O que aconteceu na noiteque Van Gogh cortou a própria orelha?:

Vincent van Gogh, autorretrato com atadura na orelha

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Legenda da foto, O episódio se tornou um dos mais famosos da história da arte

Em 1888, na cidade francesaArles, aconteceu um dos episódios mais famosos da história da arte : um estrangeiro foi até um bordel da cidade e entregou a uma garota que estava no local um pacote com um pedaço sangrentosua própria carne.

Era Vincent van Gogh, que acabaracortar a própria orelha. Na época, tratava-seum pintor desconhecido e sem sucesso, mas que posteriormente se tornaria um dos artistas mais famosostodos os tempos.

O ano que ele passara na região francesaProvença o definiu: foi o períodoque criou suas obras-primas mais apreciadas, mas também aqueleque se mutilou.

Horas depois do episódio no bordel, às 7h da manhã na vésperaNatal, ele foi encontrado pela polícia emcama,posição fetal e com a cabeça envoltatrapos empapadossangue.

Os policiais pensaram que ele estava morto, mas não estava.

"QuartoArles"Vincent van Gogh

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Legenda da foto, O quartoVan GoghArles foi retratado por ele nesta pintura

Van Gogh morreu 18 meses depois,29julho1890, como consequênciauma infecção que contraíra alguns dias antes, após tentar se matar com um revolver.

A história do cortesua orelha é o incidente mais famoso do mundo da arte moderna. No entanto, ninguém sabe o que ocorreu realmente naquele diadezembro1888.

Até pouco tempo atrás, não havia nem certezaque ele realmente tivesse cortado a própria orelha – se desconfiava que tinha apenas cortado o lóbulo.

A BBC acompanhou a historiadoraarte Bernadette Murphy, que desde 2010 se dedica a desvendar o mistério.

Curiosidade

Bernadette Murphy se mudou para Provença1983 e acabou ficando fascinada pela históriaVan Gogh.

Se surpreendeu ao descobrir que se sabia muito pouco sobre a noiteque ele cortou a orelha.

Bernadette Murphy
Legenda da foto, A historiadoraarte Bernadette Murphy desvendou os eventos da noiteque o pintor se automutilou

"Me perguntava: Não há registros médicos? Como pode essa história ser tão ambígua?", disse ela à BBC.

Em 2010, Murphy começou pesquisas nos cartórios da cidade, nas bibliotecas e nos arquivosArles e outras cidades da região.

Cidade pequena

A antiga cidadeArles fica a menos30km da costa mediterrânea francesa e perto da Espanha, mesclando aspectos das duas culturas - tanto um ar romântico quanto a presençavaqueiros e ciganos.

Nascido na Holanda, Vincent van Gogh chegou ali aos 35 anos, quando era um artista fracassado que fugiraParis para um ambiente mais calmo e, achava ele, mais puro.

Pouco após chegar,abril, Van Gogh assistiu a uma tourada.

"ArenaArles",Vincent Van Gogh

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Legenda da foto, As pessoas do público chamaram mais a atenção do artista do que a arenatourada

Quando pintou a cena, deu mais destaque às mulheres exóticas nas arquibancadas do que à ação sangrenta na arena.

"A multidão era magnífica", escreveu a um amigo. "As mulheres e crianças locais usavam roupas simplesverde, vermelho, rosa ou amarelo-pimenta. E, sobretudo, um sol sulfurosoum céu azul vibrante."

"Foi tão alegre quanto a Holanda é deprimente", disse.

Para os habitantesArles, o final sangrento das touradas é a explicação para o episódio brutalautomutilaçãoVan Gogh na cidade – ao finaluma tourada bem-sucedida, as orelhas do touro são cortadas e entregues para alguém do público.

O problema dessa versão é que quando Van Gogh esteveArles, ainda não se cortavam as orelhas do touro. Essa tradição sangrenta foi importada da Espanha mais tarde.

Poucas certezas

Para tentar entender melhor o mistério, Bernadette Murphy começou pela cena da automutilação: o estúdio onde Van Gogh pintou muitassuas obras-primas.

