultura dos povos originários do Brasil, uma sereia", exemplifica.
Evidentemente que o processo mais dominador e muitas vezes violento dessa mistura se deu mediante o choque desigual com a religiosidade trazida pelos europeus.
"Entender que o processo violentobetmotion nao pagasincretismo foi útil para que muita sabedorias ancestrais vindas na diáspora sobrevivessem até hoje é fundamental", afirma a estudiosa Yasmin Fernandes Sales dos Santos.
"Mas é fundamental também entender que, diantebetmotion nao pagatantos outros processosbetmotion nao pagamudança, nós, sobretudo mais novos, não precisamos do sincretismos como os nossos mais velhos precisaram num outro tempo para dar continuidade ao culto."
Durante o período da escravidão, para conseguirem manter seus cultos, era comum que os africanos e seus descendentes precisassem recorrer a figuras do catolicismo.
"Eles eram proibidos por seus senhores brancos e também pelos religiosos católicosbetmotion nao pagamanterem suas crenças e então uma forma que encontraram para continuar foi disfarçando suas divindadesbetmotion nao pagasantos católicos", contextualiza a jornalista Bell Kranz, autora do livro 21 Nossas Senhoras que Inspiram o Brasil.
Em suas pesquisas ela encontrou associaçõesbetmotion nao pagaIemanjá com diversas denominaçõesbetmotion nao pagaNossa Senhora.
"Especialmente Nossa Senhora da Conceição, Nossa Senhora dos Navegantes, Nossa Senhora da Glória, Nossa Senhora das Dores e Nossa Senhora das Candeias", pontua ela.
Não é por coincidência, aliás, que o 2betmotion nao pagafevereiro é tanto diabetmotion nao pagaIemanjá comobetmotion nao pagaNossa Senhora das Candeias — também chamadabetmotion nao pagaNossa Senhora da Luz.
O arquétipo semelhante também ajudou nessa situação. Para os cristãos, afinal, a figurabetmotion nao pagaNossa Senhora é a mãebetmotion nao pagaJesus.
Especialmente para os católicos, ela também é reconhecida como mãe da humanidade, mãebetmotion nao pagatodos, senhora da família.
E se você já usou brancobetmotion nao pagauma festabetmotion nao pagaRevéillon, conscientemente ou não, também participou desse processobetmotion nao pagasincretismo.
Esse fenômeno cultural está intimamente ligado ao trabalho realizado para popularizar a Iemanjábetmotion nao pagaterras brasileiras, realizado pelo paibetmotion nao pagasanto Tancredo da Silva Pinto (1904-1979), o Tata Tancredo, no Riobetmotion nao pagaJaneiro.
"Conhecido como o 'papa da umbanda', ele foi quem criou a culturabetmotion nao pagacelebrar Iemanjá no último dia do ano, quando reunia milhõesbetmotion nao pagareligiosos, inspirando brasileiros, independentementebetmotion nao pagacrença ou religião, a vestirem roupas brancas mesmo sem conhecer o motivo", conta David Dias, pesquisador da PUC-SP.
"Muitos vestem branco na virada do ano pensando que é para pedir paz, muitos vão até a praia jogar rosas brancas… São rituais macumbeiros, e muitos que têm um pezinho na igreja evangélica ou no catolicismo estão lá realizando esse tipobetmotion nao pagaritual. Tudo isso vem da popularização das macumbas", comenta o historiador Guilherme Watanabe.
"Com o processobetmotion nao pagasincretismo e apagamento dos cultosbetmotion nao pagamatriz africana no Brasil, os orixás, sobretudo Yemoja, que acabou por ficar muito popular no país, sofreram alterações e processos simbióticos com as características dos santos católicos", complementa a psicóloga Santos.
"Mas vale lembrar que orixá não é santo e que Yeoja não é Nossa Senhora."
Branqueamentobetmotion nao pagaIemanjá
Há alguns registros que demonstram uma europeização das característicasbetmotion nao pagaIemanjá já no século 19, muitas vezes a aproximandobetmotion nao pagarepresentaçõesbetmotion nao pagaNossa Senhora.
Mas a imagem que acabou se sobrepondo às outras representações e dominando o inconsciente coletivo remonta aos anos 1950.
Conforme explica o sacerdote umbandista e pesquisador Dias, tudo começou quando uma carioca chamada Dalla Paes Leme afirmou ter tido uma visãobetmotion nao pagaIemanjá e encomendou a pinturabetmotion nao pagaum quadro com essa representação.
"Curiosamente e,betmotion nao pagapouco tempo, criam-se movimentosbetmotion nao pagapromoção do quadro da nova imagem, alémbetmotion nao pagaselos postais, eventos, romarias resultantesbetmotion nao pagaum movimento chamado pelo jornal 'Luta Democrática'betmotion nao paga'yemanjismo'", relata Dias.
