Queda do dólar aniquila renda dos catadoresrecicláveis: 8 toneladaspapel para ganhar um salário mínimo:

Elias empurrando carrinho com reciclagem pelas ruasGuarulhos

Crédito, Fernando Otto/BBC News Brasil

Legenda da foto, Elias precisa transportar 8,8 toneladaspapel para arrecadar o equivalente ao valorum salário mínimo: R$ 1.320

"Se fosse naquela época (há dois anos), eu teria ganhado R$ 30 com a quantidade que eu trouxe, mas hoje fiz R$ 5", afirma ele à reportagem logo após entregar o que arrecadou na primeira jornada do dia.

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cenciado.

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Hoje, Elias precisa transportar 8,8 toneladaspapel para arrecadar o equivalente ao valorum salário mínimo: R$ 1.320.

Em março2021, o dólar chegou a R$ 5,75. Em julho deste ano, a moeda americana era cotada a R$ 4,75 — 17% mais barato.

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A BBC News Brasil acompanhou parte da rotina diária do catadorbuscareciclagem. A reportagem também ouviu especialistas do setor, uma economista e outros catadores para entender por que isso acontece e se há caminhos possíveis para proteger os trabalhadores do segmento.

Economista e professora da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Carla Beni afirma que a oscilação do preço do material reciclado ocorre porque a celulose e o alumínio são commodities negociadas no mercado financeiro mundial — ou seja, o preço flutuaacordo com fatores que vão muito além da economia local gerada pela reciclagem.

A consequência desse impacto é que, assim como Elias, muitos catadores pensamabandonar a profissão. A estimativa do Movimento Nacional dos CatadoresMateriais Recicláveis (MNCR) éque o Brasil tenha cerca1 milhãocatadores.

Segundo o órgão, esses trabalhadores são responsáveis pela maior parte da coleta do país, mas 75% do lucro com esse trabalho fica com as indústrias.

Elias colocando reciclagem que recolheucimabalança

Crédito, Fernando Otto/BBC News Brasil

Legenda da foto, Com a queda do dólar, preço do papelão caiuR$ 1 para R$ 0,75 no ferro-velho onde Elias vende o material reciclável que recolhe

6 km + 3 horas + 46 kg = R$ 30

Às 8h, Elias inicia a pedalada no bairro do Cabuçu, que lhe rendeu o apelido pelo qual ele é conhecido na região. Cerca10 km e uma hora depois, o "Neguinho do Cabuçu" chega ao ferro-velho no bairro Santa Emília,Guarulhos, para pegar a carroça e iniciarjornada.

A reportagem o acompanhou por três horas caminhando pelas ruas da cidade, com termômetro registrando 31 graus num diasetembro. Depois6 km percorridos, o resultado: 26 kgpapelão, 5 kgferro, 2,2 kgalumínio e 13 kgplástico.

"Diasorte", diz ele ao olhar o carrinho cheio.

É hora entãovoltar ao ferro-velho e pesar tudo. Após o veredito da balança, o pagamento: R$ 30 reais,três notas10.

Elias é um homem sorridente, 1,60 m e músculos talhados pelo trabalho duro, mas neste momento é o desânimo que aparece no olhar.

Ele não esconde a decepçãotermão-de-obra trocada por uma quantia que mal pagaria o seu almoço, caso ele não tivesse a opçãocomeruma unidade do Bom Prato, a R$ 1. Mas, dentrocasa, ele não tem refeições subsidiadas e confessa que precisa fazer escolhas diárias para garantir a alimentação da família.

"Eu deixeicomprar carne (de boi). Um quilo é R$ 35. Eu compro mais uma bistequinha, um frango, uma salsicha. O feijão aumentou, o arroz aumentou. Você vai no mercado com R$ 80 e não traz quase nada", lamenta.

"Ontem, eu comprei R$ 30asafrango e parece que veio só as peles. Eu olhei e pensei: 'veio só isso?'"

