O bancor, projetomoeda única global cujo fracasso permitiu hegemonia do dólar:
A morte antes do nascimento do Bancor marcou o fim da última barreira possível à hegemonia do dólar americano, e permitiu consolidá-lo como moedareferência mundial.
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Fim do Matérias recomendadas
Esta é a história da moeda mundial que nunca existiu.
KeynesBretton Woods
O Bancor foi ideia do famoso economista britânico John Maynard Keynes, que participou da conferência como principal negociador da delegaçãoseu país.
Nessa altura, Keynes já era considerado o grande guru da economia mundial pelos seus conhecidos trabalhos sobre os desequilíbrios econômicos que levaram à Grande Depressão1929 e às duas guerras mundiais. Seu prestígio ultrapassou fronteiras.
"Keynes queria pôr fim aos fatores que, naopinião, levaram às duas guerras e aos tremendos problemas econômicos da primeira metade do século 20, como o desequilíbrio comercial entre países, as guerras comerciais e as guerras cambiais", explica James Boughton, especialista do CentroInovaçãoGovernança Internacional (CIGI) do Canadá.
"Devemos termente que todos aqueles homens que participaram na conferência pertenciam a uma geração que sempre viveu na guerra ou na depressão econômica. Então seu seu grande objetivo era pôr fim aos males que abalaram o mundo nos últimos quarenta anos", diz Boughton à BBC News Mundo, serviçoespanhol da BBC.
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Keynes tinha plena consciênciaque as sanções impostas à Alemanha após aderrota na Primeira Guerra Mundial e os castigos sofridos pelapopulação tinham sido uma das principais razões do descontentamento que levou os nazistas ao poder, e um dos incentivos para Hitler. Eles embarcaramum expansionismo militar agressivo na Europa juntamente com o seu aliado, o líder da Itália fascista, Benito Mussolini.
Keynes também sabia que os desequilíbrios na distribuição do comércio mundial, agravados pelas guerras comerciais, pelas tarifas e pela depreciação competitiva das moedas, tinham prejudicado a economia mundial e a confiança entre governos e povos, razão pela qual, nas palavrasBoughton, "ele tinha a firme convicçãoque a melhor maneirapreservar a paz no mundo era ter economias fortes que pudesse negociar entre si."
Esse desejo colidiu com a realidadeum mundoguerra.
As hostilidades dificultaram as trocastodos os lados, mas esse não era o problema principal, mas sim a faltaconfiança.
Em um mundo abalado pelas batalhas militares, com as principais potências enfrentando-seblocos irreconciliáveis numa guerra total, e sem organizações supranacionais aceitas pela comunidade internacional, a maioria das moedas não eram intercambiáveis com asoutros países, ao contrário do que acontece atualmente.
Em 2024 pode-se trocar pesos mexicanos por reais, reais por euros, libras esterlinas ou qualquer outra moeda confiável, mas esse não era o caso1944.
Keynes sonhava com um mundoque todas as nações pudessem prosperar e comercializar. E para isso a primeira coisa que precisava erauma moeda aceita e conversível para todos.
Foi assim que concebeu o seu Bancor, uma moeda comum a todos os países com a qual todos poderiam negociar.
E como toda moeda, o Bancor precisariaum órgão regulador para respaldá-lo. Keynes chamava esse organismoUnião InternacionalCompensação (UIC), cuja diretoria seria formada por representantestodos os países - tamém havia um novo banco mundial.
O Bancor seria a moeda utilizada nas trocas entre os países aderentes ao sistema e o seu valor seria lastreado numa combinaçãomoedas mantidas pelos bancos centrais nacionais.
Cada país receberia uma cota anual do 'Bancores' proporcional àparticipação no comércio mundial. Se a balançapagamentosalguém caísse para um déficit, seriam dados créditos para equilibrá-la. Se alguém acumulasse um excedente, os Bancores seriam deduzidos daquota.
Na visão keynesiana, isto encorajaria os países a equilibrar o seu comérciobens e serviços, acabando com as tarifas e as guerras comerciais que dificultaram o comércio internacional na década1930.
Keynes queria evitar que os países mais ricos acumulassem um excedente excessivo nabalança comercial, enquanto os mais pobres ficassem presos num déficit euma dívida cada vez maiores que impediam arecuperação econômica e prejudicavam o crescimento global. Para ajudar estes paísesdificuldades, Keynes concebeu o FMI e o Bancor.
Foi uma proposta radical que procurava reduzir as diferenças entre os países ricos e pobres e promover a prosperidade para todos. Mas o seu próprio criador estava ciente das dificuldades da nova moeda.
"A proposta é complicada e nova, e talvez utópica no sentidoque não é impossívelpôrprática, mas que pressupõe uma maior compreensão, espíritoinovação corajosa e cooperação e confiança internacionais do que é razoável supor", disse Keynes.
Muito do que ficou conhecido como sistemaBretton Woods, como o FMI e o Banco InternacionalReconstrução e Desenvolvimento, que mais tarde seria integrado no Banco Mundial, nasceu das ideias do economista britânico.
