Da defesa das privatizações à luta contra desigualdade: como o discurso do FMI mudou nos últimos 40 anos:
Um contraste com as visões que tornaram o fundo conhecido: Estado mínimo, reduçãoimpostos para empresas, privatizações.
O que mudou?
Da função burocrática a instrumento da Guerra Fria
O FMI foi criado1944, no fim da Segunda Guerra, na mesma "chocadeira institucional" que deu origem ao Banco Mundial e à ONU (Organização das Nações Unidas), lembra o professor da EscolaEconomiaSão Paulo da Fundação Getulio Vargas (EESP-FGV) Leonardo Weller, PhDHistória Econômica pela London School of Economics (LSE).
Nasceu com a missãopromover estabilidade econômicauma épocaque o mundo passava por uma grave crise cambial. Na esteira do crash da bolsa1930 e das duas grandes guerras, dezenaspaíses passaram a desvalorizar artificialmente suas moedas para incentivar as exportações.
Os acordosBretton Woods, que deram origem ao FMI, tentavam consertar as assimetrias geradas por essa corrida com um sistemacâmbio fixo,que as moedas eram atreladas ao dólar.
"Nas décadas50 e 60 era um órgão mais burocrático", diz Weller.
As coisas começaram a mudar, contudo, nos anos 70. De um lado, Bretton Woods deixouexistir, esvaziando aquela função inicialmanter o sistema globalcâmbio fixo. De outro, a Guerra Fria recrudescia, opondo dois modelos econômicos — o capitalismo e o socialismo — e dois países — Estados Unidos e União Soviética.
Em buscaressignificação, o FMI começou a emprestar para países que precisavam colocar a economiaordem. Virou uma espécieemprestadorúltima instância. E suas políticas passaram a ser gradativamente mais influenciadas pelos Estados Unidos, o membro com a maior parcelacotas do fundo e, portanto, maior peso nas decisões.
Weller e outros dois colegas, o pesquisador Ariel Akerman e João Paulo Pessoa, analisaram mais500 contratosempréstimos do FMI entre 1970 e 2014 e concluíram que o fundo, longeser imparcial, foi usado como instrumento"luta contra o comunismo" durante a Guerra Fria.
Na prática, países geograficamente mais próximosnações sob influência soviética tinham maior facilidade para tomar empréstimos. A lógica eraque manter a prosperidade e afastar as crises econômicas reduziria as chancesesses países flertarem com o socialismo.
O trabalho se junta a outros que, no decorrer das últimas décadas, identificaram influências geopolíticas nos condicionantes que o FMI colocava para os tomadores dos empréstimos.
A década80 e os calotes na América Latina
Os anos 70 se mostraram um períodogrande liquidez global, o que favoreceu uma ondaempréstimos pelo fundo, inclusive a países da América Latina.
No Brasil, que vivia os anoschumbo da ditadura, o governo aproveitou os juros baixos para financiar o que a propaganda da ditadura vendeu como o período do "milagre econômico" — e que desembocou na chamada "década perdida".
Conforme os registros do FMI, o país negociou com o fundo praticamente todos os anos entre 1965 e 1972 (os chamados "acordos stand-by") e sacoufato cerca26% do valor liberado.
O governo militar tomaria ainda um último empréstimo1983, um ano marcado por greves e manifestaçõesrua. A economia já estavacrise, com inflação e desempregoalta.
Em um dos protestosjulho daquele ano, contra um decreto-lei que limitava o reajuste dos salários, "fora daqui FMI" foi um dos slogans entoados por uma multidãoquase 50 mil pessoas no RioJaneiro.
Em 1987, o Brasil daria calote no FMI. A últimauma sequênciamoratórias na região.
A primeira foi a do México,1982. E esse é um momentoinflexão importante. "É aí que acontece a formação do FMI tal como a minha geração conhece,imposiçãopolíticas contracionistas, ortodoxas", pontua Weller.
Ascensão e queda do ConsensoWashington
Essa política atingiu seu ápice na década1990, quando o FMI se tornou bastião do chamado ConsensoWashington, um conjuntorecomendações que partia da premissaque o mercado era capazresolver seus próprios problemas.
É a ideiaEstado mínimo, que vem acompanhadapolíticasabertura comercial, desregulamentação da economia, privatizações, redução da carga tributária para as empresas, enxugamentogastos públicos.
Eleito1989, Fernando CollorMello abraçou a proposta: abriu a economia e deu início a um grande programaprivatizações, retomado pelos governos seguintes,Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso.
No fim do primeiro governo FHC, contudo, o ConsensoWashington foi colocado à prova quando a Ásia mergulhou numa crise1997, levando parte do mundo junto.
O receituário clássico do FMI, diz Weller, apesar"discutível", talvez fizesse algum sentido no contexto da América Latina dos anos 80, com países bastante fechados, com um Estado inchado e estatais bastante ineficientes.
