As ocultas marcas deixadas pelo homem no leito mais profundo do oceano:
Recentemente, cientistas voltaram com câmeras e sondas para ver o que aconteceu com os ecossistemas locais — e o que eles encontraram são cicatrizes que nunca foram totalmente curadas.
Logo, haverá muito mais trilhas como essas esculpidastodas as planícies abissais do oceano, uma das últimas áreas selvagens intocadas do planeta. O que as futuras gerações podem fazer com elas, e o que vão dizer sobre a busca da humanidade por recursos naturais no início do século 21?
Para entender por que essas marcas estão lá — e por que são importantes — precisamos mergulharum mar pré-histórico.
Um dia, um tubarão perdeu um dente, que afundou centenasmetros até o leito do oceano. Gradualmente, conforme a precipitaçãometais a partir da água do mar se acumula no sedimento, o dente é revestidominerais. E assim começa um dos fenômenos geológicos mais lentos da Terra: o crescimentoum nódulo polimetálico.
Nem todos começam com um dente — outros contêm fragmentosconchas,ossos ou nada — mas o ritmo lentocrescimento é sempre o mesmo. Eles levam milhõesanos para crescer apenas alguns centímetros. Mas com o tempo, se tornaram tão abundantes que cobrem grandes áreas da planície abissal do oceano.
Os nódulos foram descobertos durante uma viagem do HMS Challenger, navio da Marinha Real Britânica,1873. Quando trouxeram os depósitos minerais à superfície, os marinheiros os teriam agarrado com as mãos, fazendo-os esfarelar nas bordas.
Ao toque, eles deviam parecer mais suaves na partecima, mas ásperos na parte inferior, como pedra-pomes, onde haviam crescido envolvendo grãos sedimentares. Se tivessem levado ao nariz, não teriam detectado nenhum cheiro.
O químico da expedição foi um dos primeiros a notar que os nódulos não eram insignificantes. Eles eram feitos"peróxidomanganês", escreveu ele, que é "uma das principais substâncias utilizadas na fabricaçãoalvejante". Sua localização remota, no entanto, significava que "eles nunca poderiam se tornar uma fonte rentávelsuprimento".
Mal sabia aquele químico como eles seriam importantes — para os organismos das profundezas do oceano e, mais tarde, para os seres humanos.
Anos depois, os cientistas descobririam que esses nódulos são como ilhas para algumas formasvida. A planície abissalque se encontram representa 50% da superfície da Terra — uma dimensão sublime que pode ser difícilimaginar.
Se os oceanos fossem removidos repentinamente, veríamos que metade do nosso planeta é um vasto desertosedimentos soltos.
Em meio a essa planície árida, os nódulos oferecem uma superfície rara e firme para a vida se agarrar. Algumas esponjas e moluscos são específicos deles, enquanto nematelmintos e larvascrustáceos foram encontrados vivendosuas fendas.
"Eles são como as áreas rochosasum jardim — você vai ter mais espécies vivendo lá do que se tivesse apenas terra", diz Daniel Jones, do National Oceanography CentreSouthampton, no Reino Unido, que estuda os efeitos das intervenções humanas na vida marinha.
Mas, recentemente, esses nódulos também chamaram a atençãoum mamífero terrestre voraz, que precisa deles para seus smartphones. O que aquele químico da expedição1873 não identificou é que os nódulos também contêm metais, como cobalto, níquel, cobre, titânio e elementosterras-raras. E que estes um dia teriam um valor imenso para os seres humanos.
À medida que a tecnologia do século 21 avança, também aumenta a demanda por matéria-prima, como o cobalto, que é usadobaterias íon lítiocarros e eletrônicos. O problema é que, atualmente, grande parte do material é provenientefontes problemáticas.
A República Democrática do Congo extrai mais60% do suprimento mundialcobaltominas terrestres, mas a atividade no país foi associada a abusosdireitos humanos e trabalho infantil.
Isso torna os nódulos oceânicos um alvo cada vez mais atraente, apesar dos enormes desafiosengenharia para chegar até eles. Em uma região do Pacífico — a Clarion Clipperton Zone (CCZ) —, uma estimativa conservadora sugere que há cerca20 bilhõestoneladas, se os nódulos forem removidos e secos.
Embora por décadasexploração tenha sido considerada não rentável, várias organizaçõesmineração estão se mobilizando agora para removê-los, junto com outros tiposdepósitos minerais subaquáticos. Se for adiante, centenasquilômetros quadrados serão dragados por ano.