Mauriceia gesticulando durante entrevista à BBC

Crédito, Fernando Otto/BBC News Brasil

Legenda da foto, Mauriceia, dona do ferro-velho onde Elias vende as reciclagens que recolhe, diz que prefere diminuirmargemlucro para judar os catadores

Do outro lado da balança no ferro-velhoGuarulhos está Mauriceia MariaLima Santos,54 anos. Dona do negócio e filhacatador, ela analisa o momento do setor.

Santos afirma que a reciclagem viveu umseus melhores momentos no ano2021, mas que, desde meados2022, viu a maioria dos catadores que vendiam para ela abandonar a profissão.

"A gente está vivendo uma crise na reciclagem. Quando acontece essa queda brusca (do dólar), essas pessoas vivemsituaçãomiséria. Elas vivemdoação porque o que eles trazemreciclagem não dá para comprar pão ", afirma a dona do ferro-velho.

Ela diz que prefere, algumas vezes, diminuir a margemlucro dela para melhorar a renda dos catadores.

"Às vezes, o nosso comprador abaixa o preço e a gente segura, como acontece agora com o papelão. Hoje, eu pago R$ 0,15 quando a maioria paga R$ 0,10. Eu acho injusto a pessoa carregar 100 kg e ganhar R$ 10. Para muita gente pode não parecer muito, mas para o catador R$ 5 faz a diferença", conta ela.

Ela disse ter percebido uma queda entre 40% e 50% na quantidadereciclagem que recebe dos catadores.

"Eu entregava uma média5 toneladassucata por semana. Hoje, eu levo 10 dias para entregar essa mesma quantidade. Meus custos aumentaram, meus impostos aumentaram, mas meu ganho caiu. O que eu preciso fazer? Trabalhar mais."

Por que o papelão está mais barato?

Carla Benisalaaula na Fundação Getúlio Vargas, na avenida Paulista,São Paulo

Crédito, Fernando Otto/BBC News Brasil

Legenda da foto, Professora da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Carla Beni diz que governo poderia taxar importaçãomaterial reciclado para proteger mercado interno

A economista Carla Beni afirma que o papelão foi o produto mais afetado pela queda do dólar nos últimos meses.

"Nós tivemos uma quedapreço para eletorno70%. O câmbio2022 estava R$ 5,40, R$ 5,50. Hoje, nós estamos com câmbio abaixoR$ 5. Tivemos períodos recentes a R$ 4,74. Então, quando você tem essa diferençacâmbio, a importação fica mais barata", explica.

Ela diz que os catadores são prejudicados com a queda do dólar porque a latinhaalumínio, o aço, o papel, vidro, plástico, garrafa PET e embalagens do tipo longa vida são commodities negociadas nas bolsasmercadoriasdólar.

Segundo a professora, não existe um dado nacional dos preços pagos aos catadoresmateriais recicláveis, mas números do Compromisso Empresarial para Reciclagem (Cempre), uma associaçãoempresários dedicada à promoção da reciclagem, apontam que a variação do custo das mercadorias acompanha a do dólar.

"Quanto mais apreciado estiver o real, o que é muito bom para vários segmentos da economia, pior é para a vida do catador. Ele vai precisar andar mais e recolher mais", afirma ela.

Dudu Catador gesticulando durante entrevista à BBC

Crédito, Fernando Otto/BBC News Brasil

Legenda da foto, Dudu Catador, líder nacional do Movimento Nacional dos CatadoresMateriais Recicláveis defende taxaçãoreciclagem importada para defender catadores brasileiros

A reportagem ouviuintegrantes do setor que diversas empresas preferem importar, por exemplo, plástico reciclado da China ou bobinaspapel branco quando o real está mais valorizado. O motivo é que os produtos importados têm melhor qualidade.

"Qual é a concorrência imediata do papelão? O papel branco puro. Então, o papel reciclado tem um preço menor do que o papel branco só que, alémtudo, ele ainda tem todo um processo químicoelementos, tem que triturar e ele acaba tendo um rendimento menor. Então, na comparação, quando fica mais barato importar, acaba se preferindo comprar o papel puro branco", diz a professora da FGV.

