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Como uma imagem reacendeu um debate histórico sobre índios e religião:
Além dos missionários, o batismo dos indígenas também teve a presença da vereadora Aninha Carvalho (SD), do municípioTrindade,Goiás. Em suas redes sociais, a parlamentar publicou imagens dos xavantes e um vídeo no qual aparece ao lado do pastor cantando músicas religiosas para crianças indígenas. Ela também recebeu diversas críticas nos comentários.
O debate sobre a inserçãoreligiões à cultura dos indígenas é antigo. O assunto existe desde o Brasil Colônia, quando os jesuítas vieram ao país,1549, para evangelizar, catequizar e tornar cristãos os indígenas que habitavam as terras brasileiras.
Quase cinco séculos depois, o impacto cultural da religião do homem branco nos indígenas ainda gera debates e causa polêmica. Apesar disso, gruposdiversas religiões continuam frequentando tribos e conquistando novos fiéis dentro das aldeias.
Para o antropólogo Roque Lara, que há décadas estuda a cultura indígena, as incursões religiosas trazem prejuízo histórico para os indígenas.
"A Constituição brasileira garante aos indígenas o direitocontinuar com suas crenças e religiões. Como antropólogo, há muito tempo tenho me manifestado contra missões. É um absurdo que uma pessoa que venhafora, que não fala a língua do grupo, queira mudar a cabeça deles e as crençascentenasanos."
O batismoÁgua Boa
O pastor Isac Santos, da Igreja TempoSemear, contou que há maisum ano conhece o cacique da aldeia onde ocorreu o batismo. Segundo o religioso, os xavantes da região sempre ficam emcasa quando vão à cidade. Ele argumentou que antesse converterem àreligião, os indígenas já haviam adquirido costumes brancos.
"Eles eram convertidos ao cristianismo. Ao contrário do que os ignorantes pensam, a aldeia deles possui energia e televisão. Além disso, os indígenas daquela região têm conta no banco, títuloeleitor, Bolsa Família, falam português e fazem faculdade. Eles não ficam dançando ao redor do fogo o dia todo", disse.
Santos comentou que o batizado foi presenciado por todos os membros da aldeia, incluindo os que não participaram do ato.
A cerimônia ocorreu no Rio Borecaia,Água Boa. Os indígenas foram ao local com os missionários. Utilizando roupas brancas, eles entraram na água junto com os religiosos. Entoavam cantosua cultura,linguagem própria, enquanto os pastores bradavam "aleluia, Jesus" e "glória a Deus".
Durante o batismo, havia duas duplaspastores e cada uma delas convidava um indígena por vez. Ao ser chamado, cada um era posicionado pelos religiosos. De costas, eles juntavam as palmas das mãossinaloração e eram colocados durante segundos nas águas do rio. Posteriormente, eram levantados e recebiam aplausosquem acompanhava a cerimônia.
De acordo com Santos, o batizado é essencial para os indígenas que queiram seguir a religião evangélica. "Sefato são cristãos, essa decisão precisa ser selada no batismo. Segundo João Batista, isso é feito por imersão nas águas. É preciso crer para ser batizado. Só dei continuidade ao batismo quando pude testificar,fato, que eles tinham Jesus como salvador. Caso contrário, o procedimento deles seria inválido."
Ele frisou que os indígenasAreões foram os únicos batizados pela equipe missionária da qual faz parte. O religioso também salientou que as roupas utilizadas durante a cerimônia não foram exigências e pertenciam a eles, que teriam comprado as vestes para utilizá-lasdias festivos.
Em relação às diversas críticas que recebeu, o religioso as classificou como infundadas. Para ele, os comentários contrários ao batismo foram feitos por "ativistasteclado".
"Fazer dos indígenas uma bandeiraativismo é muito bizarro. Os tratam como bichos, como se fossem incapazes. Os indígenas dizem que podem tomar suas próprias decisões. Eles escolheram a nossa fé. Parece que é crime o fatoeles terem escolhido o cristianismo."
Santos comentou que reagiu com naturalidade aos comentários negativos feitos empublicação.
"No meu Facebook, comenta quem quer. Na minha caixamensagem há todo tipoameaça. Mas não é disso que se trata a democracia? Eles xingam quem eles querem, eu batizo quem quiser ser batizado", afirmou.
