Como batalha do século 17 acabou ressignificada como fundação do Exército brasileiro:ecopayz casino

Crédito, Domínio público

Legenda da foto, A obra 'Batalha dos Guararapes', de autoria do artista plástico Victor Meirelles

No primeiro confronto, há 375 anos, foram 84 mortos e 400 feridos das tropas lusitanas contra 2 mil mortos e 700 feridos do oponente. No ano seguinte, 47 mortos e 200 feridos portugueses; 2 mil mortos e 90 feridos holandeses.

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Professor na Universidade Estadual Paulista (Unesp), o historiador Paulo Henrique Martinez avalia que o conflito "foi um dos episódios decisivos na reinserçãoecopayz casinoPortugal na geopolítica europeia e colonial, após a restauração da autonomia portuguesa da Coroa espanhola,ecopayz casino1640".

"O controle político da região Nordeste e das rotasecopayz casinocomércio eecopayz casinonavegação no Atlântico Sul era uma necessidade da nova monarquiaecopayz casinoPortugal", afirma ele à BBC News Brasil. Martinez acrescenta que isso envolvia, "além da posse territorial na América, a produção açucareira, o comércio africano e a soberania nas relações internacionais".

OK, é inegável que o conflito foiecopayz casinosuma importância para Portugal. E que tenha sido também, a incontestável vitória lusitana, o marco inicial da expulsão definitiva dos holandeses do Brasil colonial. Mas quando e como surgiu o mito nacionalistaecopayz casinoGuararapes? Eecopayz casinoonde veio a ideiaecopayz casinoconsiderar o episódio a certidãoecopayz casinonascimento do Exército?

Marco 'fundador' do Exército

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Então comandante do Exército, o general Marco Antônio Freire Gomes disse, na ordem do dia publicadaecopayz casino19ecopayz casinoabrilecopayz casino2022, que "a Insurreição Pernambucana, ao ser considerada o 'berço da nacionalidade', nos remeteecopayz casinoimediato a Guararapes, cujos feitos marcaram a gênese do Exército brasileiro".

"Ali, surgiram nossos primeiros heróis,ecopayz casinouma espontânea fusãoecopayz casinoraças. Brancos, negros e índios, conjurados livremente, sob o inédito bradoecopayz casino'pátria', lutaram bravamente contra o invasor estrangeiro", prosseguiu ele. "Com inteligência, coragem, espírito aguerrido e vigor, souberam concretizar o anseioecopayz casinoliberdade e o amor incondicional à terra."

"Nascia,ecopayz casinoforma inequívoca, o sentimentoecopayz casinosoberania nacional, nosso maior legado e do qual jamais abriremos mão, custe o que custar" disse o general. "Hoje, uma vez mais, reverenciamos esse glorioso processo históricoecopayz casinoconsolidação da identidade nacional".

Gomes ainda enfatizou que o Exército brasileiro, na ocasião, completava "374 anosecopayz casinouma existência alicerçadaecopayz casinovalores e tradições".

Ocorre que aquela luta não foi travada pelo Exército brasileiro. Porque o Exército brasileiro não existia. Oficialmente, o Exército brasileiro surgiu a partir da independência do Brasil — ou seja, ao mesmo tempoecopayz casinoque o Brasil surgiu como país. As forças do Exército português que atuavam na colônia acabaram se fragmentando no processo. Parte desses militares acabaram formando as primeiras tropas do que viria a ser o Exército brasileiro.

Mas o século 19 foi um séculoecopayz casinoafirmaçãoecopayz casinoidentidades. Era preciso construir os mitos que dariam unidade à nação. E Guararapes foi recuperada com toda a potênciaecopayz casinosua narrativa.

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Exército brasileiro ainda não existia durante Batalha dos Guararapes

'Feito brasileiro'

"Ao longo do século [19], a batalhaecopayz casinoGuararapes foi revisitada como o momentoecopayz casinoque brancos, negros e indígenas teriam se juntado para expulsar um invasor", explica à BBC News Brasil o historiador Marcelo Cheche Galves, professor na Universidade Estadual do Maranhão (Uema). "Aí se forma a ideia da Batalhaecopayz casinoGuararapes como a batalha da nação, que dá origem à nação brasileira."

