Haiti: a brutalidade das gangues que estupram e sequestram no país mais pobre das Américas:
Na prática, o estado não exerce qualquer poder, pois as crises se sucedem. Quase metade da população — 4,7 milhõeshaitianos — enfrenta fome aguda. Na capital, cerca20 mil pessoas enfrentam condições semelhantes à fome, segundo a ONU. É a primeira vez que isso acontece nas Américas. A cólera voltou a assombrar o país. Mas a maior praga são as gangues armadas.
A hora do rush pela manhã — entre 6h e 9h — é o horáriopico dos sequestros. Muitos são arrancados das ruas a caminho do trabalho. Outros são afetados na hora do rush da noite — das 15h às 18h.
Cerca50 funcionários do nosso hotel no centro moram aqui porque é muito perigoso para eles irem para casa. Poucos saem após escurecer. O gerente diz que nunca sai do edifício.
O sequestro é uma indústriacrescimento. Foram 1.107 casos notificados entre janeiro e outubro deste ano, segundo a ONU. Para algumas gangues, é uma grande fonterenda. Os resgates podem variarUS$ 200 (R$ 1.050) a US$ 1 milhão (R$ 5,3 milhões). A maioria das vítimas volta viva — se o resgate for pago — mas não sem sofrimento.
"Os homens são espancados e queimados com materiais como plástico derretido", diz Gedeon Jean, do CentroAnálise e PesquisaDireitos Humanos do Haiti. "Mulheres e meninas estão sujeitas a estupros coletivos. Essa situação estimula os parentes a encontrar dinheiro para pagar o resgate. Às vezes, os sequestradores ligam para os parentes para poderem ouvir o estupro sendo realizado pelo telefone".
ManhãDelmas
Andamoscarro blindado. Normalmente reservado às linhasfrentezonasguerra como a Ucrânia,Porto Príncipe tamanha segurança é vital para afastar os sequestradores. É uma proteção que muitos aqui não podem pagar.
O Haiti é o país mais pobre do hemisfério ocidental, propenso a desastres naturais e políticos.
Ao nos deslocarmos para uma entrevistauma manhã no fimnovembro, nos deparamos com uma cenacrime no subúrbioclasse médiaDelmas 83. Cartuchosbala espalhados pela calçada, brilhando à luz do sol, e um homem jaz mortoum beco, com o rosto no chãouma poçasangue.
Ao lado dele, uma caminhonete 4x4 cinza batida contra um muro, umseus lados cravadoburacosbala. Uma AK-47 encontra-se no chão. Policiais fortemente armados cercam a picape, alguns com rostos cobertos e armaspunho. Espectadores se aglomeramvolta. Ninguém faz perguntas, mesmo que as tenha. Quando você vive na sombra das gangues, vale a pena ficar calado.
A polícia nos disse que se envolveuum tiroteio com um gruposequestradores, que saíram cedo na esperançacapturar a próxima vítima. O bando fugiu a pé, um deles deixando um rastrosangue. O suposto sequestrador foi perseguido até o beco, onde foi morto.
"Houve um tiroteio entre um policial e os bandidos. Um deles morreu", conta um policial veterano27 anos que não quis ser identificado.
Ele diz que a situação na capital nunca esteve pior. Perguntei se as gangues eram imparáveis. "Nós as paramos. Hoje", responde.
Do outro lado da cidade, naquela mesma manhã, François Sinclair, um empresário42 anos, ouviu uma rajadatiros quando estava no trânsito. Presenciou homens armados assaltando os dois carros àfrente, então pediu ao motorista que desse meia-volta. Mas ao tentarem fugir, foram avistados.
"Do nada, fui baleado dentro do meu próprio carro e havia sangue por toda parte", ele nos conta, sentadouma cadeirarodasum hospital gerido pela ONG Médicos Sem Fronteiras (MSF).
"Poderia ter levado um tiro na cabeça", diz ele, "e havia outras pessoas no carro também". Há um curativoseu braço, justamente onde foi atingido por um disparo.
Pergunto se ele já pensousair do país para fugir da violência. "Dez mil vezes", ele responde. "Não consegui nem ligar para minha mãe para contar o que aconteceu [comigo] porque ela é idosa. Do jeito que as coisas estão aqui, é melhor ir embora se puder."
