A regra dos 3,5%: como protestos pacíficospequenas minorias podem mudar o mundo:
Existem, é claro, muitas razões éticas para adotar estratégias não violentas. Mas uma pesquisa realizada pela cientista política Erica Chenoweth, da UniversidadeHarvard, nos EUA, confirma que a desobediência civil não é apenas a escolha moral. É também disparado a forma mais poderosainfluenciar a política mundial.
Após analisar centenasprotestos no último século, Chenoweth descobriu que as manifestações pacíficas têm duas vezes mais chancesatingir seus objetivos do que as campanhas violentas.
E, embora a dinâmica exata dependauma sériefatores, ela mostrou que é preciso que cerca3,5% da população participe ativamente dos protestos para garantir uma mudança política profunda.
A influência do estudoChenoweth pode ser observada nas recentes manifestações da Rebelião da Extinção, movimento ambientalista iniciado no Reino Unido cujos fundadores dizem ter se inspirado diretamente nas descobertas da pesquisadora.
Mas como ela chegou a essas conclusões?
A pesquisaChenoweth se baseia na filosofiamuitas figuras influentes ao longo da história.
Entre elas estão a abolicionista afroamericana Sojourner Truth, a sufragista Susan B Anthony, o ativista indiano Mahatma Gandhi e o militante dos direitos civis dos EUA Martin Luther King - todos apresentaram argumentos convincentes sobre a força dos protestos pacíficos.
No entanto, Chenoweth admite que, quando começoupesquisameados dos anos 2000, era inicialmente bastante cínicarelação à ideiaque ações não violentas poderiam ser mais poderosas do que conflitos armados na maioria das situações.
Como estudantedoutorado na Universidade do Colorado, nos EUA, ela tinha passado anos analisando os fatores que contribuíram para o surgimento do extremismo, quando foi convidada para participarum seminário acadêmico organizado pelo Centro InternacionalConflitos Não Violentos (ICNC, na siglainglês), organização sem fins lucrativosWashington DC.
O workshop apresentou muitos exemplos convincentesprotestos pacíficos que provocaram mudanças políticas duradouras - incluindo, por exemplo, a Revolução do Poder Popular nas Filipinas.
Mas Chenoweth ficou surpresa ao descobrir que ninguém havia comparadoforma abrangente as taxassucessoprotestos pacíficos e violentos; talvez os estudoscaso tenham sido escolhidos simplesmente por algum viésconfirmação.
"Eu estava movida por um certo ceticismoque a resistência não violenta poderia ser um método eficaz para alcançar grandes transformações na sociedade", diz ela.
Em parceria com Maria Stephan, pesquisadora do ICNC, Chenoweth realizou uma extensa revisão da literatura sobre resistência civil e movimentos sociais1900 a 2006 - um conjuntodados então corroborado por outros especialistas na área.
Elas levaramconta principalmente tentativasintroduzir mudançasgoverno. Um movimento foi considerado bem-sucedido pelo estudo quando atingiu plenamente seus objetivos, tanto dentroum ano após seu picoengajamento, quanto como resultado diretosuas atividades.
Uma mudançaregime resultanteuma intervenção militar estrangeira não seria considerada um sucesso, por exemplo.
Uma campanha era classificada como violenta, porvez, quando envolvia atentados a bomba, sequestros, destruiçãoinfraestrutura - ou qualquer outro dano físico a pessoas ou propriedades.
"Estávamos tentando aplicar um teste bastante difícil à resistência não violenta como estratégia", diz Chenoweth.
Os critérios eram tão rígidos que o movimentoindependência da Índia, por exemplo, não foi considerado uma evidência a favor dos protestos pacíficos na pesquisa - uma vez que o declínio dos recursos militares da Grã-Bretanha tinha sido apontado como decisivo, apesaros protestossi também terem tido uma grande influência.
Ao fim deste processo, Chenoweth e Stephan haviam coletado dados323 campanhas violentas e não violentas. E os resultados - publicados no livro Why Civil Resistance Works ("Por que a resistência civil funciona",tradução livre) - foram impressionantes.
Forçanúmeros
No geral, as campanhas pacíficas apresentaram duas vezes mais chancessucesso do que as campanhas violentas: elas resultarammudança política 53% das vezes,comparação com 26% dos protestos violentos.
