Como cidade americana vai usar impostos sobre maconha para financiar reparações a moradores negros:

Loretta Johnson reza na Faith Temple Church,Evanston, Illinois

Crédito, AFP

Legenda da foto, Evanston, no EstadoIllinois, vai distribuir US$ 10 milhões a moradores negros ao longodez anos

Cada família receberá subsídiosUS$ 25 mil (cercaR$ 142,7 mil) para ajudar na compra ou reformaimóvel.

Apesartambém aceitar doações, a iniciativa será financiada principalmente com impostos sobre a vendamaconha para uso recreativo, que foi legalizada no Estado no ano passado.

"Isso é justiça poética", diz à Ron Daniels, um dos líderes da National African American Reparations Commission (Comissão Nacional Afro-AmericanaReparações, ou Naarc, na siglainglês), à BBC News Brasil.

"Porque a guerra às drogas, incluindo a maconha, teve como alvo a população negra", afirma Daniels, cuja organização participou da elaboração do plano.

Historiador mostra foto antigaestudantesEvanston

Crédito, REUTERS/Eileen T. Meslar

Legenda da foto, Americanos negros representam 13% da população, mas detêm apenas 2,6% da riqueza no país

A legalização da maconha vem avançando nos Estados Unidos, onde 36 dos 50 Estados permitem o uso medicinal e 15 também o uso recreativo. Dados históricos mostram o impacto negativo que a criminalização tevecomunidades negras.

Kamm Howard, um dos líderes da National Coalition of Blacks for Reparations in America (Coalizão NacionalNegros por Reparações na América, ou N'Cobra, na siglainglês), que também ajudou a elaborar o planoEvanston, cita estudos segundo os quais, apesarnegros e brancos usarem maconha na mesma proporção, a probabilidadeusuários negros serem detidos é mais alta.

"(Moradores negros) foram mais policiados e mais encarcerados e sofreram todos os prejuízos associados a ter uma ficha policial", diz Howard à BBC News Brasil.

Desigualdades econômicas

O anúncio sobre o programaEvanston ocorreum momentoque o debate sobre reparações volta a ganhar força no país.

O interesse, que já vinha crescendo, aumentou ainda mais no ano passado,meio a protestos contra injustiça racial e diante da pandemiacovid-19 e da crise econômica, que afetaram desproporcionalmente a população negra e deixaram claras as disparidades raciais.

Mas a ideiaque o governo deveria pagar compensação financeira à população negra pelos danos causados pela escravidão é debatida nos Estados Unidos desde pelo menos o fim da Guerra Civil,1865,alguns períodos com maior ênfase do queoutros.

O impacto cumulativodois séculos e meioescravidão e das décadassegregação, terror racial e políticas discriminatórias que se seguiram é visíveldesigualdadesrenda e riqueza que ainda persistem. Apesaros americanos negros atualmente representarem 13% da população, eles detêm apenas 2,6% da riqueza no país.

Enquanto pessoas brancas podiam comprar terras e, assim, deixa-lasherança a seus descendentes, a população negra escravizada não tinha esse direito. Mesmo após a abolição, diversas leis impediam ou dificultavam que americanos negros votassem, estudassem, tivessem acesso a bons empregos e a financiamento ou adquirissem propriedade.

Em Evanston, onde cerca16% dos 75 mil habitantes são negros, os idealizadores do planoreparações decidiram focar inicialmentemoradia após um relatório detalhado sobre as restrições históricas à população negra da cidade nesse setor e depoisconsultas com a comunidade.

"O objetivo é tentar diminuir as desigualdadesriqueza", ressalta Daniels.

Um cartaz do Black Lives Matter (vidas negras importam)Evanston, Illinois

Crédito, REUTERS/Eileen T. Meslar

Legenda da foto, Dezesseis moradores negros cujas famílias tenham sido afetadas por políticashabitação racistasvigor na cidade entre 1919 e 1969 serão beneficiados

Assim como outras cidades americanas, Evanston tem um passadopolíticaszoneamento e práticas discriminatórias na áreahabitação que dificultavam ou até impossibilitavam que moradores negros comprassem imóveis.

