A turbulenta história da vacinação obrigatória no Brasil e no mundo:
Charleen Tachibana, executiva que dedicou toda acarreira ao centro médico, acredita que essa alta taxavacinação deve-se,parte, "à nossa longa históriavacinação obrigatória... é algo que se tornou bem normal".
Em 2004, o Virginia Mason anunciou ter se tornado o primeiro centro médico a exigir que todos os seus funcionários fossem vacinados contra a influenza anualmente. A administração do centro formou gruposconscientização e promoveu outras atividades, incluindo jogos e um evento, para incentivar a discussão sobre a nova exigência. A abordagem foi muito bem sucedida e a taxavacinação dos funcionáriosVirginia Mason contra a influenza disparou54% para 98%dois anos.
As lições aprendidas com essa experiência servirambase para implantar a vacinação obrigatória contra o coronavírus. Um aspecto foi garantir a maior conveniência possível para que os funcionários tomassem a vacina. O outro aspecto foi um sério enfoque na comunicação a respeito da nova exigência, incluindo sessõesinformação e documentosdiversos idiomas.
"Nós levamos a sério nossas obrigações", segundo Tachibana. "Existe tanto conhecimento científico claro a respeito — que a vacina é comprovadamente segura e tão eficaz — que levamos [a questão] adiante."
A experiênciaVirginia Mason sugere que a vacinação obrigatória é uma ferramenta poderosa para proteger a saúde pública. Mas pode também ser muito contestada. De certa forma, o comportamento relativo à necessidade atualvacinação contra a covid-19 reflete os padrõesséculos atrás, o que ressalta a importânciacompreender as lições históricas da vacinação obrigatória.
Precedentesvacinações obrigatórias
No século 17, médicos chineses descobriram que certas preparaçõesvaríola, quando sopradas pelo nariz, poderiam gerar doença mais suave que a infecção natural, seguida por imunidade. A técnica acabou por difundir-se para a Europa e as Américas, onde geralmente era esfregado material infecciosouma punção na pele.
À medida que ela se espalhou pelo mundo, alguns líderes decidiram eventualmente obrigar esse tipoinoculação. Durante a Guerra da Independência Americana,1777, por exemplo, o general George Washington exigiu que todas as tropas fossem inoculadas contra a varíola.
A inoculação deu lugar à vacinação mais sofisticada, depois que o médico inglês Dr. Edward Jenner desenvolveu uma vacina contra a varíola1796, com base no vírus da varíola mais suave, que infecta as vacas. A vacinação obrigatória começou poucos anos depois. Em 1806, Elisa Bonaparte, governanteLucca e Piombino, no território que hoje pertence à Itália (e irmãNapoleão), ordenou a vacinaçãobebês recém-nascidos e adultos.
Outro marco histórico ocorreu1853, quando a Lei da Vacinação Obrigatória exigiu que os bebês da Inglaterra e do PaísGales fossem vacinados contra a varíola.
Embora algumas vacinas inicialmente fossem populares, como a da pólio, observa-se um padrãoque o público se acostuma com uma exigênciavacina específica ao longo do tempo. Isso até que algumas pessoas comecem a ficar assustadas com o surgimentovacinas novas.
"Os Estados Unidos estabeleceram a vacinação obrigatória no final dos anos 1970", segundo Lee Hampton, pediatra e médico epidemiologista da Aliança pelas Vacinas (Gavi).
Vacinação no Brasil
No Brasil, o nome mais marcante da vacinação no país é o do médico Oswaldo Cruz, que liderou a campanhacombate sanitário contra a varíola, a peste bubônica e a febre amarela. As três seriam erradicadaspoucos anos do RioJaneiro, então capital federal. Seu nome batizaria décadas depois a Fundação Oswaldo Cruz, que surgiu1900 a partir do Instituto Soroterápico Federal, criado para fabricar soros e vacinas contra a peste bubônica.
Cruz é bastante conhecido também pela reações que gerou. Então chefe da Direção-GeralSaúde Pública (equivalente a ministro da Saúde), ele defendeu a adoção da vacinação obrigatória contra varíola, o que desencadeou diversas reações violentasparte da população, que já vivia forte opressão social. Uma delas foi a Revolta da Vacina,1904, que levaria à revogação da obrigatoriedade naquele mesmo ano.