Em entrevista à reportagem, o historiador Paulo César Garcez Marins, professor no Museu Paulista da Universidadeecopayz casinoSão Paulo (USP), ressalta que um ponto-chave nessa percepção é o fatoecopayz casinoque para "as elites políticas da capitaniaecopayz casinoPernambuco" havia sido importante desde sempre a instituiçãoecopayz casinoum Exército autônomo. Nesse sentido, não havia uma dependênciaecopayz casinotropas portuguesas que precisariam virecopayz casinolonge. "Era um Exército feito por topas locais, que envolviam brancos, negros e indígenas", ressalta ele.

Claro que todos lutandoecopayz casinoprolecopayz casinoPortugal, uma vez que o Brasil tinha statusecopayz casinocolônia.

Mas foi essa amálgama racial e essa condição sui generis que fez com que o discursoecopayz casinoformação nacional se azeitasse. "[A batalha] foi a base inclusive da constituiçãoecopayz casinoum nativismo muito importante para Pernambuco. E uma narrativaecopayz casinoque a expulsão dos holandeses era um feito brasileiro, dos pernambucanos", diz o historiador.

De forma épica, é isso que acaba sendo eternizado no projetoecopayz casinoconstruçãoecopayz casinoum imaginário nacional. Entre 1875 e 1879, o artista plástico Victor Meirelles (1832-1903) pintou a gigantesca tela Batalha dos Guararapes, com 5 metrosecopayz casinoaltura por 9,25ecopayz casinolargura. A obra integra o Museu Nacionalecopayz casinoBelas Artes, no Rioecopayz casinoJaneiro.

Ao longo das décadas, o Exército brasileiro vai incorporando a narrativaecopayz casinoque aquela batalha havia sido aecopayz casinogênese. "Esse Exército brasileiro criado no século 19, à procuraecopayz casinouma origem,ecopayz casinouma trajetória,ecopayz casinoalguma maneira incorpora gradativamente a batalhaecopayz casinoGuararapes como esse lugarecopayz casinonascimento das forças brasileiras contra um invasor", contextualiza Galves.

Memória ou invenção?

No livro A Invenção do Exército Brasileiro, o sociólogo e antropólogo Celso Castro, professor na Fundação Getúlio Vargas (FGV) aborda essa questão. Ele parte do princípioecopayz casinoque "desde o fim do regime militar, os militares perderam significativa força política no Brasil" e que a partir dos anos 1990, "as relações entre Forças Armadas, sociedade e Estado no Brasil alteraram-seecopayz casinofavor do enquadramento militar à nascente democracia brasileira".

Nesse contexto, ele pontua que celebrações militares que eram intensas durante a ditadura, como a vitória sobre a Intentona Comunista,ecopayz casino1935, e a efetivação do golpe militar — que costuma ser chamado por elesecopayz casino"revolução" —ecopayz casino1964, estavam entrando "em declínio, tendendo a desaparecer".

É quando outra celebração "estava por nascer", diz o autor. "Em 1994, por iniciativa do ministro do Exército, general Zenildo, foi criado o Dia do Exército, na dataecopayz casinorealização da 1a. Batalha dos Guararapes (19ecopayz casinoabrilecopayz casino1648)", escreve ele, no livro. "A Batalha dos Guararapes foi um evento muito importante no processoecopayz casinoexpulsão das tropas holandesas que ocuparam a regiãoecopayz casinoPernambuco entre 1630 e 1654. Mesmo inferiorizadas numericamente, as tropas locais, compostas por unidadesecopayz casinobrancos, negros e índios, e recorrendo a táticasecopayz casinoguerra irregular (ouecopayz casinoguerrilhas), derrotaram um inimigo superiorecopayz casinonúmero e mais bem equipado."

Castro prossegue explicando que "a ideia central da nova comemoração" era marcar que "em Guararapes teriam nascido ao mesmo tempo a nacionalidade e o Exército brasileiros".