O pesquisador lembra que ela era "uma aristocrata e publicitária" e acabou fomentando uma traduçãobetmotion nao paga"estética branca para a divindade por meiobetmotion nao pagauma peregrinação" do quadro aos terreirosbetmotion nao pagaumbanda da época.
Segundo Dias, essa tradicional imagem "pode ser considerada o marco do embranquecimento e aculturação da orixá".
"Não por acaso, a fisionomia da 'nova Iemanjá' se dá mediante à sequela que o fenômeno do sincretismo deixa enquanto processobetmotion nao pagaapagamento e conversão cultural", prossegue.
"A orixá, traduzida pela estética cristã, traz agora o mesmo estereótipo das virgens santas, perdendo completamente seus traços africanos. A partirbetmotion nao pagaentão, exclui-se os grandes seios que alimentam o mundo, cobre-se seu corpo, retiram-se as noções daquela que é mãe dos filhos peixesbetmotion nao pagadetrimento da santa virgem que jamais dançou ao toque dos atabaquesbetmotion nao pagaumbanda", comenta o sacerdote.
Para Watanabe, a Iemanjá representada como "a tal da moça branca com vestido azul" é um legadobetmotion nao pagagrupos umbandistas conhecidos como "umbanda branca".
"É das imagens que mais circulam, muitos têm uma dessasbetmotion nao pagasuas casas", reconhece.
"Acredito que se tratebetmotion nao pagauma tentativa descaradabetmotion nao pagaapropriaçãobetmotion nao pagauma divindade africana e apagamentobetmotion nao pagatoda uma história ebetmotion nao pagauma cultura que são negras", argumenta Watanabe.
"Criticamos muito essa imagem. Todos os orixás são negros porque têm uma culturabetmotion nao pagaorigem, um territóriobetmotion nao pagaorigem e esse território é a regiãobetmotion nao pagalíngua iorubá,betmotion nao pagagrande parte sintetizado na atual Nigéria."
Ele afirma que muitos apregoam que "orixá não tem cor porque é energia".
"Mas isso é uma disforia criada a partir dessas umbandas que foram invadidas por conhecimentos alienígenas, estranhos a elas. Esses esoterismos, essa tentativa da umbandabetmotion nao pagase vincular a narrativa do mito da democracia racial, essa tomada da umbanda pelos grupos brancos que corroboram para o embranquecimento da mesma, isso tudo deu origem a essa imagembetmotion nao pagaIemanjá branca", defende.
Watanabe define o fenômeno como uma "violência aos povos negros, a cultura negra".
"A imagem deve ser substituída,betmotion nao pagafato. Não pode seguir circulando da forma como circula. Simbolicamente é um aviltamento da cultura negra", critica.
Santos concorda e ressalta que a "descaracterização e o esvaziamento racista" feito com a orixá é um problema.
"Essa Yemoja branca, com cabelos lisos, longos, magra, recatada, mansa e do lar que é, na verdade, uma imagem europeia cristã, não dá contabetmotion nao pagaquem Yemoja é ebetmotion nao pagaquem ela pode vir a ser, porque Yemoja é isso: possibilidade", diz.
Dias acrescenta que o "processobetmotion nao pagasincretismos" sempre é visto "como um fenômenobetmotion nao pagadominação".
"Independente das relações e das trocas por ele produzidas, sempre haverá uma culturabetmotion nao pagadominação sobreposta a uma cultura dominante. A invenção da imagembetmotion nao pagaIemanjá traduz um Brasil que vivemos hojebetmotion nao pagaque, feito as redes sociais, adiciona filtros para tornar as imagens 'mais aceitas e palatáveis' pela sociedade que teimabetmotion nao pagamanter o seu pseudo-status antirracista", argumenta ele.
"Todavia, há algobetmotion nao pagacuriosobetmotion nao pagatudo isso: não se encontram traduçõesbetmotion nao pagadivindadesbetmotion nao pagaoutras culturas tão facilmente quanto as africanas. Nunca se viu uma imagembetmotion nao pagaSidarta Gautama, o Buda, enquanto um homem negro,betmotion nao pagadreadlocks e brincos nas orelhas. Não se colocam mantos e retiram-se as insígnias hindusbetmotion nao pagaShiva. Por outro lado, quando se questiona a identidade tão quanto a cor da pelebetmotion nao pagaCristo, o clero se levantabetmotion nao pagadefesabetmotion nao pagauma tradição inventada para apagar a existênciabetmotion nao pagaum povo."
Esta reportagem foi originalmente publicadabetmotion nao paga1ºbetmotion nao pagafevereirobetmotion nao paga2022.