Mas1908,meio a um grave surtovaríola no RioJaneiro, a população passaria a buscar voluntariamente a imunização. A doença seria erradicada do país1971. Desde então, vacinas são aplicadasmaneira ampla, gratuita e coordenada no Brasil com implantação do Plano NacionalVacinação, nos anos 1970. E, aos poucos, restrições começaram a ser impostas a quem não se vacinasse.
Atualmente, embora não se obrigue fisicamente pessoas a tomarem a vacina, há restrições a direitos civis para quem não cumprir o calendário vacinal do Sistema ÚnicoSaúde
"Quando se fala que vai ter vacinação obrigatória, a maioria das pessoas imagina uma cena com um agentesaúde entrando nacasa com uma seringa na mão e vacinando você à força, contra avontade", diz a pesquisadora Natalia Pasternak, PhDmicrobiologia e integrante da Equipe Halo, uma iniciativa da ONU que reúne cientistas do mundo todo para aumentar o alcance da ciência.
"Isso não existe e não vai acontecer. Não é assim que as vacinas são tratadaspaíses democráticos." Exemploscomo a "obrigatoriedade" na imunização se aplica no Brasil incluem exigênciavacinaçãodia para matrículaescolas públicasvários Estados, como São Paulo, Goiás e Pernambuco, para registrogrande parte dos concursos públicos, para obter Bolsa Família (renomeado Auxílio Brasil) e para se alistar nas Forças Armadas.
Na Ítalia, EUA, Reino Unido...
Outros países também exigem a vacinação para o exercício plenodireitos civis. A Itália exige a vacinação das crianças contra uma sériepatógenos, como a hepatite B, difteria, coqueluche, poliomielite, tétano, Haemophilus influenzae do tipo B, sarampo, caxumba, rubéola e varicela.
Segundo Hampton, "a obrigação propriamente dita... na verdade não causou nenhum problema. O que ocasionou mudanças ao longo do tempo nesse tipocontexto foram as alterações da obrigação." Esse padrão vem sendo observado, por exemplo, com as novas exigênciasvacinação contra a hepatite B, antraz e agora, é claro, a covid-19.
A vacinação agora é necessária,alguns casos, para o comparecimento às escolas (por exemplo, na Eslovênia, contra a hepatite B), para transplantesórgãos (algumas regiões do Reino Unido exigem a vacinação para transplantes renais) e,um caso extremo na Itália, para manter a custódiacrianças. As penalidades pelo não cumprimento, na maioria dos casos, são educativas ou financeiras.
A vacinação obrigatória é especialmente comum nos países ricos, segundo Hampton. Existem também tendênciasvariaçãoacordo com o estilogoverno,que "quanto mais autoritário for o governo, mais provável o estabelecimento da vacinação obrigatória".
Isso não é uma surpresa, já que é mais fácil para esse tipogoverno impor novas regras, incluindo asinteresse público (como no caso das vacinas). Gâmbia, por exemplo, ordenou a imunização infantil2007, durante um períodoregime autoritário (após uma queda na cobertura vacinal).
Mas a vacinação obrigatória também é comumpaíses democráticos durante situaçõesemergência, como as pandemias. O EstadoNova York, nos Estados Unidos, impôs temporariamente a vacinação obrigatória dos funcionários da saúde contra a gripe durante a pandemiagripe suína2009.
O legado da "objeção consciente"
Ao longo dos séculos, surgiram algumas objeções sobre os componentes utilizados na fabricação das vacinas.
Algumas vacinas incluem pequenas quantidadesprodutos animais, como esqualeno, um óleo extraído do fígadotubarões. A vacina contra a pólio usava anteriormente célulasrinsmacacos. Esses ingredientes causaram certa oposição dos vegetarianos.
A primeira vacina contra a varíola incluía linfavaríola bovina, retirada da vesículabezerros. Para parte do crescente movimento vegetariano e antivivissecção na Grã-Bretanha vitoriana, isso era repulsivo.
Esses questionadores das vacinas tinham vários argumentos diferentes, segundo Sylvia Valentine, atualmente trabalhando emtesePhD sobre o tema na UniversidadeDundee, no Reino Unido. "Algumas das denominações inconformistas acreditavam que o corpo humano não deveria ser contaminado com material animal", segundo ela.
"O movimento antivivissecção também estava envolvido com os antivacinas e muitos questionadores eram 'anti' muitas outras coisas, incluindo a interferência do Estado nas suas vidas. Os antivivisseccionistas questionavam os métodos empregados para obter a linfabezerro, que eram um tanto perversos, para ser honesta, e se preocupavam com o bem-estar animal", segundo Valentine.