"A força simbólica do evento é reforçada pela presença conjunta das três raças vistas como constitutivas do povo brasileiro — o branco, o negro e o índio. Além disso, ao contrário das comemorações da Intentona eecopayz casino1964, não se trata aquiecopayz casinoum 'inimigo interno' a ser enfrentado, masecopayz casinoinvasores estrangeiros”.

Mas a problematização vemecopayz casinoseguida: havia um país Brasil há 375 anos? A resposta é: não. "Na época da batalha, o Brasil ainda não era uma nação independente: esteve sob o domínio espanhol entre 1580 e 1640, retornandoecopayz casinoseguida à condiçãoecopayz casinocolônia portuguesa", lembra ele.

O senão é o fatoecopayz casinoque, como bem frisa Castro, "a metrópole pouco se envolveu na luta, ficando a tarefaecopayz casinoexpulsar os holandeses por conta quase que exclusivamente da 'gente da terra'". E foi isso que "alimentou por maisecopayz casinodois séculos o imaginário do nativismo pernambucano".

Apropriação simbólica

O historiador Martinez define o que foi Guararapes com a grandeza histórica devida. "Foi um conflito crucialecopayz casinoque houve intensa mobilização nos esforços militares, políticos e diplomáticos e grandes contingentes populacionais, com o deslocamentoecopayz casinosuprimentos, armas, combatentes e equipamentosecopayz casinodiferentes localidades das possessões portuguesas na América", afirma.

"Este 'esforçoecopayz casinoguerra' foi, posteriormente, apropriado pela política e pela memória histórica na criaçãoecopayz casinoum imaginárioecopayz casinolutas eecopayz casinounidade social pela liberdade e autonomia no Brasil, comumente denominado como 'revoltas nativistas' e 'sentimentos nativistas'", prossegue o historiador. "Daí aecopayz casinoapropriação também pelo Exércitoecopayz casinobuscaecopayz casinoafirmação da unidade do Estado nacional e da nação brasileira, principalmente, da centralidade social e política da corporação militar na história do Brasil."

O professor prefere analisar a importânciaecopayz casinoGuararapes como uma batalha "em meio a muitas outras ações e movimentos nas disputas entre os impérios coloniais". "Estas só podem ser compreendidas dentroecopayz casinoum amplo arco que envolve as diferentes monarquias europeias e distintos espaços extra-europeus", comenta ele.

Já a ressignificação, acredita Martinez, "inegavelmente" deve ser atribuída ao "imaginário político da construção do Estado nacional e da nação brasileira, sobretudo, no século 19".

Segundo o professor, durante a ditadura, um grupoecopayz casinomilitares contrários à democracia chegou a criar uma entidade secreta chamada Guararapes. "Decerto tinha a intençãoecopayz casinoexpressar um chamamento para um novo esforço totalecopayz casinoguerra, agora contra a ‘subversão’, os comunistas e a democracia a ser adotada", diz Martinez.

"A pertinência da lembrança deste episódio eecopayz casinoseus ressignificados reside na necessidade inadiável e incontornávelecopayz casinorevisão do ensinoecopayz casinohistória nas escolas e academias militares. Esta ação educativa deve estar inserida eecopayz casinoconformidade com as diretrizes nacionais para o ensinoecopayz casinoHistória, geral e do Brasil", analisa o historiador. "Uma memória democrática sobre a presença das forças armadas contribuiria para o fortalecimento da cidadania, das instituições democráticas e o desenvolvimento social e econômico com justiça social e distribuição efetiva da riqueza, da terra, da cultura e do poder nacional."

Por outro lado, Martinez diz que "a memória da beligerância e da crueldade contra o inimigo oculto, traiçoeiro e ameaçador" e da "violência indiscriminada contra combatentes e não combatentes, acimaecopayz casinotudo e acimaecopayz casinotodos, precisa ser revista urgentemente e substituída por outra,ecopayz casinosintonia com uma sociedade mundial regida pela paz, a cooperação, a solidariedade e equidade entre povos e nações".