Qual será o impacto disso? Nas décadas1970 e 1980, pesquisadores e empresasmineração deram os primeiros passos na tentativaavaliar a viabilidade e as consequências ambientais.
Em várias áreas dentro da CCZ, assim comooutro local próximo ao Peru chamado Discol (DIS-turbance and re-COL-onisation), navios arrastaram ancinhos e aradosmetal especializados sobre o leito do Pacífico para recolher os nódulos e trazê-los para a superfície.
Embora não simule exatamente o maquináriodragagem planejado para futuras minas, e a escala seja muito menor, seus efeitos oferecem algumas das melhores evidências que temos.
Em alguns casos, os rastros foram deixados para trás por cientistas curiosos sobre o que aconteceria com um ecossistema intocado. Em outros, foram as próprias organizaçõesmineração emergentes, testando suas tecnologiasextração. Uma tentativa chegou a envolver, inclusive, a CIA, agênciainteligência americana.
A Ocean Minerals Company (OMCO), um consórciogrupos da indústria liderado pelo que agora é a Lockheed Martin, realizou testesextração no Hughes Glomar Explorer. Este navio mais tarde ganharia fama por outros motivos — ele também carregava uma garra gigante projetada para uma tentativa secretaiçar um submarino russo do fundo do mar.
Anos mais tarde, à medida que os planos para a mineraçãoalto mar se aceleravam e licenças exploratórias eram emitidas, os pesquisadores voltaram a esses locais no Pacífico para estudar os efeitoslongo prazo. O que eles descobriram é que, mesmo após décadas, a vida nessas trincheiras artificiais ainda não voltou ao normal.
Em terra, a vida tende a brotar nas cavidades aradasum campo, mas nas profundezas do mar, as trincheiras são relativamente estéreis. As criaturas que dependiam dos nódulos, agora removidos, não podem recolonizar.
E outras, que requerem sedimentos moles para escavar e encontrar alimento, não podem viver nas superfícies compactadas artificialmente.
"As comunidades desses nódulos nas planícies abissais serão especialmente vulneráveis ao riscoextinção causado pelos esforços para extraí-los", concluiu Lara Macheriotou, da Ghent University, na Bélgica, e seus colegasum artigo publicado no início2020.
E é possível, dizem os cientistas, que tais efeitos durem centenas ou até milharesanos.
A socióloga Barbara Adam propôs certa vez que o mundo pode ser pensadotermos"timescapes" adjacentes, que são caracterizados por seu ritmo.
Ela descreveu como as escalastempo industriais ou agrícolas se movemum ritmo muito mais rápido do que as naturais e ecológicas. Todos esses regimes temporais estão interligados, mas quando um é forçado a se mover no ritmo do outro, o dano ambientallongo prazo se torna um risco.
O timescape das profundezas do oceano é lento e paciente. Portanto, quando a humanidade envia seu maquinário para lá para remover recursos naturais submarinos, há dois regimes diferentestempo colidindo: o ritmouma planície abissal versus uma ânsia desenfreada ecurto prazo por novas tecnologias.
A profundeza dos oceanos não poderia estar mais distante dos ecossistemas verdejantes e das sociedades apressadas que povoam os continentes. As temperaturas na planície abissal oscilam pertozero, a pressão é esmagadora e quase não há luz.
Os organismos que se agarram à vida sobrevivem com uma dieta"neve marinha". Essa tempestade contínuadetritos orgânicos, geralmente digeridos três ou quatro vezes, cai da parte mais próxima da superfície do mar.
"É um ambiente com baixa temperatura, pouca comida e pouca energia, e isso tende a definir o ritmovida", diz Jones.
"Os animais não estão sujeitos às mudanças físicas extremas que você temáguas rasas. Esta é provavelmente uma área onde qualquer distúrbio é duradouro."
Mas, embora essas regiões possam parecer desertos do mar — certamentecomparação com os vibrantes coraiságuas rasas tropicais —, elas são grandes reservatóriosbiodiversidade e desempenham um papel vital no ciclo do carbono por meio do sequestro natural.
"Muitos dos animais que vemos são novos para a ciência... e alguns organismos têm compostos ativos farmaceuticamente", diz Jones.
No longo prazo, também há potencial para interação com a atividade pesqueira mais acima na colunaágua.