A famosa "Casa Amarela" ficava no norteArles, na Place Lamartine, até 1944, mas foi bombardeada na Segunda Guerra Mundial.

"A Casa Amarela",Vincent van Gogh

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Legenda da foto, Em Arles, Van Gogh morava nesta casa amarela com janela verdes, que era tanto residência quanto estúdio

Sobre os acontecimentos da noite1888, Murphy contava com as reportagens da imprensa local.

"Às 11h30, um homem chamado Sr. Vincent apareceu na portaum bordel na ruaBour d'Arles. Porguntou por uma jovem chamada Rachel. Quando ela chegou, ele lhe entregouprópria orelha cortada", dizia um dos relatos.

Mas será que esses relatos eram confiáveis? Alguns dos artigos da época diziam, corretamente, quenacionalidade era holandesa. Em outros, ele era retratado erroneamente como polonês. Três versões diziam que a orelha estavaum pacote. Outro relato dizia que ele a segurava ao lado da cabeça. A maioria das reportagens afirmava que Rachel era um prostituta, mas uma dizia que ela trabalhavaum café.

Com tantas inconsistências, era difícil saber até mesmo se elefato havia cortado a própria orelha: muitos especialistas não estavam convencidosque isso havia realmente acontecido.

Museu Van Gogh

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Legenda da foto, Fundado por descendentes do pintor, o Museu Van Gogh,Amsterdã, recebe quase 2 milhõespessoas por ano

Uma carta do pintor Paul Signac, que visitou Van Gogh pouco depoissua lesão, parece dizer o contrário.

"O vi pela última vezArles na primavera1889", diz o pintor na carta, atualmente arquivada no Museu Van Gogh,Amsterdã. "Ele estava no hospital da cidade, mas no diaminha visita estava perfeitamente bem, tinha a famosa faixaatadura ao redor da cabeça e usava um chapéu."

"Alguns dias antes", escreveu Signac, "ele havia cortado o lóbulo da orelha".

Essa versão,que Van Gogh teria cortado apenas o lóbulo, e não a orelha toda, também parecia ser confirmada por um desenho feitoVan Goghseu leitomorte pelo médico que o atendeu.

No desenho é possível ver Van Gogh com os olhos fechados e a parte superior da orelha intacta.

DesenhoVan Goghseu leitomorte, com a parte superior da orelha intacta

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Legenda da foto, DesenhoVan Goghseu leitomorte, com a parte superior da orelha intacta

Para os especialistas do Museu Van Gogh, a versãoque ele havia cortado apenas o lóbulo da orelha era a mais aceita.

Então será que o episódio famoso tinha sido, na verdade, um evento menor, que acabou sendo exagerado com o passar do tempo?

Bernadette Murphy descobriu que não. Ela encontrou novas evidências que apontavam que Van Gogh haviafato cortado a orelha toda, e no lugar que menos esperava.

Van Gogh no cinema

Em 1956, a MGM Pictures lançou o filme SedeViver,que o ator Kirk Douglas interpretava o pintor holandês.

Sua forte trilha sonora e as atuações dramáticas cimentaram uma imagemVan Gogh mais excêntrica,que ele cortaorelhaum ataqueloucura.

Os especialistas, no entanto, consideravam o filme uma versão exagerada. Ironicamente, foi ele que levou Murphy a uma pista crucial.

Nos arquivos do Museu Van Gogh, a historiadora encontrou uma carta1955uma antiga edição da revista Time.

Nela, um leitor questionava uma reportagem que dizia que Vincent havia cortado a orelha inteira. O leitor afirmava que ele cortara apenas o lóbulo, reiterando o que dizia Paul Signac.

A resposta editorial da revista contestava essa versão. Afirmava que Irving Stone, autor do livro no qual o filme foi baseado, tinha provasque a orelha inteira havia sido cortada.

Investigando o casoArles, o biógrafo Irving Stone visitara o médico Félix Rey.

"Rey era o único homem que havia visto Vincent van Gogh e ainda estava vivo (àquela ocasião)", conta Murphy.

A resposta da Time dizia que Rey mostrou um boletim médico para Stone e que o boletim estava com o escritor.