Para a economista, porém, é injusto que os catadoresrecicláveis não sejam recompensados pelo trabalho social que fazem recolhendo materiais recicláveis.

"Quando você precifica esses materiais como uma commodity, você está fazendo comparações diferentes. Esse catador recolhe uma a uma as latinhas que são jogadas no lixo e eu dou ao trabalho dele o mesmo preço do alumínio produzido na indústria. Não é possível que você ande um mês inteiro recolhendo as sobras da sociedade e não receba um salário mínimo", diz.

Dudu Catador, líder nacional do Movimento Nacional dos CatadoresMateriais Recicláveis e membro da Rede Latino-Americana e CaribenhaCatadores (Red Lacre), defende que uma taxação mais alta dos materiais reciclados importados é o principal ponto para evitar uma queda ainda maior nos preços.

"O Brasil precisa implantar decretos para melhorar a renda do catador. Tem que diminuir os impostos daqui (sobre o material reciclável) e aumentar osfora para que os catadores possam trabalhar e levarrenda digna e botar comida no prato", afirma.

A economista da Fundação Getulio Vargas aponta que o aumentoimpostos como medida protetivaseu parque industrial é implantado no mundo inteiro.

"É perfeitamente possível. Os países praticam impostos específicos para poder proteger a indústria interna. Mas fazer uma taxação maior para esse fim eu acho muito pouco provável. É melhor fazer uma distribuiçãorenda sob um plano específicomanutençãopelo menos um salário mínimo", diz a professora.

Ela explica que esse pagamento poderia ser feito após os trabalhadores serem devidamente cadastrados nos municípios onde vivem, embora seja mais cética quanto à possibilidadeimplementar um programa nacional nestes moldes.

De toda forma, a professora aponta que a saída mais efetiva seria que esses catadores criem ou participemcooperativas. Quando isso ocorre, os ferros velhos são cortados da cadeiavendas até a indústria e isso garante maior lucro para os trabalhadores.

"Se ele se organizar numa cooperativa, vai receber um preço mais justorelação ao preçoum atravessador, no ferro velho. Nas cooperativas, ele paga INSS e tem mais direitos e melhor rendimento, apesarainda ser autônomo", afirma.

Coleta seletiva e o golpe nos catadores

Lousa mostra valor pago a materiais vendidosferro-velhoGuarulhos

Crédito, Fernando Otto/BBC News Brasil

Legenda da foto, Lousa mostra valor pago a materiais vendidosferro-velhoGuarulhos

Elias e outros catadores ouvidos pela reportagem afirmaram que, além da queda do dólar, o advento da coleta seletiva fez "sumir" a reciclagem das ruas e impactar ainda mais o rendimento deles.

Isso acontece, segundo eles, porque as pessoas que separavam esse material para os catadores, hoje entregam para o caminhão da coleta seletiva, que passa uma vez por semana. E tudo vai direto para as cooperativas da região.

O catador conta que chegou a carregar 300 kgmaterial numa só viagem durante a pandemia, mas hoje entrega 50 kg quando tem sorte.

"Eles passam levando tudo e a gente fica sem. Tem gente que guarda para mim, mas nem todo mundo pensa assim. Às vezes eu ganho R$ 50 o dia todo. Mas se está ruim trabalhando, ficarcasa é pior", conta.

O catador mora com a mulher, os quatro filhos, dois netos e um genro no terreno da casa dele. A principal renda da família é o dinheiro que Elias consegue com o material reciclado que ele vende.

A mulher dele, que sofredepressão, não está trabalhando, assim como o genro. A filha, que está com um filho4 meses, recebe o Bolsa Família.

Há oito meses, ele sentiu a pressãoficar parado dentrocasa. Elias foi atropelado quando pedalava voltando para casa. O resultado foi um maxilar e duas costelas quebradas, alémum machucado no tornozelo que o faz mancar até hoje.

