'A masculinidade é o inimigo, não os homens. Eu moro com um', diz historiadoraesportbetaCambridge:esportbeta
esportbeta BBC Mundo - Como você se tornou uma acadêmica especializado no mundo clássico?
esportbeta Mary Beard - A resposta a isso eu acho muito chata...
esportbeta BBC Mundo - Claro que não. Você não é nada chata.
esportbeta Beard - Fui para uma escola muito tradicional e antiquada, onde aprendíamos latim e grego, e era muito boa nisso. E quando você tem 12 ou 13 anos você gostaesportbetacoisas nas quais você é muito bom. Meu interesse por coisas antigas vêmesportbetatão cedo quanto consigo me recordar, mas me lembro especialmenteesportbetaquanto eu tinha cinco anos.
Morávamos no interior, a centenasesportbetaquilômetrosesportbetaLondres, e minha mãe achou que precisávamos ir para Londres. Fomos ao Museu Britânico, que era então muito antiquado.
Isso foi há 60 anos e todas as vitrines eram muito altas e muito difíceisesportbetaserem vistas pelas crianças. Estávamos olhando para coisas egípcias — não múmias, coisas da vida egípcia diáriaesportbetamilharesesportbetaanos atrás.
Atrásesportbetauma das caixas, minha mãe viu um pedaçoesportbetabolo ou pão egípcio carbonizadoesportbeta4.000 anos. E eu queria muito ver, imagina, um bolo tão velho! Mas eu não conseguia. Minha mãe tentou me levantar, mas ela carregava muitas bolsas.
Então um homem veio e perguntou se eu queria ver algo. E eu disse que sim, queria ver aquele pedaçoesportbetabolo ali atrás. Ele pegou as chaves, abriu a vitrine e tirou o bolo. E foi incrível para mim.
E isso sempre me fez pensar que não só o mundo antigo é incrível, mas que sobrevivem coisas que você nunca teria imaginado. E também que existem pessoas que podem te ajudar a entendê-lo. Foi muito emocionante.
esportbeta BBC Mundo - Por vários anos, você foi a única professora mulheresportbetaCambridge. esportbeta Em algum momento temeu que isso não fosse para você?
esportbeta Beard - Não. Eu entendo que muitas pessoas podem recuar. Mas tenho um grande espíritoesportbetacontradição.
A ideiaesportbetaque eu era a única mulher pode parecer incrível hoje. Mas na época não parecia tão estranho. Quer dizer, você sabia que tinha que lutar e que tinha algo pelo que lutar, mas também que havia pessoas que estavam do seu lado.
Alguns dos meus colegas homens me apoiaram muito, e acho que tive sorte porque eles queriam mais mulheres. Eles eram muito ruinsesportbetaencontrá-las, mas queriam ajudar.
Dito isso, tenho certezaesportbetaque alguns não queriam.
Lembro-meesportbetaquando estava fazendo meu doutorado, encontrando homens que diziam que havia mulheres demaisesportbetaCambridge. Muitas mulheres! Senti que estava sozinha, mas também senti que muitas pessoas me encorajaram.
E tive muita sorte porque sei que isso não acontece com todo mundo.
esportbeta BBC Mundo - Para quem está na América Latina, os gregos e romanos antigos podem parecer muito distantes. Em que sentido tudo isso também se relaciona com eles?
esportbeta Beard - De várias maneiras. Acho que é realmente algo internacional. É verdade que os romanos vieram para o Reino Unido, mas não é por isso que os estudo, nem é o que me estimula. Nem para pessoas na América do Norte ou Austrália.
Acho que é porque, surpreendentemente, é um tema muito democrático, é algo que todos podemos compartilhar ou sobre o qual todos temos perspectivas diferentes. Existem maneirasesportbetaisso ser uma herança para todos, não apenas para aqueles que vivem no que um dia foi o Império Romano.
Em termosesportbetauma linguagem global e dos debates políticos que todos nós compartilhamos agora, estudar o Mundo Antigo ensina a você as origens desses debates. Ensina por que as ideiasesportbetaliberdade, democracia ou ditadura sempre foram controversas e como foram debatidas.