Sobre a presença da vereadora Aninha Carvalho na cerimônia, o líder religioso explicou que a parlamentar estava a passeio. "Ela foi para pescar com a gente no rio das Mortes. Como descemos para a aldeia, ela nos acompanhou e ainda comprou pães para o lanche e docinhos para as crianças indígenas. Acabou sendo uma bênção."
A reportagem entroucontato com a assessoriaimprensa da vereadora e com a própria parlamentar, mas não obteve resposta até a publicação deste texto.
Contato entre tribos e religiosos
O controleacessogrupos religiosos a tribos indígenas é feito pela Fundação Nacional do Índio (Funai).
Por meiocomunicado, a instituição explicou que a entradamissõesterras indígenas só pode ocorrer com autorização da presidência do órgão oucasoas lideranças das aldeias autorizarem a entrada dos grupos.
A Funai informou ainda que não recebeu nenhum tipodenúncia sobre o casoÁgua Boa.
Já no Ministério Público Federal (MPF) existe uma representação contra o batismo que ocorreu na terra indígenaAreões. Em 28agosto, a pedagoga Juliani Caldeira protocolou denúncia sobre o caso após ver a publicação feita pelo pastor Isac Santos. O procedimento ainda não entroufasetramitação.
Na denúncia, Caldeira questionou a presença da vereadora Aninha Araújo e dos missionários na aldeia. Ela pediu a aberturainvestigação sobre o caso.
"Sendo o Estado Laico e sendo a vereadora representante do povo no seu mandato, teria ela o consentimento para entraraldeias, levando acultura para um grupo que já possui aprópria?", questionou a pedagoga,trecho do documento protocolado no Procuradoria.
Cultura
Os xavantes compõem o maior grupo indígenaMato Grosso. Há cerca20 mil delesdiversas regiões mato-grossenses. Eles possuem dez terras no Estado.
Entre as características culturais deles estão rituais que envolvem os processos da vida como nascimento e casamento. Os indígenas desse grupo são ligados a questõesespiritualidade e cultivam segredos sobrenaturais. A língua deles é denominada acuen, do tronco linguístico macro-jê.
Entre seus rituais, destaca-se o wai'a, no qual apenas os homens participam e repassam conhecimentos tidos como sobrenaturais, relacionados a questões como a vida e a morte, o bem e o mal, a doença e a cura.
Uma das particularidades dos xavantes é a permissão para que os homens possam exercer a poligamia.
Nas últimas décadas, assim como relatadooutras aldeias do país, parte da cultura deles foi suplantada pela religião evangélica ou católica, trazida aos grupos por meiomissionários.
Diversas terrasxavantes deixarampermitir a poligamia e outros ritos, mantiveram alguns costumesseus ancestrais e passaram a ser predominantemente católicas ou evangélicas.
O xavante Lúcio Waane Terowaa,39 anos, que vive na terra indígenaSão Marcos, teme pela perda culturalseu povo. Filhopais que decidiram seguir o catolicismo, ele nunca quis ser batizado e optou por preservar a culturaseus antepassados.
"Nós acreditamos na espiritualidade indígena. Os xavantes creem que existe o mundo espiritual, que nos protege, nos leva a ser pessoas mais tranquilas e faz com que tenhamos convivência harmônica. Só que essas pessoas que estão mais avançadasoutras religiões estão falando mal da nossa. Dizem que a deles está certa. Isso é muito triste", disse.
"As nossas crenças foram atacadas pela Igreja Católica e pela evangélica. Começaram a falar que não é certo dar continuidade à nossa religião. Isso vem trazendo um grande impacto sociocultural", completou.
Segundo ele, apesardiversos grupos terem adotado religiões diferentes, há outros que nunca aceitaram a presençanenhum tipoigreja.
"Ao longo dos anos, algumas aldeias foram convencidas, mas nem todas. Algumas delas não aceitam nenhum missionário e mantêm a tradição antiga", relatou.
Terowaa contou que quase chegou a ser batizado, mas desistiu. "Comecei a pesquisar sobre religião, procurei na internet e percebi que havia algo errado que está dominando meu povo."
"Na minha opinião, acho que todas as religiões merecem respeito. É triste ver que a igreja invadiu nosso território para evangelizar os indígenas e agora fala mal da nossa cultura. Para mim, não há fundamento para justificar a existência dessas religiões nas aldeias."