Depois20 diasrepouso após o acidente, Elias viu os armários esvaziados e o apelo do neto o fez voltar às ruas. A única ajuda que tinha eraMauriceia Santos, a dona do ferro-velho, que doou cestas básicas e fez compras para ele.

"Ele (o neto) falou que tinha acabado as bolachas dele e o Danone (iogurte). A geladeira não tinha nada. Uma tristeza que saiu água dos olhos. Eu falei: 'quando o vô trabalhava, comprava suas coisas'", conta.

"Naquele dia, eu tirei uns entulhos da casaum rapaz e ganhei R$160. Eu estava com a boca inchada e desmaiei logo depoisalmoçar no Bom Prato. Eu trabalho doente, mas eu não deixo ninguém com fome", segue o catador.

A ausênciadireitos trabalhistas desanima Elias — que soma 15 anoscarteira assinada, principalmentesupermercados. Depois que foi demitido há quase oito anos, ele conta que passou a recolher recicláveis e fazer bicos na construção civil.

Elias diz que não recebe o benefíciotransferênciarenda do governo, o Bolsa Família, porque perdeu o CPF e não tem tempo para tirar uma segunda via do documento.

Ele diz que procura emprego nas áreas onde já atuou com carteira assinada e pretende deixarser catador. Enquanto isso, busca alternativas para complementar a renda.

"Sempre que eu posso, faço uns bicos. Limpo terrenos, carrego entulho. Qualquer um deles paga melhor do que a reciclagem", diz.

De acordo com levantamento feito pela Ancat e Instituto Pragma, com dados641 organizaçõescatadores,2020 foram comercializadas 326,7 mil toneladasmateriais recicláveis no Brasil. Isso é o equivalente a uma produção média895 toneladas por dia.

Em buscanovas oportunidades

Elias sorrindo após entregar material reciclado que coletou nas ruasGuarulhos

Crédito, Fernando Otto/BBC News Brasil

Legenda da foto, Elias conta que o sonho dele é ter condições para comprar uma casa para a família e pagar estudos para os netos

Embora a variação da cotação do dólar tenha impacto direto na vida dele, Elias conta que sequer acompanha as notícias do tema. Ele só sabe o resultado das mudanças na balança do ferro-velho.

No entanto, ele tem fresco na memória o contrasteagora com o início2022, quando chegou a ganhar R$ 600 num único dia, um rendimento que não consegue nem mesmouma semana inteiratrabalho.

Ele afirma que o custo das cestas básicas mensais da família dele é de, pelo menos, R$ 800.

"Às vezes, eu quero comprar uma roupinha mais decente, mas não dá. Ou você come, ou você veste. Tem que escolher. Um chinelo Havaianas hoje custa R$ 30. Um chinelo simples. O valor que eu ganhei hoje foi o que eu paguei num chinelo."

Elias empurrando carrinho com reciclagemterrenoGuarulhos

Crédito, Fernando Otto/BBC News Brasil

Legenda da foto, Elias diz que ter vergonhaser catador e que familiar já disfarçou para não cumprimentá-lo na rua

O sonho dele é conseguir comprar uma casa boa e dar melhores condiçõesvida e educação para os filhos e netos. Hoje, a família viveuma área irregular e corre riscodespejo.

"Quero colocar (meus netos) numa escola melhorzinha para não ficar que nem eu, analfabeto. Eu quero que eles estudem. Não quero eles puxando carrinho", desabafa.

Elias relata que um familiar disfarçou e virou a cabeça para não cumprimentá-lo quando o viu com a carroça na rua. "Eu tenho vergonha (de ser catador). A gente faz isso para não roubar. Puxar carrinho é serviçodoido. Mas o ganho que eu achei foi esse aqui e estou bem nisso."

Ele diz que apenas torce para ter novas oportunidadestrabalho, pois se sente humilhado pela desgastante rotina diária.

Mas ele pensadesistir? Elias levanta a camiseta polo e bate no abdômen definido enquanto diz, com a voz firme, que ainda tem muita força para trabalhar.

"Pode estar sol ou chover granizo que eu estou trabalhando."