Essa é uma frase que ouvimos a todo o momento, mas para a maioria dos haitianos, não há para onde ir.
As enfermarias do hospitalMSF estão cheiasvítimastiros, muitas delas atingidas por balas perdidas. Claudette, que perdeu parte da perna esquerda, me diz que nunca poderá se casar agora que está incapacitada. Deitada por perto está Lelianne,15 anos, que está fazendo palavras-cruzadas para passar o tempo. Ela foi baleada no estômago.
"Minha mãe e eu saímos para comer alguma coisa", diz ela. "Enquanto estávamos fazendo o pedido, senti algo. Foi quando caí e griteiagonia. Não esperava sobreviver. Costumo ouvir tiros mais longe da minha casa. Naquele dia eles chegaram mais perto."
Mesmo o último presidenteexercício do Haiti não estava seguro emprópria casa. Jovenel Moïse foi morto por pistoleirosjulho2021. A polícia culpou mercenários colombianos, dos quais cerca20 foram presos. Mas, maisum ano depois, ninguém foi julgado aqui por puxar o gatilho ou ordenar o assassinato. Ativistasdireitos humanos dizem que quatro juízes entraram e saíram do caso. Está agora nas mãosum quinto.
A morte do presidente criou um vácuopoder que as gangues têm competido para preencher — com a ajudacomparsas.
Especialistas dizem que os grupos armados têm ligações com figuras políticas corruptas — no poder e na oposição. Eles abastecem as gangues com armas, finanças ou proteção política. Em troca, as gangues fazem seu trabalho sujo, gerando medo, apoio ou instabilidade, conforme necessário.
Empresários ricos também têm ligações com as gangues.
"Sempre houve relações entre políticos e algumas gangues, localizadas principalmentebairros pobres com grande númeroeleitores. Mas desde a eleição2011 essas relações se institucionalizaram", diz James Boyard, especialistasegurança e professorRelações Internacionais da Universidade Estadual do Haiti. "Elas [as gangues] são contratadas para criar violência política".
Ativistasdireitos humanos dizem que existem cerca200 grupos armadostodo o país, mais da metade deles atuando na capital.
Se um membrogangue for preso, um telefonemaseus apoiadores pode libertá-lo sem demora — e com suas armas. Ativistasdireitos humanos dizem que há muitos crimes, mas nenhuma punição.
"Não há Justiça", diz Marie Rosy Auguste Ducena, da Rede NacionalDefesa dos Direitos Humanos do Haiti (RNDDH).
"Os juízes não querem trabalhar nesses casos. Eles são pagos pelas gangues. E alguns policiais são como um sistemaapoio para as gangues, dando-lhes carros blindados e gás lacrimogêneo."
Outros policiais são membrosgangues, diz o ativistadireitos humanos Gedeon Jean. "Sabemos que há pelo menos dois policiaisexercício ou ex-policiaiscada quadrilha. Sabemos que carros com placaspolícia são usados para sequestros. Se a polícia, como instituição, está envolvida, não sabemos."
Alguns policiais atuais e antigos têmprópria gangue, chamada Baz Pilatos. Ativistasdireitos humanos dizem que ela controla parte da rua principal no centroPorto Príncipe.
O conluio da polícia não é um mistério. Os policiais ganham cercaUS$ 300 (R$ 1,6 mil) por mês, e alguns vivembairros controlados por gangues. Para eles, pode ser uma questãosobrevivência, nãoescolha.
'Concursobrutalidade'
O que está acontecendo aqui — a cercaduas horasvooMiami (EUA) — vai muito além da mera violência. É como se as ganguesPorto Príncipe estivessem envolvidasum concursobrutalidade, e qualquer pessoa nesta cidadecerca1 milhãohabitantes possa se tornar a próxima vítima.
Um homem magro na casa dos 30 anos — que não tem ligação com gangues — vem nos contar o que ele eesposa sofreram alguns meses atrás. Seu bairro é controlado por uma facções, e rivais começaram uma matança. Parasegurança, não vamos mencionar a área ou o grupo armado envolvido.
Quando ele começa a falar, continua por 13 minutos sem parar — como se não pudesse conter suas palavras ouangústia.
