Milei terá mais dificuldades para governar do que Bolsonaro, diz professoruniversidade americana:

Milei sorrindo com faixa presidencial, rodeado por várias pessoas durante a posse

Crédito, REUTERS/Matias Baglietto

Legenda da foto, Javier Milei durante a posse, no domingo (10/12); para o cientista político Gerardo Munck, vitória do argentino representa tendência maior na América Latinadificuldadegovernos da situação se reelegerem

"Há uma diferença da Argentina versus o Brasil que torna a situação mais difícil para Milei do que para Bolsonaro. [Na Argentina] Há menos partidos, o sistema partidário não é tão fragmentado."

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Gerardo Munck sorrindofoto

Crédito, Arquivo pessoal

Legenda da foto, 'É muito difícil governar na América Latina atualmente', aponta Munck como interpretação para a dificuldade dos governossituação se reelegerem

Milei derrotou Massa, representante do peronismo e ministro da Economia do agora antecessor governoAlberto Fernández, com 55% dos votos. O novo presidente argentino chegou ao poder pela coalizão da qual foi um dos fundadores2021, La Libertad Avanza ("A Liberdade Avança",tradução livre).

Para o professor Munck, porém, foi mais o cansaço do eleitorado com o governo Fernández do que o projetogovernoMilei que o fez ganhar — uma tendência recente que o cientista político vem observando na América Latina, onde os governossituação dificilmente conseguem se reeleger.

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"A alternânciapoder é boa para a democracia. Mas o que está acontecendo não é que o eleitorado está escolhendo novos governos porque acha que eles serão melhores", aponta o pesquisador.

"Basicamente, podemos dizer que a partir2015, e principalmente a partir2019, candidatosoposição estão vencendo muito mais frequentemente do que incumbentes — ou seus candidatos", diz Munck sobre a América Latina.

"Eu interpreto isso da seguinte maneira: é muito difícil governar na América Latina atualmente."

Munck nasceu e cresceu na Argentina, mudando-se para o Estados Unidos durante o regime militar do país latino-americano para estudar.

Ele é autorvários livros sobre política comparada e política na América Latina, como Latin American Politics and Society: A Comparative and Historical Analysis (2022,coautoria com Juan Pablo Luna) e Measuring Democracy: A Bridge Between Scholarship and Politics (2009).

Confira os principais trechos da entrevista, editada por concisão e clareza.

BBC News Brasil - Sua pesquisa indica uma tendência na América Latinaque candidatos ligados ao governo da situação frequentemente são derrotados nas eleições, principalmente depois2019. O que essa tendência significa?

Gerardo Munck - Uma forma padrãoolhar para os resultadoseleições é ideológica: esquerda ou direita. Lula versus Bolsonaro, Milei versus Massa.

Então, temos uma narrativa na América Latina sobre uma pink tide [onda rosa, ou guinada à esquerda] no início do século, que basicamente termina2015, quando partidosdireita começam a vencer.

Recentemente, houve uma sérievitórias da esquerda. Então, uma formapensar é: a América Latina está se movendo para a direita ou para a esquerda?

Outra forma é pensar na vitória ou derrota dos incumbentes. Basicamente, podemos dizer que a partir2015, e principalmente a partir2019, candidatosoposição estão vencendo muito mais frequentemente do que incumbentes — ou seus candidatos.

E eu interpreto isso da seguinte maneira: é muito difícil governar na América Latina atualmente.

De 2003 a 2014 aproximadamente, houve um boom de commodities que afetou particularmente a América do Sul, Brasil, Argentina... Os governos tiveram muita receita proveniente da tributação das exportações.

Houve muito crescimento, os governos podiam financiar vários programas sociais para fazer a redistribuiçãorenda. Eram bons tempos econômicos e os governos eram reeleitos com maior frequência.

Agora, passamos do períodoboom, tivemos a pandemia... O humor da população se virou contra os governos, tornando mais difícil para incumbentes ter um bom desempenho, satisfazer as expectativas e obter a reeleição.

Mas há algumas exceçõeslíderes que são muito populares, como [Nayib] BukeleEl Salvador e López Obrador no México.

A alternânciapoder é boa para a democracia. Mas o que está acontecendo não é que o eleitorado está escolhendo novos governos porque acha que eles serão melhores.

É mais algo do tipo: "Estamos fartos do governo atual e queremos tentar algo diferente".

Estamos falando disso bem no contextoque Milei foi eleito na Argentina com uma grande votação. Não é que essas pessoas amem o que Milei defende: tem mais a ver com o fatoque elas não queriam a continuidade, então elas votaram pela mudança.

Mulher passa ao ladogrande fotoSergio Massa grafitada por cima, com boca triste e narizpalhaço

Crédito, Tomas Cuesta/Getty Images

Legenda da foto, ImagemcampanhaSergio Massa pichadaBuenos Aires; o governoAlberto Fernández não conseguiu fazer seu sucessor

BBC News Brasil - Quais são as consequências dessa alternânciapoder? Quão desejável seria ter mais reeleições?

Munck - É muito comum fazer comparações com os quatro mandatos da Angela Merkel na Alemanha.

