O diaqbetque acidentalmente matei um menino - e como essa tragédia marcou a minha vida:qbet

Maryann Gray
Legenda da foto, Maryann Gray tinha 22 anos quando atropelou Brian | Fonte: Arquivo pessoal

qbet Em 1977, Maryann Gray era uma estudante universitáriaqbet22 anos com todo o futuro pela frente, quando um menino correu na frenteqbetseu carro. Por anos, Gray não falou sobre Brian, mas pensava nele constantemente. A morte da criança mudouqbetvida para sempre. Veja seu relato:

Estavaqbetótimo humor naquele dia. Iria me mudar da pequena cidadeqbetOxford,qbetOhio, para uma casaqbetCincinnati com várias outras pessoas. Estava muito empolgada.

Estava no cursoqbetpós-graduação, mas havia decidido que queria deixar a faculdade. Estava feliz com o que viria depois. Eu arrumaria um emprego, me divertiria, veria onde minhas paixões me levariam.

Eu estavaqbetuma casa - que nós chamávamosqbet"comuna urbana" - pintando o quarto para o qual eu me mudaria. Quando terminei, decidi dirigirqbetvolta ao meu apartamentoqbetOxford, que já estava com as coisas empacotadas e prontas para a mudança. Era um dia quenteqbetjunho e eu pensei que seria uma ótima ideia dar uma nadada.

Então, entrei numa estrada rural, com uma faixa para cada direção. O limiteqbetvelocidade eraqbet70 ou 80 km/h, bem alto para aquele tipoqbetpista. A estrada estava cheia, e eu fiquei numa filaqbetcarros seguindo o limiteqbetvelocidade.

Passei por um conjuntoqbetcasas, cujas caixasqbetcorreio ficavam do lado oposto da pista. Enquanto passava por essas casas, um menino loiro apareceu, se deslocando da caixaqbetcorreio para a casa dele.

Eu o vi quando já estava perto demais, tentei desviar. Mas não havia jeitoqbetnão atingir a criança. Eu bati no menino e ele voou pelos ares e caiu na calçada. Eu estacionei e corri pela rua.

Estava tão aflita que não me lembro direito daqueles minutos. Eu me vi escondida atrásqbetum arbusto gritando. Eu me ouvi e pensei: "O que é isso? Quem está fazendo isso?".

Foi quando percebi que era eu. O menino estava recebendo os primeiros socorros na rua. Tinha muita gente dando assistência a ele e pessoas paradas ao redor da estrada.

Eu estava muito, muito assustada. Sabia que tinha feito algo terrível.

Levou 20 minutos para a polícia chegar. Eles não esperaram pela ambulância, simplesmente colocaram o menino no bancoqbettrás do carroqbetpolícia e saíram.

Atropelei o menino bem na frente da casa dele e alguns vizinhos tinham ido chamarqbetmãe. Ela saiuqbetcasa gritando o nome do filho,qbetdesespero.

Ela queria chegar até o menino, mas os vizinhos a seguraram. Então, ela pareceu desmaiar na frenteqbetcasa e eles tiveram que segurá-la.

"O menino morreu"

Foi tudo barulhento, confuso, perturbador.

Eu me aproximei da polícia. Eu me apresentei, levantei a mão e disse: "Fui eu que fiz isso, fui eu". Eles não sabiam que eu tinha sido a pessoa que atropelou o menino. Aparentemente ninguém viu.

Os policiais me colocaram no bancoqbettrás do carro e escalaram alguém para ficarqbetolhoqbetmim. Assinei um depoimento e conversei com eles por um tempo. Eles procuraram por marcasqbetfreio na rua e fizeram algumas medições.

Então, o chefe da polícia foi até mim e disse: "Tenho que informá-la que o menino morreu."

Eu estava rezando para que não tivesse sido tão ruim quanto pareceu, que ele pudesse estar bem. Eu me lembroqbetme curvar e chorar e de, depois, tentar me controlar.

A polícia concordouqbetme deixar esperando na casaqbetuma das vizinhas. Ela foi muito generosa. Tinha uma filha alguns anos mais nova que eu e sabia que a filha dela podia estar no meu lugar, ou no da vítima. O nome do menino era Brian.

Maryann com a família no Natal, antes do acidente que matou Brian
Legenda da foto, Gray com a família no Natal, antes do acidente que matou Brian | Fonte: Arquivo pessoal

O policial responsável veio até mim e disse que não iriam me prender- não havia indíciosqbetnegligência, distração ou outra irregularidade da minha parte. Mas eles me deram um pequeno sermão, dizendo: "Essa criança morreu. É uma coisa horrível. Você tem que se certificarqbetque nunca mais fará algo parecido."

