Por que agricultores brasileiros estão deixandoplantar feijão — e o que isso tem a ver com a fome:

Sacos com vários tiposfeijão

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Legenda da foto, Pesquisa sobre feijão 'parou no tempo', diz agrônomo

Em paralelo, os grandes investimentos feitos pelo setor privado no melhoramentosementes, por exemplo, aumentaram a produtividade da commodity. Assim, alémmenos arriscada, ela é mais rentável, especialmentemomentos como o atual,que o dólar está nas alturas.

"O pessoal não pensa duas vezes, vai plantar soja mesmo", completa o agrônomo. E isso vale não apenas para as grandes propriedades. Em Capão Bonito, fazendas consideradas pequenas, com 10 ou 15 hectaresárea, também têm dado preferência ao produto.

A concorrência

No restante do país, não é muito diferente. Nos 44 anos que separam a safra 1976/77 da2020/21, a área plantadafeijão encolheu 35% no Brasil,4,9 milhõeshectares para 2,9 milhõeshectares, conforme a série histórica da Companhia NacionalAbastecimento (Conab).

Os ganhosprodutividade não chegaram a compensar a redução da área plantada, e o nívelprodução hoje é bem próximo do daquela época, apesar do crescimento expressivo da população. Outros gêneros básicos, como o arroz, têm histórias parecidas.

Em paralelo, a área plantadasoja cresceu mais5 vezes, ou 460%,6,9 milhõeshectares para 38,9 milhõeshectares. Amilho quase dobrou, passando11,7 milhõeshectares para 19,9 milhões.

Série históricaárea plantada. Em mil hectares.  .

"O feijão compete com cadeias produtivas mais organizadas", diz Marcelo Lüders, presidente do Instituto Brasileiro do Feijão e Pulses (Ibrafe), com sede no Paraná, um dos Estados que hoje concentra a produção do grão no país, ao ladoMinas Gerais, Mato Grosso e Bahia.

"Soja e milho são negociados lá fora, têm preço futuro já fixado, o produtor já sabe qual vai ser seu custo. Existe toda uma cadeiaempresas multinacionais e nacionais que fomentam e auxiliam a produção, com acesso a defensivos, fertilizantes, financiamento", reitera.

Silossoja e plantação

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Legenda da foto, Valorização da cotação da soja e dólar alto tornam a commodity cada vez mais rentável aos produtores

O PF mais caro

A redução da área plantada e a consequente estagnação da produção ajudam a explicar por que o prato feito do brasileiro encareceu tanto nos últimos meses.

"Arroz e feijão são dois alimentos essenciais na dieta dos brasileiros. Como a quantidade produzida hoje é muito próxima da tendênciaconsumo, qualquer alteraçãosafra, vulnerabilidade climática gera instabilidade", avalia Catia Grisa, professora dos programaspós-graduaçãoDesenvolvimento Rural e Dinâmicas Regionais e Desenvolvimento da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Nos últimos anos, o país vem desmontando uma sériepolíticassegurança alimentar e nutricional que poderiam ser usadas para tentar amortecer os aumentospreços aos consumidores, diz o agrônomo José Graziano da Silva, que dirigiu a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) entre 2012 e 2019.

"A FAO recomenda que um país tenha pelo menos três mesesestoque dos seus produtos básicos, especialmente daqueles produtos que sejam sensíveis a quebrassafra e que tenham dificuldadeimportação, que é o caso do feijão - e nós temos zeroestoque", Graziano.

Conforme os dados da Conab, os estoques públicosfeijão foram reduzidos substancialmente2016 e estão completamente zerados desde 2017.

Estoques públicosfeijão. Em mil toneladas.  .

Com a produção "no limite" e sem estoques públicos, o país passa a depender cada vez mais das importações. Na prática, sem "amortecedor", os choquespreços são repassadosforma muito mais direta aos consumidores.

Para a pesquisadora Catia Grisa, a "crise do arroz" no ano passado é um exemplo didático nesse sentido. Diante da disparada nos supermercados, não restaram muitas alternativas a não ser reduzir as tarifasimportação para tentar frear os preços.