Félix Rey, médico e amigo

Félix Rey foi o médico que cuidou do ferimentoVan Gogh emestadia no hospital, e os dois ficaram tão próximos que o holandês o pintou.

Para Murphy, Rey era a melhor testemunhao que se passou com o pintor – e era possível que o documento que ele dera a Irving Stone ainda existisse.

Murphy procurou o arquivista David Kessler para encontrar o documento no arquivoStone, que ficaBerkeley, na Califórnia.

Van Gogh pintou Felix Rey emsérieretratos

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Legenda da foto, Van Gogh pintou Felix Rey emsérieretratos

Após procurar várias vezes, o arquivista finalmente encontrou o documento.

Murphy então viajou a São Francisco e ficou encantada quando Kessler lhe mostrou "uma pequena e fina folhapapel, mas que dizia muito".

"A assinatura com certeza é do Dr. Félix Rey. Tem a data18agosto1930 e é incrível, é um desenhoantes e depois", conta Murphy.

A parte superior da carta do médico Félix Rey com o desenho da orelha e uma linha pontilhada onde ela foi cortada
Legenda da foto, A parte superior da carta do médico Félix Rey com o desenho da orelha e uma linha pontilhada onde ela foi cortada

"Estou felizpoder dar a informação que você pediu sobre meu infeliz amigo Van Gogh", diz Rey na carta enviada para Stone.

"Espero que glorifique a genialidade deste notável pintor. Cordialmente, Dr. Rey."

O papel tem um desenho com uma linha pontilhada e diz que a orelha foi cortada com uma navalha seguindo essa linha.

Depois há um desenho retratando como o pintor ficou após a mutilação.

A parte inferior, com o retratocomo a orelha ficou depois
Legenda da foto, A parte inferior, com o retratocomo a orelha ficou depois

"(Rey) documenta que a orelha inteira foi extraída... Deve ter sido algo incrivelmente doloroso. O que estava passando pela cabeça (de Van Gogh) nesse momento deve ter sido terrível", afirma Kessler, o arquivista que encontrou o documento.

"Eu estava pesquisando isso havia um tempo. Quando você vê algo assim, se dá contaquão horrível realmente foi o que se passou... A violência do ato", diz, Murphy, comovida.

A historiadora levou uma cópia do documento para ser verificado no Museu Van Gogh.

A vidaVincent van Gogh é tão conhecida quantoobra - encontrar novas evidências sobre ele é raro, ainda mais uma provaque elefato cortou a orelha.

Mas afinal, o que o levou a esse ato extremo?

Alma inquieta

O homem que chegou a Arles tinha 35 anos e uma alma torturada.

Pessoas próximas desconfiavam que ele tinha problemas psicológicos.

Nascido1853, filhoum pastor protestante holandês, ele não conseguia manter uma carreira estável como comerciantearte, pastor ou assistenteensino.

Gostava da companhiacomponeses e pobres mulheresrua – as únicas pessoas que toleravampersonalidade estranha e obsessiva.

CartaVincent a Theo

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Legenda da foto, Seu irmão Theo, a quem escrevia com frequência, era a pessoa mais próxima do artista

Houve momentos emvidaque esteve tão sozinho que a única pessoa com quem falava durante o dia era a garçonete da cafeteria onde pedia seu almoço.

Mas uma pessoa sempre esteve a seu lado: seu irmão mais novo, Theo.

Theo era um bem-sucedido comerciantearte, e foi ele quem sugeriu a Vincent uma carreira como pintor.

No entanto, Theo não conseguiu vender nenhuma das primeiras obras do irmão.

Em fevereiro1888, quando se mudou para Arles, Van Gogh era um pintor fracassado, totalmente dependenteseu irmão.

"Comedoresbatata",Vincent van Gogh, 1885

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Legenda da foto, Suas primeiras obras eram tão escuras quando o mundo que ele percebia ao redor

Mas as coisas melhoraram muito na Provença.

Ele fazia passeios diários pelo campobuscainspiração para um novo tipoarte, e a encontrou.

Abandonou completamente os grilhões e modelos do norte da Europa e, no sul da França, descobriu um mundo completamente novo e deslumbrante.