A partir do início do século 20, muitas cidades americanas passaram a adotar medidas para impedir que moradores negros se mudassem para determinadas áreas. Era comum a inclusãocláusulasrestrição racial nas escrituraspropriedades, estabelecendo que pessoas que não fossem brancas não poderiam ser proprietárias ou nem mesmo ocupar o local.

Proprietáriosáreas onde a maioria da população era branca também costumavam se recusar a vender imóveis a compradores negros. Além disso, a população negra não tinha o mesmo acesso a financiamento habitacional disponível a pessoas brancas.

Com essas e outras restrições, moradores negros acabavam impedidosadquirir propriedade nas áreas mais valorizadas e, assim,acumular riqueza por meio da posseimóveis. Décadas após o fim dessas leis, o valor das casasbairrosmaioria branca ao redor do país ainda é maior do que nas áreasmaioria negra.

Em Evanston, o relatório elaborado a pedido das autoridades revelou que, apesar da lei1968 proibindo discriminação no setorhabitação, até pelo menos meados dos anos 1980 corretoresimóveis ainda tentavam fazer com que compradores e inquilinos negros ficassem concentradosbairrosmaioria negra.

O patrimônio líquido das famílias negras nos Estados Unidos representa hoje menos15% do patrimônio líquido das famílias brancas. Segundo dados do censo relativos a 2020, enquanto 74% das famílias brancas têm casa própria, essa taxa éapenas 44% entre as famílias negras.

Críticas

O programaEvanston seria uma formareparar os danos provocados por essas políticas discriminatórias no setorhabitação, ajudando a preservar e aumentar o número proprietáriosimóveis negros e a gerar riqueza nessa comunidade por meiomoradia. Mas a iniciativa também sofreu críticas.

A proposta foi aprovada por oito votos contra um. Ao justificar seu voto contrário, a vereadora Cicely Fleming ressaltou que apoia as reparações, mas não o programa proposto, que descreveu como um "planohabitação disfarçadoreparações".

Uma das críticas é o fatoos beneficiados não poderem escolher como querem gastar o dinheiro, que é distribuído sob a formasubsídios para investimentoshabitação. Outros criticam o alcance ainda pequeno, com apenas 16 famílias contempladas inicialmenteum universo12 mil moradores negros na cidade.

O economista William Darity Jr., professor da Duke University, na Carolina do Norte, e coautor do livro From Here to Equality: Reparations for Black Americans in the Twenty-First Century ("Daqui à Igualdade: Reparações para Americanos Negros no Século 21",tradução livre), critica o uso do termo "reparações"iniciativas locais como aEvanston.

Samuel Johnson III embarbeariaFifth Ward, comunidade negra históricaEvanston, Illinois

Crédito, REUTERS/Eileen T. Meslar

Legenda da foto, Em Evanston, cerca16% dos 75 mil habitantes são negros

Segundo Darity, medidasnível local e estadual não constituem um plano amplo e verdadeiroreparações, que deve ter alcance nacional. Em artigo no jornal The Washington Post, ele disse que o uso do termo "reparações" pode gerar confusão sobre "a extensão do que é necessário para uma restituição genuína".

"Esta é uma boa medida para a cidade adotar, mas sejamos claros: é um programavouchers para habitação, nãoreparação, e chamá-lo assim prejudica mais do que ajuda", afirmou.

Daniels rejeita essas críticas e ressalta que o programaEvanston foi certificado pela Naarc como um modeloreparações. Ele destaca que foi a própria comunidade, após vários encontros públicos, que escolheu o foco inicialhabitação, e lembra que outros setores serão contemplados ao longo dos próximos dez anos.

Para Daniels, iniciativas locais, como aEvanston, não afetam a criação e implementaçãoum plano nacionalreparações. "Uma não exclui a outra. Pelo contrário, são complementares", afirma.

Howard, da N'Cobra, lembra que não apenas o governo federal, mas também Estados e municípios foram responsáveis no passado por políticas discriminatórias que tiveram impacto negativo sobre a população negra. Portanto, os três níveisgoverno deveriam adotar medidas para remediar os danos causados.

"Todas as jurisdições neste país que foram cúmplices nos crimes contra a nossa humanidade devem ser responsabilizadas", afirma Howard.

