Como fome vivida no útero e na infância prejudica o corpo por décadas:
Alguns estudos estimam que cada holandês dispunhacomida equivalente a 370 calorias por dia — lembrando que as normassaúde vigentes hoje sugerem a ingestão diária2 mil calorias por dia para mulheres e 2,5 mil para homens.
Foi um dos mais graves episódiosfome ocorridos durante a Segunda Guerra Mundial, que deixou 20 mil mortos e só terminou com a derrota da Alemanha,maio1945, e a libertação da Holanda.
É um desastre que permanece na memória coletiva dos holandeses até hoje, explica à BBC News Brasil a pesquisadora Tessa Roseboom, professoraDesenvolvimento e Saúde na Primeira Infância na UniversidadeAmsterdã.
"A memória coletiva do povo holandês sobre a Segunda Guerra é dramática", relata. "Claro que os númerossobreviventes estão diminuindo, mas todos conhecemos históriaspessoas que tiveramcomer bulbostulipa, que tiveram que andar centenasquilômetros para achar comida."
Ao mesmo tempo, o fatoa fome extrema ter ocorrido apenas durante um breve intervalotempo (a escassez acabou quando o abastecimentocomida foi normalizado, e a Holanda caminhou para ser um país extremamente próspero) deu aos cientistas um cenário ideal para estudar o que a faltanutrientes faz com o corpouma pessoa —particular, uma pessoa aindaformação, dentro do útero da mãe.
E as pesquisas sobre o "inverno da fome" (ou hongerwinter, no original) mostram que as consequências são sentidas até hoje por pessoas que estão na casa dos 70 e 80 anos, e provavelmente serão sentidas por seus descendentes.
Mais problemassaúde física e mental
Roseboom e seus colegas coletaram,arquivos históricos, registros médicos detalhados sobre mulheres que estavam grávidas durante o períodoescassez e, desde então, estão analisando a saúde física e mental dos filhos dessas mulheres, hoje idosos.
Essas pessoas apresentam maior incidênciaobesidade,colesterol alto,diabetes tipo 2 eproblemas cardiovasculares do que a população holandesageral, "riscos que contribuem para menos bem-estar físico e mental e mais riscomortalidade nesse grupo", aponta a pesquisadora.
Um motivo provável é que essas pessoas tiveram seus corpos "programados" desde o útero para sobreviver com muito pouca comida. Ao longo do tempo, isso se converteuum problemasaúde.
"Encontramos diferenças clarastermosestrutura e tamanho do corpo, e achamos que isso se deve à falta'blocosmontar' — ou seja, da má nutrição —suas mães quando elas estavam construindo o corposeus bebês", explica Roseboom.
Além disso, ela diz que examesressonância magnética feitos nessas pessoas indicam que seus cérebros são menores, o que pode explicar por que eles parecem ter um desempenho piortarefas cognitivas.
Emodo geral, o cérebro dessas pessoas parece "envelhecer mais rápido", acrescenta a pesquisadora.
Fome no Brasil e no mundo
As consequências observadas na Holanda se referem a um período histórico único e extremo, mas servemalerta quanto aos impactos que a faltanutrientes tem na saúdelongo prazo das pessoas,particular fetos e crianças — ecomo isso pode prejudicar a forçatrabalho futuraum país, explica Roseboom.
Isso vale inclusive para países como o Brasil, onde 19 milhõespessoas estavam, no final2020,situaçãoinsegurança alimentar (quando o acesso e a disponibilidadealimentos são escassos), segundo cálculos da RedePesquisaSoberania e Segurança Alimentar e Nutricional.
"Primeiro, o estresse da pandemia impacta crianças já no útero, e sabemos isso a partirpandemias passadas. A gripe espanhola1918, por exemplo, deixou marcas duradouras nas crianças que ainda não haviam nascido. Sabemos que eles tiveram risco mais altodoenças cardiovasculares e participação mais baixa no mercadotrabalho", aponta Roseboom.
"A restrição ao acesso à comida no Brasil neste momento pode muito bem ter consequências negativas, principalmente para crianças no útero. Vimos isso na Fome Holandesa, mas também foram observados efeitos similaresoutros momentos nos quais houve restriçãocomida", comoperíodos gravesfome na China, na Irlanda ou no continente africano como um todo, diz ela.
"Então, como isso não teria um efeito similar nas crianças brasileiras?"