Mas o Bancor nunca virou realidade.
Alguém muito poderoso e também presenteBretton Woods se opôs: os Estados Unidos.
Por que os Estados Unidos eram contra o Bancor
Na realidade, apesar do tom idealista dos seus comentários, a propostaKeynes procurava também defender os interesses do seu país, cuja liderança no comércio mundial tinha sido superada pelos Estados Unidos, país que ficava cada vez mais forte e que, ao contrário da Inglaterra, não tinha sofrido o devastações da guerraseu próprio território.
"Se houvesse uma formaos britânicos continuarem a vender bens aos domínios que formaram o seu império usando a libra esterlina, Keynes nunca teria proposto o seu Bancor, mas, àquela altura, isso estava foraquestão porque o dólar já tinha se tornado a moedareferência internacional”, disse Ben Steill, autor do livro “A BatalhaBretton Woods".
Assim, enquanto soldados dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha lutavam lado a lado contra o inimigo comum do Eixo nas diferentes frentes da guerra, ambos os países iniciaram1942 uma dura negociação sobre o desenho do sistema monetário e da economia mundial que seria implantado após a vitória nos camposbatalha.
Houve dois anosconversas antes da reuniãoBretton Woods, nas quais Keynes se encontrou com outro personagem-chave nesta história, o funcionário do Tesouro dos EUA Harry Dexter White.
Keynes e White eram, como dizia do jornalista Tony Barber, "tão diferentes como o bourbon e o chá da tarde".
Se Keynes se enquadrava no arquétipo do "cavalheiro" inglês da época, oriundofamília abastada, formadoCambridge, com o títulobarão pela Coroa Britânica.
Já White era filhoum ferreiro, nascidoMassachusettsuma famíliaimigrantes judeus da Lituânia, e teve que interromper diversas vezes os estudos universitários para contribuir nos negócios da família devido à morte precoceseus pais.
Exerceu um trabalho obscuro como funcionário público até se tornar o principal conselheiro do secretário do Tesouro, Henry Morgenthau, que o escolheu para chefiar a delegação americanaBretton Woods.
O atrito entre dois personagens tão diferentes como White e Keynes não demorou a aparecer.
Após as reuniões iniciais, Keynes chegou ao pontodizerWhite que "ele não tinha a menor ideiacomo observar as regras do intercâmbio civilizado" e descreveu o primeiro rascunho que o americano apresentou como "o trabalhoum lunático".
E,acordo com Steill, White "literalmente ficava doente sempre que tinha que se encontrar com Keynes por medoser humilhado diante dos seus colegas".
Mas, apesar das diferenças, Steill afirma que ambos "tinham uma admiração relutante um pelo outro".
White também queria promover o comércio e o crescimento internacionais, promovendo um quadro econômico estável e partilhado, mas ele se opôs ao Bancor porque a situação e os interesses dos Estados Unidos eram radicalmente opostos aos dos britânicos.
"O Reino Unido era a potênciadeclínio. As duas guerras mundiais arruinaram tudo, enquanto os Estados Unidos estavamascensão", diz Boughton.
No século 19 e início do 20, a Grã-Bretanha tinha cimentado ahegemonia mundial nas relações comerciais com o seu vasto império e no prestígio damoeda, a mais utilizada na época para as trocas internacionais.
Mas esse era um mundo ainda baseado no padrão-ouro,que o valoruma moeda dependia da capacidade do Estado emissortrocá-la por ouro.
E o esforçoguerra nas duas guerras mundiais, bem como a dinâmica internacional, fizeram com que os britânicos esgotassem rapidamente as suas reservasouro.
Aconteceu exatamente o oposto com os Estados Unidos. "Em 1944, os EUA concentravam 60% do ouro mundial e o dólar era a única moeda confiáveltodo o mundo, razão pela qual se tornou a mais utilizada", explica Steill.
A propostaKeynescriar uma moeda mundial alternativa teria permitido a Londres reter pelo menos algum controle do sistema monetário internacional, queoutra forma permaneceria inteiramente nas mãos da Reserva Federal dos EUA.
Para os americanos, o fatoa maior parte das trocas serem realizadasdólares naquela época não era um problema, mas sim uma vantagem, pois fazia daindústria o principal fornecedor para o mundo inteiro.
E o objetivo keynesianoajudar os paísesdificuldades a reduzir adívida também não era visto como uma prioridadeWashington, uma vez que o país era o maior credor do mundo àquela altura.
Por todas estas razões, "White respondeu a Keynes que a moeda mundial forte e confiável que ele queria criar já existia. Era o dólar, que desde então se consolidou como moedareferência", diz Boughton.
Os britânicos acabaram por ceder porque para reconstruir aeconomia depois da guerra precisavamuma ajuda que só os Estados Unidos estavamcondiçõesfornecer.
Um dos representantes britânicosBretton Woods resumiu claramente a razão: "Precisávamos do dinheiro".
A ideia do Bancor ficou para sempre arquivada nas gavetas da história. E desde então a economia mundial movimentou-se principalmentedólares.