Onde quer que estejamos neste mundo, até certo ponto herdamos as ferramentas que os gregos e romanos inventaram para falar sobre essas coisas.
Não quero dar a impressãoesportbetaque toda a cultura mundial remonta aos gregos e romanos, porque não é assim, felizmente existem muitas fontesesportbetacultura mundial.
Mas a cultura clássica greco-romana é uma fonte importante. É muito difícil começar a entender a longa história do imperialismo no mundo sem estudar tanto o Império Romano quanto o da China.
Seria terrível se pensássemos que esta herança da Grécia eesportbetaRoma é a única coisa que nos fez o que somos, porque absolutamente não é. As religiões também desempenham um grande papelesportbetapor que o mundo é do jeito que é. Mas abre um sentido muito importanteesportbetaonde vem uma linha fundamental da cultura mundial.
Não acho que estudo a Roma e a Grécia antigas porque quero ser como os antigos gregos ou romanos. Claro que não, nem acho que eles tenham as respostas, nem quero admirá-los particularmente. Não os admiro, eram horríveis!
esportbeta BBC Mundo - Seu livro "Mulheres e poder: um manifesto" explica que nem tudo que herdamos deles, nossas tradições e costumes que remontam a eles, são necessariamente algoesportbetaque devemos nos orgulhar. Explica, por exemplo, como a dificuldade que nós mulheres temosesportbetaser levadas a sério quando falamosesportbetapúblico pode ser rastreada até esta Idade Clássica. E dá um exemplo muito notável do "primeiro exemplo documentado na tradição da literatura ocidentalesportbetaum homem dizendo a uma mulher para ficar quieta".
esportbeta Beard - Acontece no início da Odisseia,esportbetaHomero. A Odisseia é a história do retornoesportbetaum "herói", coloco entre aspas,esportbetaOdisseu retornando da GuerraesportbetaTróia, onde os gregos foram vitoriosos, e ele está voltando para casa, paraesportbetaesposa e família, e leva 10 anos para voltaresportbetaTróia.
Passa 10 anos lutando na guerra e 10 anos voltando da guerra. E parteesportbetasua viagemesportbetavolta fica atrasada porque ele se envolve com mulheres que não deveria. Mas também porque existem tempestades e monstros.
Enquanto isso,esportbetacasa,esportbetaesposa Penélope mantém o palácio, cuida dele, e também cuidaesportbetaseu filho Telêmaco. E um dia desceesportbetaseu quarto para a área pública do palácio e ouve um bardo cantando canções tristes sobre como os heróis estão sofrendo ao voltaresportbetaTróia. E ela disse: "Você pode cantar uma música mais animada? Isso é um pouco deprimente."
Telêmaco, o filho dela, que é adolescente, ouve-a e diz: "Mãe, cale-se. Discurso público é assuntoesportbetahomem. Volte lá para cima". E ela faz isso.
E Telêmaco é um adolescente bastante ineficaz, enquanto Penélope é uma mulher muito inteligente. O que é particularmente impressionante para mim é que parece que na história da Odisseia esta é a única maneira que Telêmaco tem para se tornar um homem, amadureceresportbetamenino para homem.
A única maneiraesportbetafazer isso é silenciandoesportbetamãe. E isso, eu acho, torna ainda mais assustador para mim. E temos que aprová-lo, isso é o que significa ser um homem.
esportbeta BBC Mundo - Você menciona duas exceçõesesportbetaque as mulheres podiam falaresportbetapúblico: quando o faziam como vítimas e quando tinham que defender um assuntoesportbetaseu interesse. E assim, por séculos, as questões que afetam as mulheres se tornaram questõesesportbeta"nicho". Isso lembra o que diz a autora Caroline Criado Pérez no livro Mulheres invisíveis: que tudo o que diz respeito ao homem é considerado universal, enquanto as questões das mulheres são apenas isso: questõesesportbetamulheres.
esportbeta Beard - É assim mesmo. E, claro, você tem sentimentos ambivalentes sobre isso, porque você olha para as mulheres que defenderam os direitos das mulheres e pensa: bem, fico muito feliz que tenham feito isso, alguém tem que fazer isso.