A vereadora Robin Rue Simmons, autora da propostaEvanston, descreveu a iniciativa como "um primeiro passo" e observou que o plano sozinho não é suficiente e que são necessários muitos programas e mais financiamento até que se possa reparar as injustiças raciais.

Modelo

Apesar do interesse renovado nos últimos anos, o tema das reparações financeiras a americanos negros ainda é polêmico.

Pesquisa Ipsos do ano passado indica que só 33% dos entrevistados concordam que o governo deveria fazer pagamentosdinheiro a pessoas negras cujos antepassados foram escravizados. Mesmo entre a população negra, 20% são contra.

Entre os especialistas que apoiam a ideia, não há consenso sobre como e quanto pagar ou como definir quem teria direito. Alguns propõem pagamentos diretosdinheiro, para que os beneficiados usem como desejarem.

Muitos citam como exemplo as reparações pagas às vítimas do Holocausto pela Alemanha ou aos nipo-americanos enviados ilegalmente a camposconcentração durante a Segunda Guerra Mundial pelos Estados Unidos.

Darity diz que reparações "verdadeiras" devem ter como objetivo acabar com a desigualdaderiqueza entre a população negra e branca e calcula que seriam necessários US$ 14 trilhões (cercaR$ 79,9 trilhões), distribuídos pelo governo federal sob a formapagamentos diretos a cada americano negro descendentepessoas escravizadas nos Estados Unidos.

Fotospoliciais ao lado do ex-presidente Barack Obamauma barbeariaEvanston

Crédito, REUTERS/Eileen T. Meslar

Legenda da foto, Após a abolição, diversas leis impediam ou dificultavam que americanos negros votassem, estudassem, tivessem acesso a bons empregos e a financiamento ou adquirissem propriedade

Outros defendem reparações por meioinvestimentosprogramassaúde, educação, emprego, habitação e outras áreas com grandes disparidades. Algumas cidades, como Asheville, na Carolina do Norte, já aprovaram a criaçãocomissões para estudar medidas do tipo, que descartam pagamentosdinheiro a beneficiados.

Outras cidades e instituições privadas também vêm anunciando diferentes planosreparação recentemente. No ano passado, a Califórnia se tornou o primeiro Estado a sancionar uma lei que abre caminho para reparações pela escravidão, determinando a criaçãouma força-tarefa para estudar e desenvolver propostas sobre o tema.

Apesaro programaEvanston ter recebido algumas críticas, especialistas ressaltam a importânciauma cidade reconhecer seu papelpolíticas discriminatórias que prejudicaram a população negra e afirmam que a iniciativa pode inspirar e servirmodelo para outros governos.

"Cada propostareparações precisa tratar das necessidades (específicas) daquela comunidade", diz à BBC News Brasil, a vice-diretora do programaEstados Unidos da organizaçãodireitos humanos Human Rights Watch, Laura Pitter.

"Essas necessidades vão variaracordo com os danos feitos e com o que precisa ser reparado (em cada comunidade), mas a iniciativaEvanston pode ser um modelo para outras ao redor do país."

Desde 1989, o projetocriar uma comissão federal para estudar o legado da escravidão e elaborar propostasreparação é apresentada todos os anos ao Congresso, mas até hoje nunca foi adiante. Em 2019, pela primeira vez, a Câmara dos Representantes (equivalente à Câmara dos Deputados) realizou audiência para discutir o tema.

Em janeiro deste ano, a proposta foi reapresentada pela deputada Sheila Jackson Lee e já tem o apoiomais170 congressistas, além da presidente da Casa, Nancy Pelosi, e do líder do Senado, Chuck Schumer. O próprio presidente Joe Biden disse, quando ainda era candidato, que apoiaria a realizaçãoestudos sobre o assunto.

Daniels e outros defensoresreparações demonstram otimismo com o aumento no apoio a um projetolei nacional e acreditam que o cenário atual é mais propício a uma proposta do tipo.

"É preciso entender que (os debatestornoreparações) não são sobre simplesmente dar um cheque para cada um e encerrar o assunto, mas sim sobre forjar uma nova América", afirma Daniels. "São sobre fazer esta nação enfrentar ahistória, e reparar ahistória."

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