Quando chegava onde queria, começava a preencher a tela. "Não sigo nenhum sistema conhecido", escreveu. "Golpeio a tela com pinceladas irregulares, que deixo como estão."

"Estou tentado a pensar que os resultados são tão perturbadores justamente para não agradar as pessoas com ideias preconcebidas sobre a técnica."

Tinha razão: na época, ninguém o entendeu, mas hoje elas são vistas como suas obras-primas.

"Campotrigo com cipreste",Vincent Van Gogh

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Legenda da foto, Campostrigo e ciprestes foram um tema comum para o artista

Escreveu a Theo dizendo que havia encontrado o futuro da arte moderna. E sonhava como todo um movimentoartistas se uniriatornouma missão compartilhada.

Nas semanas anteriores ao decepamentosua orelha, Van Gogh estava tentando fazer esse sonho virar realidade, e tinha a companhiaum grande artista, muito bem-sucedido já na época: Paul Gauguin.

O grande Gauguin

Gauguin foi um pintor muito apreciado, complicado e interessante, mas também muito arrogante.

Deve ter sido muito carismático, porque não atraía apenas mulheres, mas muitos seguidores.

Van Gogh era umseus admiradores quando se ocupouconverter a casa amarela na sede da irmandade que queria criar. E o primeiroquem pensou foi Gauguin.

Passou semanas lhe escrevendo para convencê-lo a se unir a ele emutopia.

Pintou o quadro Os Girassóis para decorar o dormitórioGauguin.

Comprou 12 cadeirasvime para os artistas e uma mais ornamentada para Gauguin –idade e sucesso faziam que se ele fosse visto como líder emcomunidade.

CadeiraGauguin pintada por Van Gogh

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Legenda da foto, CadeiraGauguin pintada por Van Gogh

No entanto, o verdadeiro Gauguin não poderia ter sido mais diferente do idealVan Gogh.

Era um ex-bancário astuto, bomse autopromover e adúlterosérie. Ao chegar a Arles, encontrou uma pessoa difícil e sem autoestima.

Gauguin só havia ido porque Theo o havia pagado. Depoispoucos dias começou a escrever a seus amigosParis dizendo: "Tenho que sair daqui. Não aguento mais."

O sonhofraternidadeVan Gogh estava condenado desde o começo. Ele e Gauguin não tinham apenas personalidades diferentes, mas também discordavam a respeito da arte.

Gauguin gostavapintar a partirsua imaginação, e o costumeVan Goghpintar o que via lhe parecia risível.

Chegou a produzir um retratoVan Gogh pintando os girassóis.

Van Gogh pintando girassóis,retratoGauguin

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Legenda da foto, Van Gogh pintando girassóis,retratoGauguin

Van Gogh viu o quadro e disse: "Este sou eu, mas eu louco."

Segundo Gauguin, depois que mostrou o quadro a Van Gogh, os dois foram a um bar. Van Gogh pediu um copoabsinto e jogou no colega. Gauguin se esquivou, levou Vincent para casa e o colocou na cama.

Na manhã seguinte, Van Gogh acordou dizendo: "Meu querido Gauguin, tenho uma vaga lembrançaque te ofendi à noite."

Seus sonhosfraternidade artística estavam se tornando pesadelos, e Van Gogh estava perdendo o controlesua frágil saúde mental.

Mas não era só isso: umasuas pinturas contém uma pistaoutro assunto que o incomodava naquele momento.

A carta no quadro

No Museu Kroller-Muller, no interior da Holanda, há um quadro pouco conhecidoVan Gogh.

É uma das primeiras pinturas que ele fez após a noiteque cortouorelha e dá indícios sobre seu estado mental naquela noite.

"Garrafa com cachimbo, cebolas e cera",Vincent van Gogh

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Legenda da foto, Um dos primeiros quadros pintados por Van Gogh após se automutilar trouxe pistas sobre seu estado mental

No canto inferior direito, há uma carta que ele recebeu na manhã do diaque se passou o incidente.

Sabe-se que a carta éseu irmão, poisletra é discernível e porque leva o selo 67, da casacorreios que Theo usava. Além disso, a marca na carta é uma que só se usava no Natal e no Ano Novo, comprovando que ela fora enviadadezembro.