Uma parteesportbetamim está feliz que as mulheres tenham voz para falaresportbetaseus próprios interesses. Mas também me faz pensaresportbetacomo a voz pública das mulheres permanece limitada.
Veja, o Reino Unido teve duas primeiras-ministras, mas nunca teve uma ministra das finanças. Teve brevemente uma ministra da Defesa, mas se você olhar para a importância das mulheres no governo nos últimos 30 anos, são ministras da Cultura, da Educação, da Saúde, coisasesportbetamulheres.
esportbeta BBC Mundo - Alguma vez você já sentiu que não foi levada a sério por ser mulher? Pergunto porque você parece ter um ótimo sensoesportbetahumor e muitas vezes as mulheres acreditam que para sermos levadas a sério temos que ser muito sérias, sempre ser muito sérias.
esportbeta Beard - Certamente agora não sinto que não sou ouvida, ou não é algo que me acontece com frequência.
De vezesportbetaquando, você estáesportbetauma entrevista a três, com dois homens, e vê como eles desenvolvem um comportamentoesportbetaconluio entre eles e é difícil argumentar.
Mas seria inaceitável eu protestar por não ter voz pública. Quando eu era muito mais jovem... Olha, tem aquele desenho da Srta. Triggs que coloquei no meu livro (Quase 30 anos atrás, a cartunista Riana Duncan capturou a atmosfera sexista das salasesportbetareuniões com um cartoon mostrando um encontro entre cinco homens e uma mulher, a Sra. Triggs, no qual o homem encarregadoesportbetaliderar a reunião diz: "Essa é uma sugestão excelente, Srta. Triggs. Talvez um dos homens aqui gostariaesportbetafazê-la").
Eu já passei por essas situações quando era uma acadêmica muito jovem. A maioria das mulheres sabe disso.
esportbeta BBC Mundo - E o que você acha da responsabilidade dos homens? Às vezes, pode ser difícil não sentir raiva. Obviamente, você deseja se relacionar com os homens, eles são uma parte importanteesportbetanossas vidas. Como você navega nisso? Como você passaesportbetauma experiência pessoal negativa para um pensamento com uma perspectiva mais ampla?
esportbeta Beard - É complexo. Mas sempre separei fortemente a posição política das pessoasesportbetaminha amizade com elas.
Tenho muitos amigos cujas posições políticas são muito, muito diferentes das minhas. Acho que é uma questão do que minha mãe chamavaesportbeta"odiar o pecado, mas não o pecador".
O que quero combater e eliminar é esse tipoesportbetasexismo e misoginia. Não estou interessadaesportbetatrancar o sexistaesportbetaum quarto e levar a chave comigo. Quero que as pessoas, os homens, vejam — acho que muitos querem — que o mundo é mais gentil e justo, se não for sexista. É melhor para todos, não apenas para as mulheres.
E eu acho que o padrão sexista e misóginoesportbetagrande parte da cultura mundial é muito injusto com as mulheres, mas não é ótimo para meninos e homens também.
A masculinidade tóxica não é algo agradávelesportbetase ter. Mesmo agora você pode ir para uma escola primária e ver no quintal uma menina que cai e machuca o joelho e a professora vai e a abraça, ou ela teria feito isso antes do coronavírus, e colocaria alguns curativos nela. E a garota chora. Se um menino faz isso, ela diz "não, não chore, meninos não choram."
