'O diaque a polícia americana apontou armas contra mim':
Anotaram meus dados num caderninho, pediram desculpas ("Estamos só fazendo nosso trabalho, espero que entenda") e foram embora.
Quando contei para minha mãe, a primeira reação dela foi perguntar se eu estava cabeludo e barbudo naquele dia. E sim, eu estava.
Meu cabelo é preto, grosso e cresce para cima. Quando viajo por países árabes ou do norte da África, sou percebido como local até abrir a boca. Para minha mãe, esses traços se acentuam quando estou com barba e cabelo compridos.
Lembrei disso ao entrevistar na sexta-feira um latino que é professorrelações raciais na Universidade LoyolaChicago, Juan Perea.
Perguntei por que há menos apoio entre os latinos do que entre os brancos ao movimento Black Lives Matter (vidas negras importam), que combate a violência policial contra os negros e ganhou projeção internacional. Segundo o Pew Research Center, 33% dos latinos nos EUA simpatizam com o movimento. Entre os brancos, são 40%.
Ele citou duas hipóteses: primeiro, os latinos, muitos deles imigrantes ou filhosimigrantes, ainda não conhecemdetalhes a história da violência sofrida pelos negros nos EUA.
E segundo: todos no país estão sujeitos a uma "força gravitacionaldireção à brancura". Por essa dinâmica, latinos que não são vistos nem como brancos nem como negros tendem a pender para o primeiro campo, disfarçando alguns traços físicos ou reprimindo comportamentos (como falar português ou espanholpúblico).
Ao agir assim, são recompensados. Latinospele mais clara conseguem até passar por brancosalgumas circunstâncias, diz ele.
Quando minha mãe perguntou se eu estava barbudo e cabeludo, ela inconscientemente queria saber para qual lado eu estava pendendo.
Depois do episódio, cortei o cabelo e aparei a barba. Foi impressionante notar como no parqueque passeio com meu cachorro alguns americanos brancos que me ignoravam passaram a me cumprimentar.
Sei que jamais me viram como "white" (branco), mas certamente havia me tornado menos "brown" (marrom - o conceito que abriga a maioria dos não negros e não brancos nos EUA). Fui recompensado por pender para a brancura - um privilégiopessoas que estão nessa zona cizenta.
A mesma lógica, imagino, vale para o Brasil, ainda que lá eu esteja fora dessa zona e seja sempre visto como branco, mesmo barbudo e cabeludo.
Saí ileso da abordagem, mas me pergunto o que teria ocorrido se tivesse feito algum gesto brusco. Teriam atirado? No início, não sabia nem que os homens eram policiais.
Também fiquei me perguntando se eu teria sido abordado se fosse um americano branco. Ou sefato fui descuidado ao deixar barba e cabelo crescerem.
Vejam como o sistema é perverso: sem perceber, você passa a se culpar por simplesmente ser quem é. Minha barba e meu cabelo cresceram porque barbas e cabelos crescem.
Mas principalmente me perguntava o que teria acontecido se eu fosse negro. Em 2015, 37% das pessoas desarmadas mortas pela polícia americana eram negras, embora negros sejam só 13% da população.
Na semana passada, dois negros desarmados tiveram suas mortes gravadas e divulgadas pelo Facebook - Philando Castile,Minesotta, e Alton Sterling,Lousiana. Os casos alimentaram ainda mais o debate sobre violência policial contra os negros e geraram uma nova ondaprotestos pelo país.
Num deles,Dallas, um atirador negro (Micah Johnson, 25 anos) matou cinco policiais e foi mortoseguida. Segundo a polícia, quando foi cercado pelos agentes, Johnson disse que queria matar pessoas brancas.
Alguns comentaristas conservadores disseram que o movimento Black Lives Matters está no epicentro dos protestos que se intensificaram nos últimos dias nos EUA: era parcialmente culpado pelo ataque por, segundo eles, ter acirrado a tensão racial nos EUA. Membros do movimento, porém, condenaram veementemente o atirador.
Para Na'ilah Suad Nasir, que pesquisa temas raciais na Universidade Berkeley, é preciso analisar os casos separadamente. "Temos um grave problema neste país com o terrorismo e a facilidadeobter armas, o que parece ter sido o casoDallas, e outro grave problema com violência policial."
Racismo sistêmico
Quando se falaracismo na polícia americana (e na brasileira), muitos costumam restringir o problema a "algumas maçãs podres" e a dizer que a maioria dos policiais são pessoas honestas, que querem apenas o bem dos cidadãos.
Mas para Juan Perea, da Universidade Loyola, a coisa é mais complexa: o policial que puxa o gatilho contra um negro desarmado numa abordagem pode ter uma carreira brilhante, ser bom pai e admirado pelos colegas.
Ele cita uma pesquisa feita por pesquisadoresHarvard que mediu o "preconceito implícito" dos americanos contra negros. O experimento tentou detectar preferências ou preconceitos raciais reprimidos, pedindo que os participantes associassem rapidamente fotosbrancos e negros a palavras como "agonia", "alegria" e "tristeza".
A pesquisa apontou que a maioria dos americanos brancos tem um "preconceito implícito" contra negros, ainda que seja inconsciente dele.
Talvez só uma minoria dos policiais seja abertamente racista, diz Perea, mas é preciso reconhecer o racismo implícito assentado lá no fundo, aquele racismo que todos carregamos por vivermossociedades racistas.
É um racismo muitas vezes sutil, mas que pode tornar um policial mais propenso a atirar contra um negro ao tertomar uma decisão numa fraçãosegundo. Ou a lhe dar vozprisão por desacato após uma discussão. Ou a prendê-lo por carregar um baseado, mas deixar um branco passar.
Seguindo esse raciocínio, eu sou racista. Se você cresceu no Brasil ou nos EUA, há boas chancesque também seja.
Também por essa lógica, as polícias americana e a brasileira só deixarãoser racistas quando as sociedades americana e brasileira deixaremser racistas.
O que não quer dizer que até lá não haja formasimpedir mortes banais, diz Cathy Schneider, especialistaviolência policial da American University: "Não há nenhuma razão para que a polícia mate alguém desarmado", ela afirma.
"Há muitas formas pelas quais as forças policiais podem diminuir a tensãouma situação - elas devem ser treinadas para agir assim."
Em vários lugares dos EUA, já há mudançascurso. Muitas polícias têm sido pressionadas a mudar práticas para punir com maior frequência abusos contra minorias, aproximar-se da comunidade e se tornar mais diversas racialmente.
Quanto a mim,uns tempos pra cá deixeicortar o cabelo eaparar a barba regularmente. Pensei que, se alguém deixarme cumprimentar por isso, eu é que não quero papo com essa gente.
Mas nunca mais tirei fotos por aqui com a mesma espontaneidade.