Ninguém dizia: "Isso é terrível, ela tem muito poder".

Ela mostrava fazer um trabalho muito bom, competente, não tinha questões relacionadas à corrupção. Era,linhas gerais, vista como o tipopolítica que se queria.

A Alemanha está provavelmenteuma situação melhor com um sistemaque alguém conquistava as reeleições do quepaíses da América Latina onde se expulsa governos a cada quatro anos. Quando se tem muita alternância, isso mostra que os políticos não estão sendo bem-sucedidos.

É preciso governos que construam legitimidade para que cidadãos os premiem com a reeleição.

No Brasil, talvez tenha havido uma eraouro com [Fernando Henrique] Cardoso e Lula antes que se entrasseum novo ciclo. Ambos foram reeleitos.

Você teve dois blocos, Cardoso e depois Lula. Houve alternância e governos que realmente conseguiram fazer algumas mudanças que foram vistas positivamente. O Brasil estava bem, mas então veio a [Operação] Lava Jato e outros problemas que não eram óbvios, mas estouraram a partir2014.

É importante construir partidos que são fortes, institucionalizados e que têm uma conexão com a população. Mas agora, temos muita volatilidade, e isso se manifestauma alternânciapoder muito rápida.

Se é preciso escolher entre [um cenário como] a Nicarágua e a Venezuela,que você tem ditadores que estão sendo reeleitos, ou uma alternânciapoder muito rápida, eu prefiro esta última opção, porque pelo menos é democrática.

Mas essas são democracias muito frágeis que não estão tendo um bom desempenho.

Milei e Bolsonaro sorrindo durante evento; eles estãoárea externa e rodeadosoutras pessoas

Crédito, Juan Ignacio Roncoroni/EPA-EFE/REX/Shutterstock

Legenda da foto, Milei e Bolsonaro durante a posse do presidente argentino; para Munck, o novo mandatário da Casa Rosada terá mais dificuldadeconquistar partidos do que o ex-presidente brasileiro

BBC News Brasil - O que isso nos diz sobre a crise e o futuro da democracia na região?

Munck - Vou te dar uma perspectiva positiva e depois uma mais negativa. Pode soar um pouco contraditório.

Eu acho que a democracia tem muitos pontos fortes na América Latina. Eu questiono algumas interpretaçõesque haja uma grande recessão democrática,que as coisas estejam piorando.

Faz 40 anos que a Argentina se tornou uma democracia, o Brasil vai celebrar isto também. No século 20, não houve períodos democráticos assim para a maior parte dos países da região. Você teve democracias que surgiram nos anos 1980, 1990, e que assim permaneceram.

No Brasil, as pessoas ficaram preocupadas com Bolsonaro, e basicamente as forçasoposição se juntaramuma frente e ganharam a eleição. Então vemos o sistema reagindo aos desafios e perdurando.

Se você olha historicamente, isso é positivo. Se olha globalmente, não tem nenhuma região fora da Europa com um grande númeropaíses nessa situação.

Mesmo que tenha havido muita disputa na Argentina, o candidato derrotado, Massa, foi à TV reconhecer a derrota. Então esse é um processo pacíficolidar com assuntos muito divisivos. As pessoas não estão pensandoformas alternativaschegar ao poder, isso é muito importante.

Os pontos negativos.... As pessoas falamcriserepresentatividade. Há uma faltaconfiança nos políticos, nas instituições democráticas, no Congresso, por exemplo.

Os cidadãos sentem que os políticos estão desconectados, distantes dos problemas comuns.

Isso abre caminho para os outsiders [candidatos com pouca ou nenhuma experiência na política]. Você vai ter pessoas como Bolsonaro e Milei chegando ao poder, porque eles expressam a frustração dos cidadãos.

Bolsonaro e Milei falaram dos regimes militares no Brasil e na Argentinauma forma bem positiva. Bolsonaro foi um pouco mais longe que Milei no sentidodizer que o regime foi algo bom; Milei falou mais na linhaque não era tão ruim quanto as pessoas falam.

Na cultura democrática, parece haver uma abertura para possibilidades que são preocupantes sim. Quanto mais você tiver uma criserepresentatividade, maior probabilidade temque líderes assim ascendam.

BBC News Brasil - Saindo um pouco da questão da reeleição, e pensando maisesquerda e direita. Você concorda que a América Latina, e as Américasgeral, tenham mesmo ondasideologias ascendendo ao poder na mesma época? Se sim, o que a vitóriaMilei na Argentina representa?

Munck - Se você pegar os países grandespopulação, Brasil, México… a América Latina está à esquerda.

Existe a questão do populismodireita, da extrema direita, digamos. Isso está virando uma opção padrãodiferentes países.

Você tem isso no Chile agora, um candidato da direita tradicional e um candidato [de um outro perfil da direita]. Isso está se mostrando para a próxima eleição: Evelyn Matthei parece uma possibilidade, e você tem também José Kast, que é uma figura mais ligada ao Milei.

Isso está se tornando uma fórmulacomo fazer campanhas eleitorais.

