'Assombroso não é ter câncer, mas sim não ter': pesquisador explica por que vê nossa sobrevivência como 'um milagre':
Leia os principais trechos da entrevista a seguir:
BBC - Por que o senhor diz que o câncer é uma tempestade perfeita?
Carlos López-Otín - Quando você entra (na tempestade), tudo é incerteza, mas as tormentas passam e hoje é mais fácil sobreviver ao câncer do que sucumbir a ele; há mais casos curados, mas ficam guardados os casos que não superam a tormenta.
Essa palavra é adequada porque o câncer, molecularmente, é uma tempestademutações,danos no nosso material genético e seus arredores. Também é uma tempestademedo, por causa do estigma (do câncer) se falasussurros. Às vezes me pergunto por quê, se tratandouma doença tão frequente.
Já temos (incidência em) uma a cada três pessoas no mundo; delas, umacada dois, no mínimo, vai se curar completamente. E entre as que não se curam, muitas vão ter a doença cada vez mais controlada.
BBC - O câncer vai ser erradicado?
López-Otín - Eu acredito que não. O câncer forma parte da nossa essência biológica, é uma doença circunstancial à vida e à aquisiçãocomplexidade celular. Enquanto tivermos componentes biológicos, células, tecidos e órgãos, haverá tumores.
Os vegetais também têm (câncer), os dinossauros tiveram, os homens das cavernas tiveram e os homens mais tecnológicos do mundo o terão, enquanto não forem substituídos por robôs.
BBC - Por que nossas células, que são generosas, altruístas e dão vida, escolhem o caminho da virulência? Como se tornam células egoístas?
López-Otín - Dependemosas células se dividirem um determinado númerovezes, no máximo 60 ou 70, como mecanismosegurança. Mas,repente, uma célula sofre uma mutação. Uma só mudança nesses 3 bilhõesletras que compõem o genoma, neste longo verso interminável que é a vida, faz com que a célula adote uma estratégia egoísta: começa a se dividir e não responde a nenhum sinalmoderação.
Temos a esperança que após 60 ou 70 ciclos isso pare, porque aí há um freio, mas ela comete mais erros, porque adivisão é urgente, feita muito rapidamente.(...)
BBC - Qual o passo seguinte natransformação?
López-Otín - A célula necessita alcançar a imortalidade, que também está proibida. Somos mortais, e a cada segundo mais1 milhãocélulas se suicidam no nosso interior - morrem por apoptose, que é uma palavra grega (para morte celular programada).
(...) Com essas novas mutações nas células, algumas se tornam imortais e, uma vez que adquirem a imortalidade, ficam totalmente livres emcapacidadese dividir sem parar. Crescem tanto que esgotam os nutrientes do oxigênio.
BBC - É nesse momento que começam a viajar (pelo corpo)?
López-Otín - Elas precisam se alimentar, depois explorar outros territórios e aí é que começam com novas mutações. Esse afã viajante é uma exploração dentro do organismo. Elas usam a rodovia sanguínea e viajam até onde os nutrientes e o oxigênio não estejam comprometidos.
Por sorte, poucas, menos0,001% das que começam a viagem, conseguem completá-la, mas, quando o fazem, começaaventuracolonização, como fazem as sociedades humanas quando buscam novos territórios. E, se são bem-sucedidas, criarão novas colônias, ocorrerão as metástases e aí nossa vida começa a ficar prejudicada.
Mas é uma viagemcondições incertas, não só pela dificuldade, mas porque está controlada pelo sistema imunológico.
BBC - Como esse sistema nos protege dessas células egoístas, imortais e viajantes?
López-Otín - O coronavírus retomou o interesse pelo entendimento do sistema imunológico como defesa contra micro-organismos, mas ele tem outra função decisiva: nos defendernós mesmos, das células alteradas que estamos continuamente gerando,um processo chamado imunovigilância tumoral.
Se você acorda com uma célula transformada, o sistema imunológico continuamente nos dá a oportunidadereconhecê-la como estranha e eliminá-la; isso faz com que não tenhamos riscos extremoster tumores.
BBC - Quando o câncer se repeteuma família, o senhor recomenda investigar nossa herança genética para saber se somos propensos a gerar tumores?
López-Otín - Basicamente todos os tumores têm uma origem genética, porque surgemdanos nos nossos genes. Só alguns são infecciosos, como o vírus do papiloma ou algumas bactérias Helicobacter pylori que podem chegar a produzir câncerestômago; são muito poucos os (tumores) que se devem a micro-organismos, que também acabam danificando ou confundindo nossos genes.
Todo câncer, portanto, é genético, mas só uma porcentagem mínima - menos10% - é hereditário, ou seja, os defeitos já trazemosfábrica,nossos progenitores, e isso nos torna suscetíveis a um tipotumor concreto.
Entre os mais comuns estão o câncermama e o câncercólon, mas há mais50 síndromes hereditáriascâncer.
São bastante fáceisreconhecer e é importante ir a uma consultaaconselhamento genético.
BBC - Seu livro relata o casoAngelina Jolie e comenta as críticas que ela recebeu pordecisãorealizar uma dupla mastectomia preventiva.
López-Otín - A mãe, a tia e a avó dela tinham morridocâncermama ouovário; é um caso paradigmático.
No entanto, ela, com grande acesso à informação e a tantos recursos, esperou ter mais40 anos e ter filhos biológicos para testar se havia herdado a aparente mutação que existia nafamília, com uns 50%possibilidadetê-la herdado. Efato a tinha, por isso ela tomou medidas profiláticas, agressivas para alguns, mas muito necessárias para pacientes.