Uma das hipóteses levantadas pelos estudiosos da vida e da obra do artista é que a carta trazia o recadoTheoele iria se casar com Johanna Bonger.

Theo era o melhor amigoVincent. Era seu apoio emocional e financeiro. Se a notícia o fez ficar com medoperder o irmão, isso pode ter contribuído para o declíniosua saúde mental.

Van Gogh recebeu a notícia do noivado do irmão23dezembro, mesmo diaque Guaguin lhe disse que estava indo embora.

A orelha do centurião

O próprio Gauguin mais tarde registrou a conversa erráticaVan Gogh naquele dia.

"Ele mencionou novelas góticas,que o herói era atormentado pela loucura. Refletiu sobre os assassinatosprostitutas que saíam nos jornais e sobre a traiçãoCristo no JardimGetsemani, quando São Pedro cortou a orelhaum centurião."

Pintura bizantina, encontrada no Museu DiocesanoJaca, na Espanha

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Legenda da foto, Pintura bizantina retrata a traição no jardimGetsemani: Judas beija Jesus e Pedro corta a orelha do centurião

"Estava tão estranho que não aguentei", esceveu Gauguin. "Inclusive ele me disse: 'Vai embora?', e quando eu disse 'sim' ele cortou uma fraseum jornal e colocou na minha mão."

"Ela dizia: 'O assassino escapou'."

Horrorizado, Gauguin foi passar a noiteum hotel, deixando Van Gogh sozinho com seus demônios.

Rachel

A históriaGauguin eTheo estava bem esclarecida quando Bernadette Murphy começou a investigar o que se passou com o artista.

Mas, além das incertezas sobre como foi o corte da orelha, outro aspecto confuso era a identidadeRachel, a jovem que Van Gogh procurou naquele noite.

Saber quem era ela poderia ajudar a entender o que levou o artista a procurá-la.

Murphy concentrouinvestigação no último lugarque ele foi visto no dia do episódio: a ruaBout d'Arles, a 100 metros da Casa Amarela.

Noite estreladaVincent Van Gogh

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Legenda da foto, As noites estreladas no campo foram um tema frequente para o artista

É fato conhecido que Van Gogh era um cliente frequentebordéis, porque ele falava abertamente sobre isso com seu irmãosuas cartas.

"Na França do século 19, os bordéis eram regulados pelo Estado. Se chamavam CasasTolerância", explica Murphy à BBC.

"As prostitutas e as cafetinas eram registradas no censo da cidade, com eufemismo para seus trabalhos. As madames eram registradas como limonadier, que pode ser tanto alguém que vende limonada quanto alguém que dirige um bordel. As prostitutas eram registradas como 'fille soumise' – garota submissa,francês", conta Murphy.

Arquivo oficial da cidadeArles
Legenda da foto, Prostitutas e cafetinas eram registradas no censo da cidade com eufeminismos como 'limonadier' e 'fille soumise'

Mas entre as registradas no censo da época não há nenhuma Rachel, que é um nome pouco comum nessa região.

Murphy encontrou um velho artigojornal que ajudava a resolver o mistério. O texto citava o policial que investigou o caso dizendo que o nome da jovem era Gaby.

Revisando os registros, a historiadora notou que muitos dos nomes das prostitutas apareciam seguidos pelas palavras dite Rachel, ou seja, "chamada Rachel".

"Rachel não era um nome real – era apenas um apelido. Então talvez Gaby fosse o verdadeiro nome da jovem", explica Murphy.

Mulher observa quadroVan Gogh

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Legenda da foto, Arles era cercada por campostrigo que o artista gostavapintar

Em Arles1888 havia 31 mulheres chamadas Gabrielle, ou "Gaby".

Depoismuitas pistas falsas e frustrações, Murphy encontrou um livro pouco conhecido sobre Van Gogh que dizia: "Rachel, que se chamava Gaby, morreu1952 aos 80 anos."

