Guerra na Ucrânia: Putin quer recriar o Império Russo, não a União Soviética, diz biógrafo:
Na conversa, Myers diz o que motiva Putin, o que se sabe sobre seu círculo mais próximo e que cenários podem estar àespera na guerra com a Ucrânia.
Myers, autor da biografia O novo Czar: ascensão e reinadoVladimir Putin, é atualmente editor-chefe da redação do jornal The New York TimesPequim.
BBC News Mundo - Você se referiu a Putin como "alguém que sempre vence", o que você quer dizer?
Steven Lee Myers - Quero dizer que, durante os 22 anosque ele tem estado no poder, houve várias vezesque as pessoas pensaram que este homem não conseguiria sobreviver aos desafios que precisou enfrentar.
Inicialmente, foi a guerra na Chechênia. Em seguida, foi recebido com protestos quando voltou à presidência depoisexercer o cargoprimeiro-ministro. Houve protestosmassa. A certa altura, havia um milhãopessoas nas ruasMoscou. As pessoas diziam: "Como é possível sobreviver a isso?"
Depois, após a anexação da Crimeia2014, a economia russa sofreu muito. O valor do rublo caiu drasticamente e nunca se recuperou. No entanto, Putin conseguiu permanecer no poder e,certa forma, conseguiu seguir sendo uma figura forte.
Então é isso que quero dizer, até agora, Putin conseguiu decepcionar aqueles que têm a expectativaque ele se veja obrigado a deixar o poder.
BBC News Mundo - Como é um encontro cara a cara com Putin?
Myers - Depende muito da pessoa e talvez também das circunstâncias. Quando o conheci, estava cobrindo a Rússia há algum tempo, então eu já estava bastante familiarizado com ele. Ele é muito bompapo, algumas pessoas atribuem isso àcarreira na KGB. Chega às suas reuniões extremamente bem preparado.
É capazse lembrarestatísticas e falar sobre vários assuntos com um níveldetalhe incrível,forma espontânea, sem anotações. É uma pessoa bastante perspicaz, e também pode ser um pouco irritável, temos visto seus ataquesraiva, suas explosões. Ele sempre teve, mas parece que agora tem mais.
Veja o discurso dele alguns dias atrás,que usou palavras como "escória" e "traidores". Este tipolinguagem sempre pontuou seus comentários, mas parece estar mais marcante agora do que antes.
Mas olha, algumas pessoas o conhecem e ficam encantadas com esse estilo, com a forma como se envolve na conversa, faz você se sentir ouvido. Pessoas que o conhecem muito mais do que eu, como Angela Merkel, por exemplo, disseram a Obama durante a crise da Crimeia que Putin viviaoutro mundo.
Um conselheiroMacron disse há alguns dias algo semelhante. Então, eu acho que há essa sensaçãoque Putin é, não digamos delirante, mas que simplesmente vê o mundouma perspectiva diferente das pessoas que lidam com ele.
BBC News Mundo - Há algum evento na infância ou juventudePutin que tenha marcadovisãomundo?
Myers - Há várias coisas... Começo meu livro falando sobre o paiPutin eexperiência na Segunda Guerra Mundial. Ele foi um soldado que lutou no cercoLeningrado, um conflito absolutamente horrendoque milhõespessoas morreram.
A guerra atingiu quase todas as famílias da União Soviética, e isso permanece na memória históricasua cultura até hoje. Acho que,certa maneira, não nos damos contaque o único país que teve um nível semelhantedestruição foi a própria Alemanha.
Ele cresceuuma épocaque a União Soviética começou a prestar homenagem a este esforço. A União Soviética, Stálin, não importa o que você pense deles, derrotaram a Alemanha nazista. É preciso dar crédito a eles por isso.
Acredito que essa experiência, essa mitologiatorno da guerra, é algo com que Putin cresceu e é fundamental para seu caráter. Há também uma história que ele mesmo conta, e não se sabe o quanto dela é verdade.
Ele fala sobre um livro e uma série1968 chamada O Escudo e a Espada. Era uma sérieguerraque havia um personagem que era como um espião infiltrado no exército nazista e que ajudou a vencer a guerra.
Putin adorou a série e disse que ficou tão emocionado que imediatamente tentou se alistar na KGB, mesmo ainda sendo muito jovem. Então, isso fazia partesua ideiaservir a esta grande causa contra os nazistas, que, como temos visto, também faz parteseu discurso na guerrahoje contra a Ucrânia.
