Redes sociais espalham 'epidemiamal-estar' pela humanidade, diz psicanalista:
Marcelo Veras - De um certo modo, acredito que as pessoas estejam cada vez mais preocupadas com o bem-estar e a saúde mental, mas isso ocorre precisamente por uma percepçãosua perda. Houve um profundo remanejamentoconceitos clássicos como narcisismo e intimidade.
A hiperexposição das redes (sociais) nos distancia muito da realidade do que somos: mostramos apenas o melhornós mesmos,uma exigênciafelicidade permanente que deixa muito pouco espaço para o sofrimento subjetivo. No século 21, estamos permanentemente sob os olharescâmeras que implodiram o conceitointimidade. Isso gera uma sociedade mais insegura narcisicamente e também com a falsa ilusãoque o olhar do outro é necessário para garantirexistência.
Surgem então uma sérieterapias e práticas para adequar o sujeito moderno ao seu idealaparência, e cala-se profundamente as raízes, sempre complexas, do sofrimento individual que não fica bem na foto.
Temos nessa esteira a disseminaçãocoachings, programaslifestyle, estética, além, evidentemente, do recurso à medicação. Preocupa-me quando a Organização MundialSaúde (OMS) coloca a depressão como a doença do século. O modo como foi posto pode gerar uma elevação a níveis ainda maioresantidepressivos e calmantes pela população.
Prefiro pensar como Freud que estamos fazendo face a uma epidemiamal-estar na civilização, replicado por todos os cantos do planeta pelas mídias instantâneas.
Hojedia, não sofremos apenas pela morte do filho do vizinho, sofremos pelas perdas que ocorremqualquer lugar do mundo, gerando uma espécieempatia global que nos lança sobre os ombros a sensaçãoque temos que salvar o mundo a qualquer preço.
BBC News Brasil - Os modosconsumo erelacionamento contemporâneos têm alguma associação com o adoecimento psíquico da população, uma vez que as taxasdepressão e ansiedade são crescentes?
Veras - Sem dúvida. Consumimos objetos assim como consumimos relações.
Nunca estamos satisfeitos e precisamosum iPhone mais moderno,um novo carro. Um fator que observo nas relações feitas através das redes sociais, e que era novo para mim, é a expressão "vácuo".
As pessoas começam a se relacionar pelos aplicativos, começam a se entregar afetiva e também sexualmente, já que muitas vezes trocam nudes, e,repente, um dos dois desaparece na rede e deixa o outro no vácuo. Não há término, desculpa, nada: um dos dois apenas deleta o outro e desaparece.
Isso gera uma insegurança narcísica muito grande. Em mídias como Instagram e Facebook, igualmente nos tornamos reféns"likes"pessoas que nos são totalmente desconhecidas, diferentebuscar apoio e mesmose mostrar amável apenas para um grupoamigos.
Tudo isso leva a um modoser que vai além do que (Zygmunt) Bauman definiu como modernidade líquida. Nela, tínhamos a ideiaque a libido fluía por diversos objetos; vejo muito mais uma modernidade descartável, onde é possível "deletar" o outro sem restos.
Um modo como vejo a psicanálise no mundo atual é precisamente se ocupando dos restos afetivos, para entender que há um tempo para o luto e a frustração que não deve ser confundido com depressão.
BBC News Brasil - No seu livro Selfie, Logo Existo , você identifica este "deletar" e também o "vácuo" como alguns dos novos significantes que têm aparecido. Poderia apontar o que a clínica tem trazido, por meio dos pacientes, a respeito das mudanças que estamos vivendo na contemporaneidade?
Veras - O sujeito não mais encontrarepresentação nos grandes discursos, como o religioso, por exemplo.
Se, por um lado, esse fenômeno abriu espaços para uma paleta muito maiormodosse representar na sociedade - a discussão sobre os gêneros é um ótimo exemplo - por outro lado, muitos não mais encontram representaçãosimundo possível algum, ficando à deriva, sem modelos, sem guias, perdidos e capturados apenas pelos instrumentos que o transformamum grande gozador ou masturbador.