Só uma Gabrielle havia morrido nesse ano, com essa idade. Com a identidade verdadeira da jovem, a historiadora conseguiu descobrir que seus descendentes viviam foraArles. Eles pediram anonimato, mas confirmaram queparente Gabrielle era a moça chamadaRachel na históriaVan Gogh.

Murphy descobriu depois que Gabrielle não era prostituta, mas um jovem que fazia faxina no bordel evários dos lugares favoritosVan Gogh na Place Lamartine.

O café noturno na Place Lamartine en Arles,Vincent Van Gogh

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Legenda da foto, Vincent visitava bastante o café da Place Lamartine, seu local preferido da cidade

A moça que Van Gogh foi procurar naquela noite parece ter sido uma amiga, não uma prostituta – uma amiga que ele provavelmente conheceuParis.

Murphy encontrou mais tarde evidênciasque Gabrielle havia sido enviada ao Instituto Pasteurjaneiro1888 para ser tratada após ser mordida por um cachorro contaminado com raiva.

A historiadora também encontrou uma cartaVan Goghque ele mencionava as pobres meninas tratadas por raiva na instituição.

Gabrielle ficouParis por 18 dias e depois voltou para Arles. Van Gogh chegou à cidade no mês seguinte.

Segundo a estudiosa, é possível que Gabrielle tenha sido o motivo que levou Van Gogh a Arles – e isso sugere uma nova interpretação sobre o que se passou na noite do corte.

"Van Gogh sempre se sentiu atraído por pessoasdificuldades, anjos feridos que ele queria ajudar", explica Murphy. "Além disso, alimentava fantasias como o martírioCristo pelos pobres".

"Parece que, emangústia, enxergou a entregasua orelha a Gaby como um atoautosacrifício e compaixão."

É uma teoria difícilcomprovar, mas descobrir a identidadeRachel foi mais um passo importante para entender o que se passou naquela noite.

Juntando o quebra-cabeça

Juntando todas as pistas recolhidas por Murphysuas pesquisas, é possível ter uma visão um pouco mais clarao que se passou na Casa Amarela no diaque Van Gogh cortouprópria orelha.

Ele estavaseu estúdio, cercado por todas essas incríveis pinturas que não conseguia vender.

Van Gogh e seus girassóis

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Legenda da foto, Os girassóis eram um tema frequenta nas pinturas do artista

Perturbado pela carta do irmão e pelo abandonoGauguin, pensou emvida, pegou uma navalha e cortouprópria orelhacima a baixo.

Sem querer, cortou também a artéria atrás da orelha, e mais tarde foram encontrados os trapos que usou para conter o fluxosangue.

Mas,vezchamar um médico, escondeu a ferida com os panos e um chapéu e saiucasa. Envolveu a orelha cortadaum jornal e se dirigiu ao bordel, onde entregou o pacote à Gaby.

Depois foi para casa, onde a polícia o encontrou ensanguentado eposição fetal, mas vivo.

Van Gogh morreria apenas 18 meses depois,um episódio também muito trágico.

Ele saiumanhã do albergue Ravoux, onde estava morando na cidadeAuvers-sur-Oise. Quando voltou à noite, estava sangrando, com um tiro no ventre, e disse aos donos do hotel que havia tentado se matar.

Um médico foi chamado, e também o irmão do pintor, Theo, que chegou a tempoconversar com ele antessua morte. O artista não resistiu ao ferimento e morreu na manhã29julho1890.

No entanto, assim como no caso da orelha cortada, há biógrafos que desconfiam dessa versão – um livro publicado há alguns anos afirma que ele fingiu tentar se matar para proteger dois amigos que haviam atirado nele por acidente.

LápideVan Gogh, no cemitério da cidade francesaAuvers-sur-Oise

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Legenda da foto, 'Aqui repousa Vincent van Gogh', diz a lápide do pintor, enterrado ao ladoseu irmão, Theo,Auvers-sur-Oise

*Esta reportagem foi baseada no documentário The Mystery of Van Gogh's Ear, ou O Mistério da OrelhaVan Gogh, em que a BBC acompanhou Bernadette Murphysuas pesquisas. A historiadora publicou2016 o livro Van Gogh's Ear: The True Story ou A OrelhaVan Gogh: A Verdadeira História.