O coordenador da pesquisa das projeções do Agronegócio do Ministério da Agricultura, José Garcia Gasques, pontua que hoje o Brasil não corre riscoreviver as cenasdesabastecimento que marcaram os anos 1970 e 1980, mas admite que os brasileiros hoje estão sujeitos às oscilaçõespreços — e o feijão é um dos gêneros básicos com preços mais voláteis, diz o agrônomo.

O remédio? "Uma políticaestoques bem feita", ele avalia. "Atravésestoques, sem fazer intervenção, ele (o governo) vai regularizando o mercado. Quando falta, ele coloca um poucoproduto, e por aí vai."

Lüders, do Ibrafe, critica a política cada vez mais apoiada nas importações.

"Eles não gostam que a gente faledesabastecimento, mas a que preço (estamos mantendo o mercado interno abastecido)?", opina.

"Se as classes menos favorecidas estão comendo menos feijão, o que estão comendo? Mais bolacha e macarrão? O feijão é uma das proteínas vegetais mais baratas que existem. É uma das últimas barreiras contra a fome."

Do Rio Grande do Sul ao Piauí

O avanço da soja vem transformando as paisagens rurais do Brasilnorte a sul. No Rio Grande do Sul, exemplifica Catia Grisa, a commodity vem tomando o lugar das pastagens nativas na região do pampa.

"Até no litoral norte, onde até pouco tempo não se via soja, a gente já encontra produção."

No Estado, a soja também tem entrado nas pequenas propriedades que tradicionalmente se dedicavam ao cultivogêneros básicos e abasteciam o mercado interno. Essa substituição, diz a pesquisadora, tem se dado inclusive com a ajuda nas linhascrédito rural disponibilizadas pelo governo federal.

Entre 2017 e 2018, cerca40% dos recursos do custeio agrícola do Programa NacionalFortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) foram direcionados para a soja. Apesaro Pronafteoria fomentar o cultivocerca125 produtos, 74% do custeio agrícola se concentraapenas três: soja, milho e café.

O cenário é bem diferente no Norte e Nordeste do país, como relata o professor da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA) Raoni Azerêdo, que pesquisa o modelo agrário da região hoje conhecida como Matopiba. O acrônimo reúne as siglasquatro Estados — Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia — e é considerada uma das mais recentes fronteiras do agronegócio no país.

"No Matopiba, a produção sojícola égrandes propriedades, que a agricultura familiar não toca", diz ele.

"Isso tem impactos profundos, tanto do pontovista legal da terra — a terra passa a ser disputada e o conflito fundiário aumenta —, quanto na questão do desmatamento, do uso dos agroquímicos, que acaba tendo interferência direta no plantio da agricultura familiar, com recebimento das nuvensagroquímicos, das próprias pragas que vão pras comunidades."

O efeito da expansão da commodity na região, segundo o pesquisador, tem sido a redução do espaço da agricultura familiar camponesa, com a consequente migraçãomuitas pessoas das áreas rurais para as cidades.

Arroz e feijão

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Legenda da foto, Inflaçãoalimentos impacta especialmente famílias mais pobres

Mais uma 'década da soja'

A dinâmica atual deve se estender pelo menos pelos próximos dez anos, conforme as projeções oficiais do Ministério da Agricultura. A expectativa é que, entre a safra2020/21 e a2030/31, a área cultivada da soja vai se expandir outros 26,8%, chegando a ocupar 48,8 milhõeshectares.

O feijão, porvez, seguiria perdendo espaço. É a cultura com maior redução estimadaárea, 1,048 milhãohectares na próxima década. O arroz estásegundo lugar, com perda1,046 milhãohectares.

José Garcia Gasques, coordenador da pesquisaprojeções do Ministério da Agricultura, argumenta que as pesquisas domiciliares do IBGE vêm apontando nos últimos anos uma redução no consumofeijão e um aumento do consumoalimentos ultraprocessados. As pessoas estão se alimentando mais foracasa, diz ele, e o feijão "não étão fácil confecção". Isso tudo, emavaliação, explica porque a produção vem diminuindo.

Além disso, acrescenta o agrônomo, a demanda por arroz e feijão seria inelástica — ou seja, o consumoambos não aumenta quando a renda das famílias cresce. Seria uma dinâmica diferente das carnes, que os consumidores compram mais quando o poder aquisitivo melhora.

Para José Graziano, por outro lado, o argumentoque a área plantada diminuiu porque os brasileiros têm consumido menos gêneros básicos "inverte a relaçãocausalidade".