"Disse a mim mesmo que os tiros estavam muito pertonós e que deveríamos tentar sair", diz ele. "Mas eles já estavam invadindo a vizinhança. Voltei para dentrocasa com minha esposa. Estava com tanto medo que tremia. Não sabia o que fazer. Eles matam principalmente homens jovens. Minha esposa me escondeu debaixo da cama e me cobriu com uma pilharoupas. Meu sobrinho estava escondido no guarda-roupa."
Logo os homens entraram na casa, batendo na esposa e exigindo informações sobre os membros da gangue local. Quando o sobrinho tentou fugir, atiraram nele e o mataram. O marido permaneceu escondido e angustiado sem que nada pudesse fazer.
"Queria fugir. Queria gritar. O que mais me dói é que quando estava debaixo da cama, não podia ver, mas podia ouvir aqueles homens estuprando minha esposa. Eles a estavam estuprando, e estava debaixo da cama, e não conseguia dizer nada."
Depois disso,casa foi incendiada e ele eesposa fugiramdireções opostas. Eles ainda vivem separados, com amigos e parentes, mas esperam que possam voltar a morar com o filho pequeno.
O que aconteceu "é uma cicatriz que atinge o corpo e a alma", descreve o homem. Sua esposa agora está grávida, e eles não sabem se ele é o pai ou se é um dos agressores. De qualquer forma, nos diz que vai aceitar a criança e dar-lhe o seu nome.
"O que eu suportei não foi nada", diz ele. "Há uma senhora que teve apenas um filho. Eles cortaram a garganta dele na frente dela. O menino não tinha nenhuma ligação com gangues."
Marido e mulher foram roubadosquase tudo, incluindo o amor pelo país. "O Haiti foi apagadonossos corações", diz ele. "Qualquer chance que tivermos, iremos embora."
Após dizer isso, ele desmorona, seu peito arfando enquanto chora.
Os testemunhos que reuni aqui estão entre os piores que já ouvimais30 anos como correspondente estrangeira, fazendo reportagensmais80 países. E parece que isso é apenas uma pequena amostra da tragédia que assola esse país.
Para as ganguesPorto Príncipe, não há limites.
Em poucos dias, conheci três vítimasestupro coletivo — a mais nova tinha apenas 16 anos. Ela e uma parente foram estupradas pelos mesmos agressores, que depois ameaçaram queimá-las vivas dentrocasa. A outra mulher estava grávidaseis meses na épocaque foi atacada. Enquanto era abusada, seu marido foi executado. Meses depois, ela segue buscando o corpo dele.
Cada vez mais, o estupro é usado como arma pelas gangues. Eles têm como alvo mulheres e meninas que vivemáreas controladas por seus rivais. Durante uma guerra territorialjulho no bairro mais pobre do Haiti, o Cité Soleil, ativistas dizem que mais300 pessoas foram assassinadas — a maioria dos corpos foi carbonizada — e pelo menos 50 mulheres e meninas estupradas por gangues.
A ONG Rede NacionalDefesa dos Direitos Humanos do Haiti (RNDDH), que documentou os estuprosCité Soleil, diz que muitas sobreviventes "se arrependemestarem vivas". Vinte delas foram estupradas na frenteseus filhos. Seis viram seus cônjuges serem mortos antesserem estupradas por vários homens.
A maior parteCité Soleil é controlada pela mais poderosa facçãoPorto Príncipe — a G-9 e seus aliados. Fontes locais dizem que a gangue tinha laços estreitos com o presidente assassinado e seu partido no poder. Sua especialidade é a extorsão.
O G-9 bloqueou o principal terminalcombustíveis da cidadesetembro, paralisando o país por quase dois meses e desencadeando uma crise humanitária.
Seu líder é um ex-policial chamado Jimmy Cherizier, apelidado"Churrasco", que dá ocasionalmente entrevistas a jornalistas. Solicitamos uma entrevista por intermediários, mas não tivemos resposta. Ele pode querer falar menos hojedia porque foi recentemente submetido a sanções pelo ConselhoSegurança da ONU, acusadoameaçar a paz e a estabilidade do Haiti.
Os Estados Unidos e o Canadá recentemente sancionaram dois políticos haitianos, incluindo o atual presidente do Senado, Joseph Lambert, por supostamente colaborar com as gangues.
Fontes dizem que as sanções estão gerando algum impacto, porque os políticos que usam as gangues agora querem se esconder.