Cria-se assim uma massaadictos e consumidores.
BBC News Brasil - Diz-se do suicídio que ele é a demonstração mais radical do sofrimento, eincidência é cada vez maior. Por que, ainda assim, a saúde mental não é priorizada pelas políticas públicas?
Veras - O suicida não se mata, ele mata a imagemsi. No trabalho, nas universidades, na comédia amorosa, nos dramas familiares, no tribunal permanente da opinião pública, é sempre nossa imagem, ou ego, que marca presença. É ela que saicena.
Quando desejamos nossa morte, continuamos a pensar nossa ausência como uma presença para além da morte. Ser humano é igualmente ter que se haver com o corpo que se tem, e não apenas com o corpo que se "é".
Nossa condiçãofala nos desnaturaliza, já que a pulsãomorte, tão humana, se sobrepõe ao instinto animalsobrevivência. Justamente por termos um corpo, podemos nos desfazer dele. É na vertigem entre ser e ter um corpo que surge a angústia heideggeriana que nos determina como um ser para a morte.
Na Antiguidade, o romano que quisesse encerrarvida passava por uma espéciecomitêética que ponderava as razões e podia autorizá-la. Apenas os soldados, os condenados e os escravos não podiam fazer essa demanda, pois seus corpos pertenciam ao Estado.
A condenação "à morte" do suicida, com seus grandes tribunais post-mortem, ocorre precisamente quando o corpo passa a ser propriedadeDeus. Dito por Santo Agostinho: não te matarás.
George Minois, que escreveu a História do Suicídio, referência incontornável sobre o tema, chama atençãoque foi preciso o teatro inglês do século 16 para que o suicídio passasse a ser visto como questão subjetiva.
Em seu livro Da faca à pena: o suicídio na literatura inglesa no renascimento, (Bernard) Paulin relata que,apenas 40 anos, cerca200 suicídios foram encenadosmaiscem peças teatrais na Inglaterra. Sem dúvidas, o caso mais famoso é oHamlet,que a questão do ser ou não ser é posta como uma interrogação que exige uma resposta sempre única para cada personagem da comédia humana.
Contudo, seguindo o destinotodo sentimento humano, o suicídio no mundo atual tornou-se patologia e passou aos cuidados da psiquiatria. Ou seja, corpo e mente do suicida pertencem no século 21 à Ciência.
Esse pensamento atinge proporções globais: é a própria OMS que diz que 90% dos suicídios estão associados à distúrbios mentais e poderiam ser evitados se as causas fossem tratadas corretamente.
Essa estatística tornou-se argumentum ad nauseamtoda exposição psiquiátrica sobre o suicídio nos diashoje. Eis o ponto inquietante: o suicídio como doença desresponsabiliza tanto o sujeito quanto o outro social, torna-se uma aberração comportamental, um enquistamento maligno, cujo caminho é, na maioria esmagadora dos casos, a medicalização.
Essa constatação não é nada confortável, sobretudo quando inúmeros trabalhos apontam para o aumentomortes ligadas à associação entre pensamentos suicidas e usosubstâncias químicas, antidepressivos principalmente.
Para mim, o suicídio atualmente é muito mais por conta da incomunicabilidade e a solidão da geração dos hiperconectados do que propriamente uma doença do corpo. É preciso compreender uma saúde mental para o suicídio mais desconectada apenas da doença mental e pensar mais na doença da própria sociedade do consumo.
BBC News Brasil - O suicídiojovens tem despertado a atenção da sociedade, sobretudo após registrosmortesescolasSão Paulo e o sucessoficções como (a série) 13 Reasons Why . Estamos dianteuma geração que não tem perspectivafuturo?
Veras - Tenho lidado cotidianamente com a questão do suicídio entre os jovens universitários por coordenar o programasaúde mental da Universidade Federal da Bahia, com mais40 mil estudantes. A questão é: por que uma universidade, que implica a noçãofuturo,repente perde essa função, chegando mesmo ao suicídio?