BBC News Mundo - O que motiva Putin, o que o move?
Myers - Muita gente pensa erroneamente que Putin está tentando recriar a União Soviética. Acho que não é isso que o motiva.
Acho que ele tem uma obsessão particular pela Ucrânia. Isso tampouco é novidade. Remonta ao inícioseu mandato na presidência e vem à tona sempre que a Ucrânia parece sair da órbita da Rússia.
Não é simplesmente que a Ucrânia vai aderir à Otan. É mais complicado do que isso. Acho que ele vê a Ucrânia literalmente como parte do Estado russo.
Em 2008, Putin disse a George Bush que a Ucrânia nem sequer era um país, e no ano passado ele repetiu isso no ensaio e no discurso que fez como prelúdio deste conflito.
Não acho que ele queira recriar a União Soviética, acho que ele quer recriar algo muito mais antigo: o Império Russo.
Algumas das declarações que ele deu nos últimos dias evocamalguma forma um sensomissão sagrada, para defender o estado sagrado russouma maneira quase religiosa.
As origens da ortodoxia russa remontam ao que hoje é a Ucrânia, e pode-se dizer que o estado russo nasceu a partir da Ucrânia. Portanto, ele não vê a Ucrânia como um país distinto, mas como algo integrado à Rússia.
BBC News Mundo - Você retrata Putin como alguém para quem a estabilidade e a ordem são muito importantes. C omo isso se reflete emmaneiraagir?
Myers - Não pretendo fazer uma análise psicanalítica, mas ele é muito meticuloso. Cuida da alimentação, é abstêmio, se exercita obsessivamente, ou pelo menos costumava ser assim. Não sei como tem sido nos últimos dois anos.
Você vê esse sensodisciplina nele. E outra coisa que me impressionou, embora não seja algo novo, é algo que se viu desde o início: o desdém ou medo que ele senterelação ao que considera o mandato das multidões, ou seja, a democracia.
A democracia pode ser caóticaalguns momentos, envolvendo paixões, disputas e protestos. Mas, emmente, estas são ameaças ao Estado. Ele viveu isso quando era agente da KGB na Alemanha Oriental, e o MuroBerlim caiu enquanto ele estava lá. Uma multidão invadiu as instalações da Stasi (o serviçosegurança estatal da Alemanha Oriental)Dresden, onde Putin estava servindo. Tentaram até ocupar o escritório da KGB onde ele estava naquela noite. Acho que isso o marcou.
Toda vez que você o ouve falar sobre protestos, ele não acha que pode haver uma emoção genuínapessoas que buscam justiça ou tentam fazer com que suas vozes sejam ouvidas.
Ele os vê como rebeldes, como hordas tentando derrubar a ordem estabelecida.
BBC News Mundo - Quem Putin respeita?
Myers - Passei os últimos cinco anos observando a relação entre Putin e Xi Jinping (presidente da China), vendo como esta relação cresce e se aprofunda.
Em umasuas últimas reuniões, me chamou a atenção o quão deferente, inclusive obsequioso, Putin é com Xi, enquantoreuniões com outros líderes ou até mesmo comprópria equipe, Putin é visto com uma postura arrogante, sentado com as pernas abertas e com um olhar acusador.
Barack Obama disse uma vez que Putin se parecia com o típico estudante entediado sentado no fundo da salaaula. E acho que Putin se comportou assim com Obama porque não gostava dele.
Mas você pode realmente ver a diferença com as pessoas que ele respeita, e Xi é definitivamente uma dessas pessoas.
Recentemente, conversei com um analista russo que também acompanhaperto a relação Rússia-China, e ele me disse que, pelo menos até pouco tempo, Putin era respeitoso com Biden. Isso me surpreendeu, dado o quão tensa é a relação.
Mas, fora isso, Putin é conhecido por deixar as pessoas esperando por horas, seja para entrevistas ou reuniõestrabalho importantes. Algumas pessoas dizem que isso faz partesuas táticas psicológicas, não sei, mas é um sinalsua arrogância.
Nas reuniões com Xi, ele é pontual.
BBC News Mundo - Tem havido muita especulação sobre como a pandemia e o isolamento durante estes dois anos podem ter afetado a saúde mentalPutin. Você sabe alguma coisa sobre isso?
Myers - A melhor coisa que li sobre isso é um artigo escrito por Mikhail Zygar. Zygar escreve que desde o início da pandemia Putin nem sequer está hospedado emcasa nos arredoresMoscou, masoutra residência oficial, entre Moscou e São Petersburgo. Faz videoconferênciaslá para evitar o risco do coronavírus.