(...) Os examescâncermama hereditário são simples, você pode dar prosseguimento e tomar medidas mais radicais. As doençascâncer hereditário, que são interpretadas como uma desgraça, são as que podem ser erradicadasuma família concreta, porque você sabe qual é o defeito e pode agir com a legislação adequada (de cada país).
BBC - Haverá pessoas que podem ser afetadas negativamente se souberem que têm um risco maior (de desenvolver tumores). É melhor saber ou não saber?
López-Otín - No caso do câncer, (é melhor) saber, sempre saber, porque há muitas medidas que podem ser tomadas.
Angelina Jolie será a primeira nafamília a não morrercâncermama ou ovário, apesarter a mutação para tal.
Outra questão são as doenças que ainda não nos dão uma oportunidade, como as neurodegenerativas.
Na Colômbia, há alguns núcleos com muitos casosAlzheimer familiar e, na Venezuela,doençaHuntington, para citar casos que vêm à mente. Neles, a possibilidadeintervenções são muito menores que no caso do câncer. Prefiro a informação, mas entendo que, se não há alternativas (de prevenção e cura), haja pessoas que não a queiram.
BBC - É relevante conhecer nosso genoma?
López-Otín - (...) Deciframos centenasgenomas completospacientes, especialmente com leucemia, mas também com tumores sólidos e toda a informação coletada tem sido extraordinária e gera mais alívio do que danos.
No entanto, no nosso genoma também temos escritas algumas predisposições - não mutações, mas sim predisposições -, quedeterminados momentos podem favorecer o desenvolvimentoalgum tipocâncer, e também acho que seja muito importante saber.
BBC - Vai virar habitual analisar o próprio genoma, ou só algumas pessoas poderão fazer isso?
López-Otín - Não acho que estejamos pertoque alguém possa dizer 'vou fazer um exame para evitar o câncer', porque você não vai evitá-lo enquanto houver um componenteazar tão importante.
No nosso país (Espanha) deciframos centenasgenomas, encontramos mutações causadorastumores e,alguns casos, pudemos desenvolver terapias específicas para os pacientes.
Isso não custou nem um euro, nada. Há sistemas muito simples que chamamospainéisgenes que vão sendo implementados pouco a poucohospitais da rede pública - me refiro a sistemas baratos, simples, que garantem a justiça social.
BBC - Quando olhamos as possibilidadesmodificação ou seleção genética, parece que poderia se abrir um novo sistemadesigualdades. É algo a se temer no futuro?
López-Otín - Teremos que ver qual será o alcance. A edição genética é outra das fronteiras que temos, ou seja, a modificação genética logo no início para evitar alguns males. É um passo a mais que gera muitíssimas dificuldades éticas.
Na China, foram violados, ao menos uma vez, todos os códigos a respeito disso, o que foi detido a tempo. Existe um grande consensoque é preciso ter muito cuidado com intervenções.
Demoramos 3,5 bilhõesanos para sintonizar nosso genoma ao ambienteque vivemos, e não é possível quepoucos anos, e por questões banais, estejamos dispostos a fazer modificações que não contribuem com nada essencial, mas que podem abrir brechasdiscriminação.
Se fala tambémneuroaumentação, o aumento das possibilidades neurológicasuns e outros. A revista Time anunciou maisdez anos atrás que2045 surgiriam os primeiros humanos imortais. Faltam só 23 anos, e nessa data haverá 100 milhõesseres humanos diagnosticados com Alzheimer.
Tudo o que tem a ver com o cérebro segue sendo a última fronteira biológicaconhecimento.
Com isso, não entendo como o discurso vai sempredireção a questões que nos fazem cair na arrogância, na prepotência. E na realidade estamos na ignorância, embora siga havendo iniciativasinvestimentos multimilionáriosbusca da imortalidade.
BBC - O senhor compreende os que estão nessa busca?
López-Otín - Quem quer ser imortal tem que lembrar que as verdadeiras imortais são as células egoístas que querem ser viajantes e criar tumores.
Estudamos a imortalidade para evitá-la. E, se não, que leiam o meu mestre imortal (o escritor argentino) Jorge Luis Borges, epoucas páginas você se dá contaquenada vale ser imortal, porquepouco tempo,poucas centenasanos, seu único desejo será ovoltar à fonte da mortalidade e ser como todo mundo, mortal.
BBC - O senhor teme o nada e o esquecimento, como chama a morte?
López-Otín - Não tenho medo do câncer nemnenhuma outra doença; tomara que as que couberem a mim, como ser biológico, cheguem o mais tarde possível.
Tenho 63 anos, me parece uma façanha cósmica. Sessenta e três anos resistindo a milhares e milharesmudanças diárias no meu genoma.
Me parece claro que o assombroso não é ter câncer, mas sim não tê-lo.
Quando você conhece os detalhes da delicadeza molecular, percebe que a sobrevivência é um milagre. Quando você observa as milhõesreações bioquímicas que fazem cada instante possível, o apreço pela vida é infinito.
O genoma está construído por 3 bilhõespeçascada célula. E nesta noite, comotodas, o coloquei para replicar, porque cada célula que se divide faz uma cópia do material genético.
E despertei presumindo que não sofri nenhuma mutação significativa, me olhei no espelho e disse: "Nossa, hoje tampouco tenho câncer". Mas o azar pode tudo evezquando ocorre alguma mudança que nos faz entrar na dinâmicacélulas egoístas, imortais e viajantes.
Ter completado dois terços da vida sem a chamada dessas células me parece uma grande conquista.
Não tenho medo da morte porque a considero parte da vida e, portanto, que uma doença nos roube a vida e nos convertanada eesquecimento me parece ser o mais natural.
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