"A economia nos ensina que, quando os preços sobem, reduz-se o consumo. E essa é a relação causal: um aumentopreços e uma redução do consumo", defende ele, que liderou o Ministério ExtraordinárioSegurança Alimentar e Combate à Fome entre 2003 e 2004, no primeiro governo Lula.

Para ele, a políticacombate à fome, que hoje atinge quase 20 milhõesbrasileiros, deveria contemplar o fortalecimento da produção agrícola para o mercado interno — uma tentativafrear a inflação elevada dos preçosalimentos, que há maisum ano é superior à inflação média.

Fomentar a produção agrícola para alimentar os brasileiros, porvez, passa por um maior apoio à agricultura familiar, que vá bem além do crédito rural, acrescenta a professora Catia Grisa. A pesquisadora aponta especialmente a necessidadese ampliar as assistências técnicas e extensões rurais (conhecidas pela sigla ATER), que vêm sofrendo sucessivos cortesorçamento nos últimos anos.

O professor Raoni Azerêdo destaca a importância da pesquisa, que hoje "prioriza poucos produtos voltados para exportação".

A observação do pesquisador encontra ecosCapão Bonito, onde agrônomo Nélio Uemura viu a produtividade da soja dar um salto nas últimas duas décadas,algotorno50 a 60 sacas por hectare para as atuais 80 sacas por hectare, enquanto a produtividade do feijão se manteve estacionada no mesmo patamar, entre 40 e 60 sacas por hectare.

"A pesquisa com feijão parou no tempo", diz ele.

Mais exatamente no tempo do agrônomo Jairo LopesCastro, hoje aposentado, mas que foi responsável pela Estação ExperimentalCapão Bonito, ligada ao Instituto AgronômicoCampinas (IAC), até 2004.

Castro se mudou para o município1977, quando o feijão ainda tinha "grande expressão econômica na região", e por maisduas décadas organizou o DiaCampoFeijãoCapão Bonito,que ele e os demais pesquisadores apresentavam a produtorestodo o país inovações no cultivo da leguminosa.

Hoje, diz ele, além da concorrência da soja, que se tornou o foco principal das pesquisas, a faltarecursos também é um gargalo para que o feijão seja mais estudado, para que se desenvolvam novas variedades, se façam melhoramentos genéticos que ajudem a controlar pragas, para que se criem novas técnicasadubação.

"De um modo geral, os recursos não têm sido como antigamente, mesmorelação às pessoas. As unidades estão com um número bem pequenofuncionários. Eu cheguei a trabalhar com quase 50 funcionários, hoje Capão Bonito está quase com 10."

"Pesquisa é tudo. A gente está vendo agora com as vacinas, né?"

Colheitasoja no Mato Grosso

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Legenda da foto, Área plantada da soja deve aumentar quase 30% na próxima década, conforme projeções oficiais

Questionado pela reportagem sobre a atual políticacombate à fome, o Ministério da Cidadania citou políticastransferênciarenda como o Programa Bolsa Família e o Auxílio Brasil, que entravigor no próximo mês; programascompras públicasgêneros cultivados por produtores da agricultura familiar para lhes "garantir uma renda mínima" (Alimenta Brasil), aléminiciativasdoaçãocestas básicasparceria com o setor privado (Brasil Fraterno).

A pasta destacou ainda a reconstituição, no último mêsjunho, da Câmara InterministerialSegurança Alimentar e Nutricional (Caisan), formada por nove ministros, com o objetivo"promover a integração da administração pública, viabilizando a inter-setorialidade das políticas sociais relacionadas ao tema, entre as quais as iniciativascombate às perdas e ao desperdícioalimentos".

A Caisan foi criada2007 como parte do Sistema NacionalSegurança Alimentar e Nutricional (Sisan). Desde o início da gestão Bolsonaro, contudo, não fazia reuniões.

Um componente importante do Sisan e que atuavaparalelo ao Caisan, o Conselho NacionalSegurança Alimentar e Nutricional (Consea), criado1993, foi extinto pela MP 870, publicada no dia da posse,1ºjaneiro2019. A medida foi criticada na época pelo representante da FAO no Brasil, Rafael Favala, que ressaltou que o conselho teve papel fundamental no combate à fome nos últimos 15 anos. O Consea segue desativado.

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