Tecidos suínos também levaram parte dos muçulmanos a se preocupar se algumas vacinas seriam halal — permitidas pelo Islã — por exemplo, se elas usassem gelatinaporcos como estabilizante. Isso foi um desafio para a vacinação contra o sarampo na Indonésia,2018.
Mais recentemente, clérigos muçulmanos na Indonésia declararam que as vacinas contra a covid-19 são aceitáveis e os fabricantesvacinas contra a covid-19 afirmaram que suas vacinas não contêm produtos derivadosporcos. Algumas autoridades do Judaísmo também insistiram que não deveria haver problemas com vacinas não orais que contenham ingredientes derivadosporcos.
Outro componente contestado são as linhagenscélulasfetos obtidas após abortos que foram realizados legalmente décadas atrás. Essas linhagens celulares continuam a ser utilizadas nos testesalgumas vacinas e no desenvolvimentooutras. Mas o Vaticano declarou que as vacinas contra o coronavírus são "moralmente aceitáveis".
Embora haja discordâncias entre as religiões e os indivíduos, particularmente nas religiões altamente descentralizadas — como entre os cristãos evangélicos nos Estados Unidos —, nenhuma religião estabelecida proíbe a vacinação.
De fato, ao longotoda a história, as autoridades religiosas desempenharam papéis importantes no incentivo à vacinação eimplementação. Afinal, é do interesse delas proteger a saúde dos seus seguidores.
Além dos questionadores espirituais, muito ativismo trabalhista foi relacionado à oposição contra as vacinas.
Durante a era vitoriana, alguns empregadores ingleses impuseram a vacinação obrigatória contra a varíola, que afetava particularmente a classe trabalhadora — que também apresentava muita resistência. Os sindicatos geraram forte oposição organizada (incluindo,2004, as enfermeiras sindicalizadas que questionaram a exigênciavacinação contra a influenza no centro médico Virginia Mason).
Em 1898, a Inglaterra passou a admitir objeções conscientes à vacinação obrigatória. Mas a aprovação dessas isenções tornou-se relativamente fácil apenas1907 — e chegou a atingir um a cada quatro nascimentos.
Atualmente, apenas uma pequena minoriapessoas antivacina é muito atuante, mas "o movimento antivacina na era vitoriana era muito maior", segundo Nadja Durbach, professora especialista na história do corpo da UniversidadeUtah, nos Estados Unidos. "Era muito mais disseminado que o movimento antivacina atual. Não se conhecia muito da ciênciavacinação e a faltacondições sanitárias significava que o processo podia facilmente causar infecções."
Mas continua a haver paralelos entre os protestos antivacina históricos e contemporâneos. Símbolos antivacinas continuam ocasionalmente a ser queimadosalguns lugares, como ocorreuUtah,maio deste ano.
Mas uma diferença é o ambiente dos protestos vitorianos, que, às vezes, lembrava o carnaval. Durbach descreveu que "uma demonstração antivacinação comum envolvia levar um prisioneiro antivacina recém-libertado, muitas vezes ainda com as roupas da prisão,uma carroça adornada com fitas e faixas, acompanhada por uma charanga musical".
Impulsos x entraves
A vacinação obrigatória contra a varíola terminou no Reino Unido1947,meio a uma tendência mais amplavacinação opcional (por exemplo, contra a difteria), concentrada na educação e na persuasão.
Mas, como estamos vendo agora com a covid-19 e como vimos anteriormente com a varíola, a vacinação obrigatória realmente aumenta as inoculações. Quando a França ordenou a vacinação infantil contra 11 doenças potencialmente mortais para os nascidos após 2018, por exemplo, o númerocrianças totalmente vacinadas aumentou significativamente com relação aos anos anteriores.
Quando escolhida com cuidado, é inquestionável que a vacinação obrigatória pode salvar vidas.
Um estudo demonstrou, por exemplo, que os pacientes são substancialmente menos propensos a morrer - com taxasmortalidadecerca13,6% contra 22,4% -hospitais com níveis mais altosvacinação contra a gripe entre os funcionáriosassistência médicacomparação com as instituições com níveisvacinação menores, embora a probabilidade dos pacientes serem infectados pelo vírus seja a mesma.
Outro estudo europeu também concluiu que,países com vacinação obrigatória contra o sarampo e sem isençõesordem não médica, a incidência da doença foi 86% inferior a países onde a vacinação não era obrigatória.