Mas, neste artigo, Zygar menciona uma das pessoas que tem estado lá com Putin. Ele se refere a Yuri Kovalchuk, umseus amigos próximos, conhecido como "o banqueiroPutin". Kovalchuk faz parte do círculo íntimoPutin, não apenas a nívelgoverno, mas pessoal. Ambos compartilham esta visão quase religiosa da Rússia e do conflito com o Ocidente.
Zygar, como todos nós, especula sobre que tipoconselho Putin está recebendo e o que está acontecendoseu círculo mais próximo, mas me parece bastante persuasivo seu argumentoque Kovalchuk tem sido o único nessa bolha nos últimos dois anos, ou pelo menos um dos poucos a fazer parte dela.
BBC News Mundo - O que se sabe sobrefamília?
Myers - Ele é divorciado, e sabemos muito pouco sobrevida pessoal além disso.
É avô, tem pelo menos dois filhos, e há rumoresque tem outros. Não está claro quanto tempo dedica a passar com eles.
BBC News Mundo - Neste momento, Putin é visto como vilão pelo Ocidente. Há alguma possibilidadeque no Ocidente haja uma visão reducionista ou maniqueísta dele?
Myers - Acho que há uma espéciecaricaturaPutin, quase como se ele fosse um personagemdesenho animado ou um vilãoJames Bond. As pessoas dizem "ah sim, ele foi um agente da KGB" — e, sim, ele foi, mas é apenas uma partesua vida. Ele nunca foi um James Bondserviço. Não era um agente disfarçado, não fazia operações secretas. Era mais um oficialinteligência coletando informações, que é o que a maioria deles faz. Às vezes, sinto que exageramosameaça dessa maneira caricatural.
Dito isto, Putin mostrou claramente disposição para lançar uma grande invasão sobre um país soberano. Isso não acontece com muita frequência sem algum tipojustificativa internacional, para além daquilo que se pensa da guerra no Iraque. Os Estados Unidos e seus aliados usaram um fórum internacional e a lei para justificá-la. Putin não fez nada disso. A última vez que vimos uma invasão como esta foi quando Saddam Hussein invadiu o Kuwait1990.
Então, quando digo que exageramosvilania, não estou tentando subestimar o que aconteceu.
BBC News Mundo - Putin tem algum ressentimentorelação ao Ocidente?
Myers - Acho que o ressentimento e o agravo é o que tem motivado tudo isso. Ele tem a sensaçãoque o Ocidente está tentando manter a Rússia sob controle, e que os EUA estão orquestrando tudo isso para destruí-los e roubar suas riquezas.
Esse tem sido o temasuas declarações durante anos.
No entanto, quando ele chegou pela primeira vez ao poder, houve uma tentativa genuínasua partemanter ou até mesmo melhorar as relações com os EUA e a Europa.
Durante seus dois primeiros mandatos presidenciais, Putin manteve boas relações com Berlusconi na Itália e com o ex-chanceler Gerhard Schroeder na Alemanha,quem se tornou amigo pessoal e que depois foi contratado por uma empresa estatal russa.
Então, nem sempre foi como é agora, mas acho que definitivamente com o caso dos EUA e da Otan, e obviamente toda a coisa da Ucrânia, as revoltas populares e a Revolução Laranja2014, Putin chegou a essa visão sombria do Oeste. Acho que tudo se resume a essa sensaçãoque a Rússia é uma grande potência e que a Otan está simplesmente empenhadadestruí-la.
BBC News Mundo - Se Putin sempre vence, ele pode vencer esta guerra?
Myers - Obviamente não posso fazer previsões, mas é difícil para mim ver como a Rússia pode sair vitoriosa.
Mesmo que consiga conquistar a Ucrânia e instalar um governo e regime militar, parece que não tem os meios para isso.
Mesmo que consiga fazer isso, ainda terá que enfrentar o isolamento e a condenação mundial que enfrenta hoje.
Muita gente diz que a China está do lado dele, e é verdade que a China não está criticando a invasão, mas a China não está confortável com essa situação.
Ele está encurralado, e há sinaisque ele está procurando uma maneirasair disso. É difícil imaginar, dadas as consequências, não apenas para ele, mas para toda a Rússia, que ele possa triunfar.
BBC News Mundo - Como você acha que Putin quer ser lembrado?
Myers - Acho que ele gostariaser visto como o homem que devolveu a grandeza à Rússia.
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