Muitos desses jovens se colam nos papeis imaginários ofertados nas telas, vivendo uma espécietransitivismo que Freud chamouidentificação.
Quanto mais perdemos nossa autonomia intelectual, mais nos colamos a uma imagem do outro, passamos a falar e agir "como" o outro. O fatoque a geração atual viveum ambientevelocidade sem precedentes na humanidade traz como consequência uma espéciefobia do tempo lento, um limiar muito baixo para esperar e para suportar frustrações.
As respostas têm que ser imediatas, sem investimento a longo prazo.
Se pensamostermos psicanalíticos, podemos dizer que é uma geração que busca o gozo permanentemente, mas não sabe como lidar com o desejo. Qual a diferença entre gozo e desejo? O gozo é sempre uma presença que pede mais e mais, ele é voraz. Já o desejo é saber lidar com a falta, afinal, só podemos desejar o que não temos.
BBC News Brasil - O que define a loucura hoje e por que ela é um instrumentopoder?
Veras - Não diria que a loucura é um instrumentopoder no momento atual.
Ao contrário, após duas décadasque presenciamos um avanço para a consolidação da reforma psiquiátrica, observamos um retrocesso inquietante nas políticassaúde mental no Brasil.
O fato, por exemplo,que o conselho que define a Política Nacional sobre Drogas ter sido completamente esvaziado dos representantes da sociedade civil, incluindo médicos e psicólogos, me parece gravíssimo. Vemos o ressurgimentopráticas focadashospitais onde o peso maior é na medicalização e internação.
BBC News Brasil - Qual papel os profissionais da psicologia e da psicanálise podem desempenhar nestas políticas?
Veras - A psicanálise ocupa sempre uma posiçãoexterioridade com relação aos discursos institucionais, já que ela visa a expressão do sujeito naquilo que ele temmais singular, e não naquilo que ele temcomum com os outros.
Contudo, isso não quer dizer que o psicanalista deva se abster do debate da vida pública. Ao contrário, o psicanalista tem muito a dizer sobre os grandes movimentosmassa.
Cada vez mais os psicanalistas estãolugares como favelas, presídios, comunidades muito distintas da VienaFreud. Acho particularmente crucial a presença dos psicanalistas nos debates sobre violência, racismo e questõesgênero.
BBC News Brasil - Qual é a importância dos instrumentos e conselhosfiscalização no tratamento dado aos internoshospitais psiquiátricos?
Veras - Fui presidente da Comissão TécnicaReforma Psiquiátrica do Estado da Bahiaplena efervescência da promulgação da lei federal 10.216,1981, que preconizava uma reorientação do modelo assistencialsaúde mental.
Era uma comissão que avançava com dificuldades precisamente por não ser autoritária, pois havia espaço tanto para a representação da luta antimanicomial e dos próprios usuários da rede, quanto para os donos dos hospitais privados.
Não digo que eram reuniões pacíficas, muitas vezes eram bem explosivas, mas havia a garantiaum debate incluindo as diversas posições, um debate democrático onde minha função como presidente era fazer acontecer o encontro.
A loucura sempre foi segregada. A loucura nas ruas perturba, e novas práticas insistemmanter a velha estrutura clínica que visa calar o delírio, sem entender que o delíriosi já é uma tentativacura; é preciso escutá-lo, e não simplesmente silenciá-lo.
Outra grande questão é achar que a loucura é uma questão do corpo, e que o cortejoprofissionais que lidam com a saúde mental no cotidiano (psicólogos, terapeutas ocupacionais, enfermeiros) é coadjuvante do ato médico, esse sim o ato definitivo na abordagem da loucura. Acontece que nossa mente não se encontra no corpo.
As tentativaslocalizar nos genes, por exemplo, a origemdoenças como o autismo e a esquizofrenia serão, aléminfrutíferas, um desvio sobre a verdadeira questãojogo: o fatoque, por sermos sereslinguagem, deixamosser apenas seres regidos pelo que se passa no corpo.
Somos o produto da interação da carne com o verbo.