Talvez isso tenha começado com Bolsonaro... Trump basicamente abriu isso [essa tendência] como uma opção clara. E vemos issovários países.

É bom ter partidos na esquerda, centro, direita. Mas desejamos uma esquerda democrática, uma direita democrática, certo?

Entretando, na América Latina, temos problemas com os dois lados do espectro político. Muitos na esquerda não estão dispostos a dizer que a Venezuela é uma ditadura. E muitos na direita estão dando desculpas para candidatos que estão reabrindo assuntos relativos a ditaduras militares.

BBC News Brasil - Tanto no Brasil quanto na Argentina, partidos da direita [tradicional] acabaram apoiando a direita dita mais extrema. O que isso demonstra sobre esses partidosdireita, quegeral sempre foram considerados democráticos desde o fim dos regimes militares?

Munck - Milei poderia não ter vencido essa eleição se Macri [Mauricio Macri, ex-presidente da Argentina] não tivesse se colocado tão forte e rapidamentefavorMilei. Isso fez com que um bom númerolíderes e eleitores apoiasse Milei. Isso é bom porque torna Milei mais fraco do que se tivesse ganho por si mesmo.

Ele deve totalmente avitória ao apoio da direita e não tem pessoas o suficiente para compor o governo, e nem tem muito apoio no Congresso.

Então ele vai ter que trabalhar com outros partidos que acho que são mais institucionalizados. Isso provavelmente vai colocar limites no que ele pode fazer.

Trump discursando, com plateia atrás

Crédito, REUTERS/Brian Snyder

Legenda da foto, Partido republicano errou sobre momento'colocar limites para Trump', avalia Munck

BBC News Brasil – Algo do tipo era dito também sobre os republicanos moderarem Trump, assim como os militares e a direitarelação a Bolsonaro. Mas tanto Trump como Bolsonaro conseguiram terminar com um grande controle [do governo eseus partidos]. Por que deveríamos esperar que na Argentina Macri seja bem-sucedidomoderar Milei, e não que Milei acabe por dominar Macri?

Munck - Trump, quando ganhou2016, tinha maioria nas duas casas [legislativas]. Ele perdeu essa maioria dois anos depois. E ele essencialmente tinha dominado o partido republicano. Foi aí que o partido não fez seu trabalhocolocar limites para Trump.

Trump era mais poderoso, carismático… Ele conquistou seu caminho no partido nas primárias. Milei não é uma figura política grande como Trump.

Milei só disse: eu tenho um novo partidodois anosidade e eu sou o líder desse partido. Ele não conquistou o Juntos por El Cambio [a coalizaçãoMacri].

Milei é muito mais fraco [que Trump]. Ele não tem a maioria nem fazendo aliança com aqueles ligados a Macri.

Os peronistas farão uma oposição muito forte. E há muitos parlamentares que não concordam com os peronistas, mas concordam que é preciso colocar limites no poderMilei.

Há uma diferença da Argentina versus o Brasil que torna a situação mais difícil para Milei do que era para Bolsonaro. [Na Argentina] Há menos partidos, o sistema partidário não é tão fragmentado. Você não pode comprar o apoiotodos eles.

Lá, há mais partidos institucionalizados, mais antigos, mais estruturados. Você pode comprar o apoioalguns líderes, isso acontecetodo país. Mas eu não acho que a oposição na Argentina vai facilitar o caminhoMilei.

Milei e seus aliados estão dizendo coisas como que querem cancelar o direito ao aborto. Ele não vai conseguir apoio para isso.

Em algumas coisas, assuntos econômicos, que talvez sejam razoáveis, ele vai conseguir maioria. Masoutras coisas, eu simplesmente não consigo ver o país revertendo algumas coisas por causaMilei.

Muitas pessoas estão preocupadas com a vice-presidente [Victoria Villarruel], que vemuma famíliamilitares. É um pouco como Bolsonaro: ela quer trazer militares para diversas funções, mais para a vida civil. Isso certamente é um motivo para preocupação.

Mas acho que uma formapensar sobre Milei é: ele é mais próximo a Trump ou ao líder peruano Pedro Castillo [ex-presidente do Peru presodezembro2022 após tentar dissolver o Congresso], que basicamente perdeu horas na prisão e nunca conseguiu realizar coisas?

Vejo Milei mais próximo do que é Pedro Castillo do que Trumptermos da probabilidadesucesso.

Nesse cenário semelhante ao do Peru, o presidente faz tantos inimigos que ele não aprende que será chutado para fora do poder. Pode ser por meioprotestos,impeachment, enfim, há várias formas.

Então,vezdestruir as instituições, uma outra possibilidade é que ele [Milei] perca poder.

Ele vai conseguir conquistar apoio no Congresso para aprovar leis? A questão da governabilidade estádebate.

Algumas pessoas que ele está nomeando para cargos estavam na TV falando coisas malucas durante a campanha. Então não são profissionais que sabem o que estão fazendo.

Esse é o risco dos outsiders: você ganha amadores. Você ganha pessoas que não sabem como fazer algo tão complicado quanto conduzir um governo.

*Colaborou na redação do texto Mariana Alvim, da BBC News BrasilSão Paulo.