Incursões religiosas
As ações religiosasterras indígenasMato Grosso possuem diversas passagens marcantes. Entre elas está a missão jesuíticaUtiariti, feita por membros da Igreja Católica no municípioDiamantino entre os anos1930 a 1970. O trabalho envolveu os Nambikwara, Irantxe, Paresi, Rikbáktsa, Apiaká e os Kayabi.
A Utiariti tinha o objetivocatequizar crianças indígenas por acreditar que elas seriam o meio mais fácildoutrinaçãoum períodoque havia disputaterras entre indígenas e seringueiros. Na época, ocorria a reativaçãoseringaisMato Grosso, após a Segunda Guerra Mundial.
A missão foi alvoduras críticasindígenas, pois no internato onde as crianças ficavam havia distanciamento da cultura nativa delas. No local, os responsáveis somente conversavamportuguês, passavam apenas ensinamentos católicos e eram raras as permissões para que os pequenos indígenas pudessem visitar suas famílias.
O indigenista Ivar Busatto, coordenador da Operação Amazônia Nativa (Opan), comentou que a posturaalguns religiosos assusta pessoas que trabalham com a cultura indígena.
"A gente tem visto na Amazônia, no Sul do País eoutros lugares, que há uma 'busca' por essas almas dos nativos, que é um pouco estranha e agressiva. Isso tem nos preocupado. Esse ufanismo por conquistaalmas é estranho e causa perplexidade."
Ele relatou que cada indígena tem permissão para seguir a religião que preferir, conforme determina a Constituição Federal1988. Porém, frisou que é importante manter o apreço à culturacada povo.
"Todo cidadão,qualquer etnia,qualquer lugar do mundo, tem o direitofazer suas escolhaslinha religiosa. Mas é importante ter respeito às crençascada um", observou.
O antropólogo Roque Lara pontuou que o modo como os missionários agem pode ofender a cultura das aldeias.
"A Constituição diz que a crença dos indígenas deve ser respeitada. O indígena, individualmente, pode mudarcrença, caso queira. Mas o problema é a maneira como as coisas são feitas. Depende do modo como missionário está agindo. Ele pode começar a oferecer bens materiais e o indivíduo acha que é vantagem."
"Mas, por princípio, os antropólogos defendem as crenças indígenas, da mesma forma que defende que cada um tenha acrença e também o direitonão ter nenhuma", completou.
Lara defendeu que os grupos religiosos que comparecem às aldeias realizem trabalhos sociais, sem coagir os indígenas a seguir determinada crença.
"Há muitos casosreligiosos que desistiram da catequese e passaram a fazer serviçoassistência. Conheci missionário muito bem intencionado, que trabalhava bem e cuidou da população indígena. Mas acho que é importante saber o momentoque ele pode entrar e respeitar", destacou.
Uma das entidades religiosas que atuaaldeias indígenas do Brasil é o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), fundado1972. A instituição é ligada à igreja católica por meio da Conferencia Nacional Dos Bispos do Brasil (CNBB) e afirma não impor nenhuma crença ao grupo.
O secretário-executivo do Cimi, Cleber Buzzato, esclareceu que o conselho tem o objetivoauxiliar causas relacionadas aos indígenas.
"Embora sejamos uma entidadecaráter religioso, nossa atuação junto aos povos não tem perfil proselitista. Defendemos termos constitucionais, segundo os quais os povos têm direito aos seus usos, costumes, tradições e terras que ocupam. A gente apoia esses povos nas demandas que eles apresentam ao Estado brasileiro, para que possam ter condições mais adequadasvida", disse.
Ele comentou que ações religiosas do Cimi são realizadas apenas nas aldeiascasoos próprios indígenas solicitarem.
"Há casos específicosque os povos passaram por processocristianização e que demandam alguns serviços eclesiais. Se há solicitação dos povos e algunsnossos voluntários têm a possibilidaderesponder a esses pedidos, então essas demandas são atendidas."
Apesaracreditar que existam entidades religiosas que possam trazer benefícios aos indígenas e não imponham suas crenças ao grupo, o xavante Lúcio Waane Terowaa fez um apelo.
"Para que a gente possa viver neste mundo, cada um deve respeitar o outro. Cada raiz é diferente. Cada cor é diferente. Mas somos todos iguais, somos feitos à imagem única dos seres sábios. Eu preciso que as pessoas ao menos respeitem a gente."
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