Existe tensão comum entre a obrigação, que pode aumentar a hostilidade, e a vacinação voluntária, que pode aumentar a transmissão. Alguns especialistassaúde preocupam-se com a vacinação obrigatória porque essas políticas podem reduzir a confiança nas autoridades médicas a longo prazo. Como exemplos, a vacinação obrigatória gerou distúrbios violentos no Brasil e pode haver contribuído com furiosos movimentos antivacinatoda a Europa.
Na França, que é um dos principais locaishesitação contra as vacinas do mundo, o Ministério da Saúde tentou reduzir os efeitos polarizantes da vacinação obrigatória ampliando seus esforços para criar leis que estabeleçam confiança. Isso gerou maior cobertura vacinal, embora uma minoria significativa ainda permaneça hesitante com relação às vacinas - o que sugere a importânciacontinuar a monitorar comportamentos e fortalecer as relações entre as instituições médicas e o público.
Mas nem todos concordam com a definição do que é "obrigatório". Existe um argumentoque muitas das chamadas vacinações obrigatórias tecnicamente não o são porque as pessoas muitas vezes podem decidir não se vacinarcertas circunstâncias, como crenças religiosas. E a execução pode ser deficiente ou até inexistente.
A vacinação coercitiva - que envolve a execuçãovacinação obrigatória com força física ou intimidação - é diferente. E, apesar dos efeitos benéficos do aumento da cobertura vacinal, existe um consensoque essa estratégia deve ser evitada.
Ainda assim, segundo o pesquisador chinês da ONG Human Rights Watch, Yaqiu Wang, táticas coercitivas, que incluem espionagem e perseguição, estão sendo relatadasalgumas partes da China.
Wang explica que esta não é necessariamente uma política oficial do país, mas o governo central emite quotasvacinação rigorosas para os governos locais, como a orientaçãovacinar pelo menos 90% das crianças na China, emitidasetembro2021. "Esse tipoquota/decreto do governo central eleva a taxavacinação, mas, às vezes, pode resultarvacinações coercitivas a nível local", segundo Wang.
Mesmo na ausênciaforça física, certas penalidades pelo descumprimento das normas obrigatórias podem ser contraproducentes - por exemplo, se forem cobradas altas multaspessoas que já têm dificuldadesair do trabalho ouse deslocar para os locaisvacinação. Isso foi um pontodiscórdia entre os criadoresbicho-da-seda no século 19 e permanece sendo um obstáculo para algumas pessoas que ainda não foram vacinadas.
Para Lee Hampton, a vacinação obrigatória é "algo a ser utilizado com moderação", com o mínimoexecução possível. As condições para o seu uso deverão incluir "a existênciauma doença mortal, particularmente uma doença mortal altamente contagiosa, e intervenções [seguras e] eficazes para reduzir a transmissão dessa doença. Trata-se normalmenteuma boa combinação."
"O que ajuda é que as vacinas que temos contra a covid-19, afinal, são extremamente seguras", acrescenta ele. Hampton permanece otimista que a vacinação obrigatória continuará a ser uma forma útilproteger a população, apesar da oposição encontrada.
"Com cuidado e critério, o benefício da vacinação obrigatória superará os riscos", afirma ele. Só o tempo dirá se isso é suficiente para convencer os céticos das vacinas.
Leia a íntegra desta reportagem (em inglês) no site BBC Future.
*Com reportagem adicionalMatheus Magenta e Ricardo Senra
Já assistiu aos nossos novos vídeos no YouTube ? Inscreva-se no nosso canal!
Este item inclui conteúdo extraído do Google YouTube. Pedimosautorização antes que algo seja carregado, pois eles podem estar utilizando cookies e outras tecnologias. Você pode consultar a políticausocookies e os termosprivacidade do Google YouTube antesconcordar. Para acessar o conteúdo clique"aceitar e continuar".
FinalYouTube post, 1
Este item inclui conteúdo extraído do Google YouTube. Pedimosautorização antes que algo seja carregado, pois eles podem estar utilizando cookies e outras tecnologias. Você pode consultar a políticausocookies e os termosprivacidade do Google YouTube antesconcordar. Para acessar o conteúdo clique"aceitar e continuar".
FinalYouTube post, 2
Este item inclui conteúdo extraído do Google YouTube. Pedimosautorização antes que algo seja carregado, pois eles podem estar utilizando cookies e outras tecnologias. Você pode consultar a políticausocookies e os termosprivacidade do Google YouTube antesconcordar. Para acessar o conteúdo clique"aceitar e continuar".
FinalYouTube post, 3