Isso se deveparte ao resultado da força dos números. Chenoweth argumenta que as campanhas não violentas têm maior probabilidadesucesso porque são capazes recrutar mais participantesum grupo demográfico mais amplo, podendo ter um impacto expressivo - paralisando a rotina da vida urbana e o funcionamento da sociedade.
De fato, das 25 maiores manifestações analisadas, 20 não eram violentas, e 14 delas tinham sido um sucesso absoluto. No geral, as campanhas não violentas atraíram cercaquatro vezes mais participantes (200 mil) do que a média dos protestos violentos (50 mil).
A Revolução do Poder Popular contra o regimeFerdinand Marcos nas Filipinas, por exemplo, atraiu dois milhõesmanifestantes no auge, enquanto o Movimento pelas Diretas Já1985 levou maisum milhãobrasileiros às ruas, e a RevoluçãoVeludo na antiga Tchecoslováquia reuniu 500 mil pessoas1989.
"Os números realmente importam para a construção do podermaneira que realmente possa representar um sério desafio ou ameaça às autoridades", diz Chenoweth.
E os protestos pacíficos parecem ser a melhor maneiraconseguir esse apoio amplo.
Uma vez que cerca3,5%toda a população esteja participando ativamente, as chancessucesso são bastante altas.
"Não houve nenhuma campanha que fracassou depoister alcançado 3,5%participação durante o augeum evento", afirma Chenoweth, que batizou esse fenômeno"regra dos 3,5%".
Além da Revolução do Poder Popular, isso inclui a Revolução Cantada na Estônia, no fim da década1980, e a Revolução Rosa na Geórgia, no início2003.
Chenoweth admite que inicialmente ficou surpresa com os resultados. Mas agora cita diversas razões pelas quais os protestos pacíficos podem obter níveis tão altosadesão.
Talvez, obviamente, as manifestações violentas excluam necessariamente pessoas que abominam e temem o derramamentosangue, enquanto os ativistas pacíficos preservam a superioridade moral.
A pesquisadora destaca que os protestos não-violentos também apresentam menos barreiras físicas à participação. Você não precisa estar apto e saudável para se engajaruma greve, enquanto as campanhas violentas tendem a se apoiarhomens jovensboa forma.
E embora muitas formasprotestos pacíficos também apresentem sérios riscos - basta lembrar da reação da China na Praça da Paz Celestial,Pequim,1989 - Chenoweth argumenta que é geralmente mais fácil falar abertamente sobre campanhas não violentas, o que significa que as notícias a respeito dela podem atingir um público mais amplo.
Os movimentos violentos, por outro lado, exigem o fornecimentoarmas e tendem a dependeroperações clandestinas, sendo mais complicado alcançar a populaçãogeral.
Ao engajar uma ampla parcela da população, as campanhas não-violentas também têm mais chancesganhar apoio entre as forças policiais e militares - os mesmos grupos aos quais o governo deveria se apoiar para restabelecer a ordem.
Durante um protesto pacíficomilhõespessoas, os membros das forçassegurança também podem ficar mais propensos a temer que seus familiares ou amigos estejammeio à multidão - o que significa que eles podem não reprimir o movimento.
"Ou quando olham para o númeropessoas envolvidas, podem chegar à conclusãoque o barco afundou, e não querem afundar junto", acrescenta Chenoweth.
Em relação especificamente às estratégias usadas, as greves gerais "são provavelmente uma das mais poderosas, se não a mais poderosa, como método únicoresistência não violenta".
As greves vêm acompanhadas, no entanto,um custo pessoal, enquanto outras formasprotesto podem ser completamente anônimas.
Ela cita como exemplo os boicotes dos consumidores na África do Sul na era do apartheid,que muitos cidadãos negros se recusaram a comprar produtosempresas com donos brancos.
O resultado foi uma crise econômica entre a elite branca do país, que contribuiu para o fim da segregação no início dos anos 1990.
"Há mais opçõesresistência pacífica que não oferecem tanto risco físico, especialmente quando os númerosparticipantes crescem,comparação com a atividade armada", diz Chenoweth.