O problema é que, ao contrário dos países latino-americanos, Coreia do Sul, Tailândia, Cingapura, Malásia e Indonésia já tinham economias relativamente abertas e uma estruturadespesas públicas mais enxuta.
"Eles [o FMI] erraram muito. Pegaram o mesmo remédio que vinham dando para a América Latina e colocaram lá — e a crise só piorou", ressalta o economista.
Em vezaumentar a eficiência da economia, os cortesgastos aprofundaram a crise e geraram uma ondacríticas ao fundo.
US$ 1 trilhãode capacidadeempréstimo
189países-membro
17,4%é o totalcotas dos EUA, país com maior percentual
2,3%é o totalcotas do Brasil,10º lugar
Talvez não por acaso, a crise da Ásia marca o fim do ConsensoWashington como narrativa dominantecrescimento dentro do FMI.
Essa é uma das conclusõesum estudo feito por três economistas do fundo. Intitulado Crouching Beliefs, Hidden Biases: The Rise and Fall of Growth Narratives (A Ascensão e QuedaNarrativasCrescimento), o artigo, que é um trabalhopesquisa e não reflete a visão institucional do FMI, analisou 4.620 relatórios entre 1978 e 2019.
A conclusão foique o ConsensoWashington deu lugar à "ConstelaçãoWashington". Um conjunto amplotermos começou a aparecer nos documentos quando o assunto é crescimento da economia: desigualdade, investimento público, acesso ao sistema financeiro, ambientenegócios.
"Chamamos'constelação' porque esses termos, pelo menos à primeira vista, parecem desconectados. Não há uma teoria unificada que ligue crescimento com qualificação, produtividade, turismo, ambientenegócios, facilidade para fazer negócios, acesso ao sistema financeiro, infraestrutura e desigualdade…", disse à BBC News Brasil Reda Cherif, um dos autores do artigo.
A ideia é que as constelações são formadas por estrelas que não necessariamente estão no mesmo plano ou a uma mesma distância da Terra, mas, vistaslonge, elas formam um desenho lógico.
"É um pacote que, pelo menos nós, economistas, não vemos como parteuma grande teoria coerente. É uma espéciemudançaestratégia, lidar com a questão por diferentes ângulos."
Para o economista Barry Eichengreen, professor da UniversidadeBerkeley, nos Estados Unidos, e ex-consultor do FMI, a crise financeira2008 teve um papel fundamental nessa guinada.
"A crise na Grécia foi importante para conscientizar os principais acionistas do FMI, os países ricos,que os programasajuste que agravavam a pobreza e a desigualdade provavelmente não seriam politicamente sustentáveis e, assim, tinham baixa probabilidadefuncionar", escreveu,entrevista por e-mail à BBC News Brasil.
"Antes, esses acionistas pensavam que as objeções aos programas do FMI refletiam faltavontade política e outros problemas específicos dos mercados emergentes. O que aconteceu na Grécia a partir2010 foi surpreendente, pois mostrou que os mesmos problemas existiam nos países desenvolvidos. Em outras palavras, esses problemas eram universais e, portanto, mereciam ser enfrentados", completa.
A Grécia foi um dos países mais afetados pelo tsunami que se seguiu à crise financeira2008. Fechou diferentes acordossocorro financeiro, também com o FMI. Como contrapartida, tevefazer uma sériereformas, mudar o sistemaaposentadorias e cortar gastos públicos.
O custo humano foi alto. Em 2015, com uma retração acumuladaquase 30% no PIB, o desemprego bateu 27% e passou60% entre os jovens. Uma onda migratória levou 400 mil pessoas a deixarem o país, reduzindo a população4%.
A essa altura, boa parte dos países da América Latina já tinha tomado uma "vacina anti-FMI", como descreve Weller. À medida que conseguiram quitar suas dívidas, as principais economias da região focaramformar um colchãoreservasdólares para evitar novas crises cambiais.
"Os argentinos só não fizeram isso porque não conseguiram."
A Argentina até hoje renegociadívida. O Brasil quitou o que devia2005 e hoje é credor, ou seja, suas cotas no fundo são usadas nos empréstimos concedidos aos países-membros.
O impulsouma pandemia
A chamada "ConstelaçãoWashington" parece ter ganhado ainda mais força com a pandemiacovid-19, que expôs e aprofundou as desigualdades mundo afora. Desde o início da crise sanitária2020, o FMI emprestou maisUS$ 115 bilhões, usados para financiar, por exemplo, o fortalecimentoprogramasproteção social e a saúde.
Falando sobre o tema da desigualdadeentrevista ao podcast Equalssetembro2020, Georgieva destacou que, nos acordos com paísesdesenvolvimento,90% dos programas do FMI hoje são estabelecidos pisos mínimos para gastos sociais.
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