Diante desse cenário, Roseboom argumenta que, quando se protege a infância e se garante que grávidas, bebês e crianças recebam nutrição saudável, produz-se um benefício para toda a sociedade, que contará com adultos mais produtivos e com menos problemassaúde. "É impressionante ver como os cérebros (de pessoas gestadas sob a fome) são menores, fazem menos conexões, têm profusão cerebral mais pobre para tarefas cognitivas. A escassezcomida não afeta só a saúde física futura, mas como essas crianças vão se sair na escola, como conseguirão contribuir para o mercadotrabalho."
"Nesse sentido, há um importante efeito econômico a ser considerado. Se as crianças tiverem a pobreza incrustadaseus cérebros, quase literalmente, jamais conseguirão contribuir com seu (potencial) máximo. É um problema que a sociedade inteira vai enfrentar se uma geração ficar desprotegida. O legado é mais longo, com um preço mais alto a ser pago."
De geraçãogeração
Outros pesquisadores que se debruçaram sobre os efeitos do "inverno da fome" holandês observaram impactos semelhantes aosRoseboom nos filhos das mulheres grávidas naquela época,particular as que estavam no início do períodogestação.
Estudos realizados por acadêmicosuniversidades dos Estados Unidos e da Holanda, por exemplo, identificaram que a taxamortalidadequem foi gestado durante a fome era 10% maior do que quem havia nascido antes ou depois daquele inverno.
Riscos maioressobrepeso, colesterol alto e esquizofrenia também foram identificados por esses pesquisadores, e uma teoria por trás disso é que a privaçãonutrientes pode ter "silenciado" alguns genes que participam do processoqueimagordura no corpo.
Roseboom também suspeita que haja impactos genéticos, os quais podem inclusive já terem sido passados adiante para os descendentes dos bebês do "inverno da fome".
"A evidência não é tão forte quanto a que observamos nos bebêssi, masfato vemos indíciosque a geração seguinte também se sente menos saudável, é mais obesa e tem uma saúde pior", explica.
Impactocrianças
Embora os estudos do "inverno da fome" tenham focado principalmente nas mulheres grávidas e seus bebês, considerados o grupo mais vulnerável naquele período, Roseboom afirma que suas demais pesquisas indicam que crianças também têmsaúde bastante prejudicadas por períodosfome.
"Na fome holandesa, sabemos pelos registros que as crianças foram relativamente mais protegidas (do que adultos): as que tinham menosum ano recebiam porçõescomidamais1 mil calorias por dia. E você pode perguntar: isso é suficiente? E será que comer (apenas) bulbostulipa e batatas seria bom para crianças pequenas? Duvido. Mas o governo tentou muito proteger as crianças o máximo possível", relata. "Mas há outros estudos que investigam o impactocrianças, e estive envolvidaalguns deles. Também vimos efeitos negativos na saúde."
No Brasil, havia,2019, segundo levantamento da Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança, ao menos 9,1 milhõescriançasaté 14 anossituação domiciliarextrema pobreza, o que provavelmente significa que estavam sob insegurança alimentar — um problema que se agravou com a pandemia, o desemprego e a inflação.
Um relatório da AssociaçãoPsicologia dos EUA aponta que a insuficiênciacomida está associada,crianças, a mais doresestômago ecabeça e a mais resfriados. "E a fome severa antecipa doenças crônicas entre criançasidade pré-escolar e escolar", diz o texto.
Além disso, viver sob a insegurança alimentar pode causar estresse tóxico, que porvez "afeta o desenvolvimento cerebral, o aprendizado, o processamentoinformações e os resultados acadêmicos das crianças".
Ainda assim, é nos bebês no útero que os malefícios são piores, diz a pesquisadora holandesa: "É (durante a gravidez) que todos os órgãos estão sendo formados. Se eles forem construídos com blocos menores e mais pobres, não surpreende que haja consequênciaslongo prazo para a resistência aos estresses da vida cotidiana".
Os efeitos disso podem ser mitigados ao longo da vida, mas são persistentes, ela agrega.
"O coração terá menos células musculares, os rins terão menos unidadesfiltragem, o cérebro terá menos neurônios. (...) À medida que a idade avança, você fica mais suscetível a problemas. Claro que pode-se consertar um pouco disso — um bebê desnutrido pode receber muita comida saudável, atividades e estímulos e minimizar os efeitos, mas reverter completamente não é possível, porque você não consegue construir seu coração do zero outra vez."
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