BBC News Brasil - Temos observado manipulações e distorçõespalavras e narrativas por figuraspoder e lideranças. Qual é a relação entre a palavra e o sofrimento?
Veras - Somos seres que nos distinguimos dos outros animais na natureza precisamente por sermos seres falantes.
A palavra é nossa casa, pois ela determina nosso ser, nosso corpo e o modo como vivemos. Mas a palavra exige interpretação, exige saber falar e escutar, é um movimento dialético.
Quando a conversação fracassa, quando, por exemplo, o debate democrático, que implicaouvir e respeitar o pensamento contrário, não tem espaço, a palavra que resta é a do poder autoritário, que não admite a alteridade.
O maior sofrimento para uma comunidade ou população específica é precisamente quando ela é silenciada, quando caçamos a palavra, quando lhe censuramos a expressão.
BBC News Brasil - Qual é o lugar do ressentimento na sociedade brasileira atual?
Veras - Saímosum processo eleitoral no ano passado que escancarou uma divisão profunda na população brasileira.
O espaço público ficou polarizado, impedindo a escuta do outro. Porém não é possível avançar alguma solução política se não houver algum perdão possível. Nas décadas passadas, os filósofos (Jacques) Derrida e Vladimir Jankelevitch colocaram no centroseus debates o perdão e o ressentimento.
Suas obras passavam pela questão do nazismo e da Shoá: o que é perdoável e o que é imperdoável. Essa questão, como demonstrou Jankelevitch, é complexa, pois somente se pode perdoar o imperdoável, já que o perdoável já é perdoável.
Trazemos essa questão para o coração da política atual no Brasil: é possível perdoar a tortura e morte na época da ditadura? É possível perdoar sem julgar? Mais uma vez o que observamos é que caminhamos por um momento políticoque o silêncio autoritário vai se sobrepor ao debate sério sobre os acontecimentos mais cruéisnossa história recente.
BBC News Brasil - Especialistastecnologia têm apontado para a coletadados privados dos usuários por meioaplicativos e outros programas para celulares e computadores. Há também situaçõesexposição criminosanudes econteúdos que até então eram privados. Como a sociedade tem lidado com a própria intimidade, com a privacidade e com a exibiçãosi?
Veras - O Gafam, grupo formado por Google, Appel, Facebook, Amazon e Microsoft, está longeser composto por vestais impolutas.
Chamo sempre atenção: quando o almoço é grátis é porque você é a sobremesa. Oferecemos nossos dadostroca da gratuidadeuma sérieserviços que aos poucos tornaram-se cruciais para que o mundocomunidade caminhe. Basta ver os transtornos sérios que aconteceram quando o WhasApp ficou parado.
Contudo, ao entregarmos nossos dados, nos tornamos reféns. Oferecemos nossa transparência nas redes e nos convertemosum enorme parqueconsumidores virtuais. "Se você gostou disso, vai gostar disso", nos convidam os novos robôs mentores.
Temos ainda a grande questão do declínio da intimidade. Ele começou quando passamos a nos interessar mais pelos nossos artistas na banheira ou na ilhaCaras do que no cinema e televisão. Em seguida, a intimidade passou a ser o espetáculosi, com a explosãoreality shows do tipo BBB e demais. Por fim, com a chegada dos smartphones, cada um passou a ser protagonista do seu próprio show da intimidade. Ocorreu uma ruptura entre o sujeito que olha e o olhar.
Hoje, se você precisarum olhar para alimentar o seu narcisismo, você o encontrará no finalseus braços. Essa falsa exposição da intimidade,que nunca nos mostramos realmente, nos torna adictos da imagemsi. Na contracorrente, uma psicanálise é uma experiênciatotal intimidade, duas pessoas presencialmente, sob confidencialidade. Isso é o avesso do mundo atual.
Por fim chamo atenção que expor a intimidade é completamente diferenteexpor as ideias, e a internet tem sido um formidável espaço democrático para que pessoas que jamais puderam se expressar conseguissem ter um canalreconhecimentosuas palavras.
Acho importante que essa entrevista termine com esse toque otimista.
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