"Há funções desempenhadas por essas comunidades que podem não se tornar valiosas por séculosalguns casos."
Muitas vezes não conseguimos ver a vida dentro deste vasto espaço, porque é muito pequena e dispersa demais para se capturardimensão com uma fotografia. Não há megafauna carismática para exibircartazes. Mas a vida existeuma diversidade impressionante e cobre metade do nosso planeta.
Alguns podem argumentar que danificar a vida nas profundezas do oceano é um sacrifício que vale a pena ser feito, se comparado aos abusosdireitos humanos cometidosminas na África.
No entanto, é improvável que um tipomineração simplesmente substitua o outro, diz David Santillo, do Greenpeace Research Laboratories da UniversidadeExeter, no Reino Unido, que recentemente foi coautoruma análise sobre mineração no fundo do mar e seus potenciais impactos publicada na revista científica Frontiers in Marine Science.
"Há diferentes empresas envolvidas, diferentes mercadoscerta forma, diferentes pressões por parte da demanda e incentivos... então, se a mineração no fundo do mar decolar, é mais provável que se torne simplesmente uma fonte adicionalminerais."
Embora a importância da vida nas profundezas do oceano possa ser difícilquantificartermos morais ou econômicos, ela tem um valor intrínseco. E o fatosuas escalastempo lentas elongo prazo serem interrompidas tão rápido deveria ser motivo para cautela,acordo com os cientistas com quem conversei.
Quanto às trilhas dragadas, se as futuras gerações um dia as encontrarem no fundo do oceano, elas terão perdurado por muito tempo além da vida útil do smartphone, laptop ou carro elétrico que ajudou a esculpi-las.
Nas palavrasDavid Farrier, autor do livro Footprints, esses vestígios acabam por se tornar os "futuros fósseis". Na era do Antropoceno, Farrier argumenta que estamos deixando para trás heranças industriais, químicas e geológicas indesejáveis que persistirão por séculos.
"Os futuros fósseis são nosso legado e, portanto, nossa oportunidadeescolher como seremos lembrados", escreve ele.
"Eles vão registrar se continuamos imprudentes, apesar dos perigos que sabíamos que estavam à frente, ou se nos importamos o suficiente para mudar nosso rumo. Nossas pegadas vão revelar como vivemos para quem ainda estiver por aqui para descobri-las, sugerindo as coisas que estimamos ou negligenciamos, as jornadas que fizemos e a direção que escolhemos seguir."
É possível que essas marcas possam ser interpretadas como um sinal contundentenossos hábitosconsumo no início do século 21.
"Se vamos ficar sem certos minerais, a menos que destruamos uma grande área do leito oceânico, então certamente este é o sinal para repensar o quão esbanjadores estamos sendo com os minerais que temos", diz Santillo.
"Se o que acabamos fazendo com a mineração no fundo do mar é simplesmente estender os padrõesconsumo insustentáveis por mais 30 anos, ou até mesmo acelerá-los trazendo ainda mais produtos para o mercado... não teremos mudado nada."
SentadoLondres enquanto escrevo este artigo, meu mundo é pequeno ecurto prazo, circunscrito às restrições do lockdown no Reino Unido e do home office.
No entanto, minha mente vagou nas últimas semanasvolta às planícies abissais. Em uma épocaque muitos dos mapas que vejo traçam a propagação do coronavírus, eis uma região do planeta que não poderia estar mais distante da pandemia.
Talvez parte do que me atrai seja o extremo absoluto deste deserto oceânico. Provavelmente nunca vou conseguir ver com meus próprios olhos. Até mesmo os cientistas que o estudam agora usam câmeras operadas remotamente,vezdescerem eles próprios até o leito do oceano.
O fundo do mar, e a vida dentro dele, tem uma escala que desafia a imaginação, tanto espacial quanto temporalmente. Não é afetado pelo o que está acontecendoterra — e isso é verdade há milênios.
No entanto, este pode ser o séculoque isso vai mudar; onde deixaremos muito mais do que um ou dois fragmentos no fundo do oceano.
Quando os pesquisadores falam sobre intervenções humanas no fundo do mar, uma palavra que costumam usar é "distúrbio". Na linguagem científica, se refere à suspensão e dispersãoplumasedimentos e os efeitos nas comunidades submarinas. Mas a palavra distúrbio tem outro significado — também é um transtorno irracional.
Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Future .
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