E este é um exemplo pequeno e trivial. Mas acho que minha posição seria que, embora eu vá lutar contra qualquer misoginia que encontrar, o fareiesportbetanomeesportbetatodos. Acho que a masculinidade é o inimigo, não os homens. Eu moro com um, pelo amoresportbetaDeus!"
esportbeta BBC Mundo - Vou te contar uma charada. Pai e filho sofrem um acidente enquanto dirigem...
esportbeta Beard - Eu já sei conheço (e dá risada)..
esportbeta BBC Mundo - (A charada é a seguinte: Um pai e seu filho viajam sofrem um grave acidente. O pai morre e o filho é levado ao hospital porque precisaesportbetauma complexa operaçãoesportbetaemergência, para a qual é chamada a pessoa mais experiente do centro cirúrgico. Mas na salaesportbetacirurgia diz: "Não posso operá-lo, é meu filho." Como isso é explicado?]
esportbeta Beard - Quando me disseram pela primeira vez, demorei muito para encontrar a resposta. E foi muito educativo, porque mostra que mesmo tendo uma boa base teórica feminista, você ainda faz parteesportbetaum mundo que discrimina as mulheres e faz diferentes suposições sobre elas. E, bem, finalmente encontrei a resposta, mas preciseiesportbetaajuda. É uma charada muito boa.
esportbeta BBC Mundo - Como são os preconceitos inconscientes que todos nós temos?
esportbeta Beard - Acho que consegui reconhecê-los melhor, mas não acho que os superei completamente. Lembro-meesportbetauma vez, há 15 ou 20 anos, que estavaesportbetaum avião e chegou o momentoesportbetaque vocês esperam o piloto dizer boa tarde, senhoras e senhores, vamos voar tantos metros. E o anúncio começou, mas era uma mulher.
E me lembro que, por meio segund, pensei: por que a aeromoça está fazendo o anúncio? Porque não associei que a voz da mulher fosse a do comandante. Mas eu lutei por isso! É o que sempre quis que as pessoas pudessem fazer.
esportbeta BBC Mundo - Você conta que a ex-primeira ministra Margaret Thatcher mudou o tomesportbetavoz para ficar mais parecido com oesportbetaum homem...
esportbeta Beard - Sim, e é absolutamente fascinante. Se você for ao Google e assistir a algunsesportbetaseus discursos antigos, verá isso acontecer diante dos seus próprios olhos.
Ela teve aulasesportbetavoz porque disseram que ela tinha que baixar o tom para ser levada a sério, para ser considerada como alguém com autoridade. Porque ouvimos autoridade na vozesportbetaum homemesportbetauma maneira que não ouvimos na vozesportbetauma mulher, especialmenteesportbetavozes femininas agudas.
esportbeta BBC Mundo - Você também usa uma fotoesportbetaque Hillary Clinton e Angela Merkel são vistas vestidas basicamente iguais,esportbetaum terno escuro. Mulheres com poder achavam que precisavam parecer mais masculinas para serem levadas a sério. Mas isso resolve o problema?
esportbeta Beard -Não, não resolve. Não gostariaesportbetacriticar mulheres como Clinton ou Merkel que fazem isso, que adotam modos muito masculinos, porque acho que se às vezes é a única maneiraesportbetalidar com isso. Quem sou eu para criticar?
Mas quando você começa a ver e pensar sobre isso, você vê algo aqui que não é produtivo, porque para ser levada a sério, uma mulher tem que parecer mais ou menos homem, então isso implica que a mulher está sempreesportbetaposiçãoesportbetafingir, sempre fingindo.
Para algumas pessoas, terá valido a pena. Tenho certezaesportbetaque Thatcher diria que valeu a pena mudar a voz. Mas isso pode resolver o seu problema, mas não resolve "o" problema.
Mas então você enfrenta algo muito mais difícil, você tem que mudar a maneira como pensamos sobre o poder. Mas acho que é muito difícil saber exatamente o que fazer.
É bom apontar essas coisas, é um pouco como a consciência feminista dos anos 1970. Quando você começa a ver isso, você está mais sintonizada. Você provavelmente está mais apta a resolver o problema.
Mas certamente não tenho uma listaesportbetacoisas que podemos fazer para melhorar as coisas. E issoesportbetacerta forma me preocupa. Eu não tenho as respostas.
*Esta entrevista é parte do Hay Festival Arequipa, eventoesportbetaescritores e pensadores que aconteceesportbeta28esportbetaoutubro a 8esportbetanovembro.
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