"E as técnicasresistência não violenta são frequentemente mais visíveis,modo que é mais fácil para as pessoas descobrirem como participar diretamente e como coordenar suas atividades para maximizar o transtorno causado."
Um número mágico?
Esses são padrões gerais, é claro, e apesarter sido duas vezes mais bem-sucedida do que os conflitos violentos, a resistência pacífica ainda fracassou 47% do tempo.
Como Chenoweth e Stephan destacamseu livro, às vezes isso acontece porque essas campanhas nunca conseguiram apoio ou impulso suficiente para "corroer a basepoder do adversário e manter a resiliência diante da repressão".
Mas alguns protestos não violentos relativamente grandes também fracassaram, como as manifestações contra o Partido Comunista na Alemanha Oriental na década1950. Elas chegaram a reunir 400 mil participantes (cerca2% da população) no auge, mas ainda assim não conseguiram promover mudanças.
De acordo com a pesquisa, apenas quando os protestos pacíficos alcançam o patamar3,5%engajamento ativo que o sucesso parece estar garantido - e chegar até esse nívelapoio não é uma tarefa fácil.
No Reino Unido, seria necessária a participação ativa2,3 milhõespessoas (aproximadamente duas vezes o tamanhoBirmingham, a segunda maior cidade); nos EUA, precisaria envolver 11 milhõescidadãos - mais do que a população total da cidadeNova York. No Brasil, 3,5% equivale a 7,3 milhõespessoas. Para efeito comparativo, algumas das marchasjunho2013 no país chegaram a reunir,alguns dias, entre 1 a 2 milhõespessoas (vale lembrar também que alguns desses protestos terminavamviolência).
O fato é que ainda assim as campanhas não violentas são a única maneira confiávelmanter esse tipoengajamento.
O estudo preliminarChenoweth e Stephan foi publicado pela primeira vez2011 - e desde então suas descobertas atraíram muita atenção.
"Nunca será demais o quanto elas influenciaram esse campopesquisa", diz Matthew Chandler, que estuda resistência civil na UniversidadeNotre Dame,Indiana, nos EUA.
Isabel Bramsen, que pesquisa conflito internacional na UniversidadeCopenhague, na Dinamarca, concorda que os resultados do estudo são convincentes.
"Agora é uma verdade estabelecida na área que as abordagens não violentas têm muito mais chanceserem bem-sucedidas do que as violentas", diz.
Em relação à "regra dos 3,5%", ela sugere que embora seja uma pequena minoria, esse nívelparticipação ativa provavelmente significa que muito mais gente concorda tacitamente com a causa.
Os pesquisadores estão agora tentando desvendar os fatores que podem levar ao sucesso ou fracassoum movimento. Bramsen e Chandler, por exemplo, enfatizam a importância da união entre os manifestantes.
Como exemplo, Bramsen aponta o fracasso da insurreição no Bahrein2011. A campanha contou inicialmente com a adesãomuitos manifestantes, mas rapidamente se dividiufacções. A perdacoesão, acredita o pesquisador, impediu o movimentoganhar impulso suficiente a pontoprovocar mudanças.
Nos últimos tempos, Chenoweth tem se dedicado ao estudoprotestos que aconteceram nos EUA - como o movimento Black Lives Matter e a Marcha das Mulheres2017. Ela também está interessada na Rebelião da Extinção, que ganhou popularidade recentemente pelo envolvimento da jovem ativista sueca Greta Thunberg.
"Eles enfrentam muita inércia", diz ela.
"Mas acho que têm um núcleo incrivelmente pensante e estratégico. E parecem ter um bom faro sobre como se desenvolver e educar por meiocampanhasresistência não violentas."
Em última análise, ela gostaria que os livroshistória dessem mais atenção às manifestações pacíficas,vezse concentrarem tão fortemente nas guerras.
"Muitas das histórias que contamos focam na violência - e mesmo que tenha sido um desastre total, ainda achamos uma maneiraencontrar vitórias dentro dela", analisa.
Por outro lado, temos uma tendência a ignorar, segundo ela, o sucesso dos protestos pacíficos.
"Pessoas comuns estão se engajando, o tempo todo,atividades bastante heroicas que estão realmente mudando o modo como o mundo é - e elas também merecem alguma atenção e celebração."
Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Future .
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