'Criminosos tomaram país como refém'
Quando Jean Simson Desanclos chegou à rua deserta na periferiaum subúrbio repletofacções, ele não encontrou nadasua família exceto a carroçaria queimada da Suzuki preta da família. Os restos mortais carbonizadossua esposa e duas filhas já haviam sido levados para o necrotério.
Josette Fils Desanclos,56 anos, estava levando umasuas filhas Sarhadjie,24, para a universidade, e a outra, Sherwood Sondje, fazia compras para seu aniversário. Estava prestes a completar 29 anos. As duas meninas estudaram Direito como o pai. Eram suas "princesas".
"No dia 20agosto, perdi tudo", diz ele. "E não foi só minha família. Ao todo, oito pessoas foram mortas naquele dia. Um massacre."
Desanclos acredita queesposa e filhas resistiram a uma tentativasequestro e foram baleadas por uma famosa facção chamada 400 Mawazo, que estava expandindo seu território.
"Minha suspeita é que foram eles", diz. Os assassinatos aconteceram nos arredoresuma área chamada Croix des Bouquet, que já estava sob o controle da quadrilha.
Desanclos,fala mansa e roupas elegantes, é advogado e ativistadireitos humanos. Ele agora é um homem desolado — ansiando pelas vozes que nunca mais ouvirá.
"Você está sempre esperando uma ligaçãosua filha dizendo 'papai isso' ou 'papai aquilo'. Perdi o amor da minha vida e as duas filhas que criamos neste país difícil. É como se você fosse um multimilionário erepente, você perde tudo."
Apesar do risco para si mesmo, ele busca justiça paraesposa e filhas.
"A família é uma coisa sagrada. Não lutar por justiça seria traí-los", diz ele. "Minhas filhas sabem que seu pai é um lutador, que nunca abandona ninguém, muito menos a própria família. O risco é enorme, mas o que mais posso perder agora?"
Ele quer que o mundo entenda uma coisa sobre o Haitihoje — que as gangues não têm limites.
"Criminosos tomaram um país como refém", diz ele. "Eles fazem suas próprias leis. Eles matam. Eles estupram. Eles destroem. Gostaria que minhas filhas fossem o último sacrifício, as últimas mulheres jovens mortas."
Ele fala com dignidade e convicção, mas sabe que seu desejo pode não ser atendido.
No Haiti, são as gangues que detêm o poder, e não o Estado. O primeiro-ministro Ariel Henry não consegue nem chegar ao seu escritório porque grupos armados controlam a área. Fizemos vários pedidosentrevista com ele, mas todos foram negados.
'Pedidosocorro'
O governo do Haiti — ou o que sobrou dele — emitiu "um pedidosocorro" para uma força internacional para ajudar a restaurar a ordem.
Fala-se nas Nações Unidas sobre a necessidadeuma força armada não pertencente à ONU, mas ninguém parece ter pressaliderá-la, ou mesmoparticipar.
Intervenções estrangeiras têm má fama e um histórico ruim aqui. A última missão da ONU é lembrada por alegaçõesabuso sexual e por trazer cólera para o Haiti, por meioforçaspaz da ONU do Nepal. A epidemia matou cerca10 mil pessoas.
Existem opiniões distintas aqui sobre a ideiasoldados estrangeiros atuando no país. Há apoioalguns empresários — que usaram grupos armados, mas agora querem que eles sejam controlados — e daqueles presosáreas controladas por gangues. Por outro lado, há oposiçãolíderes da sociedade civil que dizem que o Haiti precisa agir sozinho.
Enquanto a comunidade internacional debate o futuro do Haiti, massacres continuam acontecendo.
Fontes locais dizem que grupos armados estão expandindo brutalmente seu território porque não houve eleições. Quando os políticos vêmbuscavotos —áreas controladas por gangues — têm que subornar os pistoleiros.
A última ondaviolência ocorreu na entrada nortePorto Príncipe30novembro. Segundo a imprensa local, testemunhas oculares dizem ter visto homens armados —uma gangueascensão — tentando se firmar e informaram a polícia.
Os pistoleiros retaliaram à noite, matando pelo menos 11 pessoas. Alguns dos corpos foram carbonizados.
Os limites aqui são mais uma vez redesenhadossangue. Quem mora na cidade precisa atualizar o mapa mental, pois mais uma área está passando do verde para o vermelho.
Colaboraram com esta reportagem Wietske Burema, Göktay Koraltan e André Paultre
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