Fiquei com raiva, porque a ideiaqbetque eu faria issoqbetnovo era absurda.

Liguei para os meus paisqbetNova York e contei a minha mãe o que acontecera. Eu estava chorando e repetindo: "Foi um acidente, um acidente." E a minha mãe disse: "Claro que foi um acidente."

Meu pai chegou à cidade no dia seguinte.

Ele ligou à família que perdeu a criança para prestar condolências, o que deve ter sido incrivelmente doloroso. Ele passou na casa da vizinha para agradecer por ela ter sido tão generosa comigo. Ele resolveu a questão do carro, que teve que ir para uma oficina. E contratou um advogado para que me defendesse, caso houvesse algum desdobramento judicial.

Ele estava tentando tomar todas a providências e resolver o que precisava ser resolvido.

Passei a primeira noite na casaqbetum amigo, compulsivamente contando os detalhes do que aconteceu. Depois, retornei ao meu apartamento - aquele que estava pronto para a mudança - e basicamente me escondi lá por uma semana.

Sempre tinha sido uma pessoa correta, que trabalhava duro para tirar boas notas e para estar à altura das expectativas dos meus pais e professores, mas cresci com a sensação que desapontava um pouco. Então depois do acidente eu passei a me preocupar, num nível bem inconsciente, sobre se eu era uma pessoa boa ou ruim.

Muita gente acredita na ideiaqbetque criamos as bases para nossas próprias vidas - uma pessoa com ódio enxerga um mundo hostil, e uma pessoa amável experimenta um mundo generoso e bom. Então eu pensava: "Que tipoqbetpessoa tem esse tipoqbetexperiência? Só pode ser uma pessoa perigosa."

Quando meu carro voltou da oficina eu tentei voltar a dirigir, mas tinha alucinações. Eu dirigia e,qbetrepente, via alguém atravessando a rua, pisava no freio, mas não tinha ninguém ali.

Era uma coisa muito perigosaqbetse fazer. Estava tão assustada que não consegui usar o carro por mais ou menos dois anos.

Eu tinha flashbacks que apareciam na minha cabeçaqbetrepente. Eu podia estar no meioqbetuma conversa, lavando os pratos ou fazendo mercado e, do nada, visualizava a criança voando pelos ares depoisqbeteu a atropelar, ou uma poçaqbetsangue na estrada - imagens horríveis.

Passei alguns anos me punindo, afastando as pessoasqbetmim. Eu namorava homens que me tratavam muito mal e não tinha amigos. Eu estava sempre muito irritadiça e as pessoas que dividiam a casa comigo não gostavam da minha companhia, então eu me mudei da comuna para um apartamento, para morar sozinha.

Maryann Grayqbetfotoqbet1975, ao se formar na UniversidadeqbetDuke
Legenda da foto, Maryann Grayqbetfotoqbet1975, ao se formar na UniversidadeqbetDuke | Fonte: Arquivo pessoal

Dois anos depois do acidente, me mudei para a Califórnia para começar um programaqbetpós-graduaçãoqbetpsicologia e isso, realmente, foi um novo começo para mim. Eu estava intelectualmente engajada e fazendo algo que eu sentia ser importante e útil. Isso gerava uma sensação muito boa.

Eu basicamente pareiqbetfalar sobre o acidente, seguindo o conselho dos meus pais, que disseram que, se as pessoas soubessem o que eu fiz, poderiam me verqbetforma diferente.

Eu frequentemente me refiro a esse menino, Brian, como meu fantasma, porque ele se tornou parteqbetmim. A voz dele, na minha mente, se tornou uma voz bem punitiva, raivosa, que dizia: "Não seja feliz. Você se lembra o que aconteceu da última vezqbetque você ficou feliz? Você matou uma criança, você me matou".

Eu ouvia essa voz diversas vezes todos os dias. Por isso, mesmo que gostasse dos meus estudos e amasse viver na Califórnia, sempre havia essa voz me segurando. Eu tinha matado uma criança e nunca esqueceria isso.

Eu pensei no Brian no diaqbetque me casei. Eu pensei no Brian no diaqbetque meu pai morreu. Eu pensei no Brian no diaqbetque defendi minha dissertação. Eu pensei no Brian no diaqbetque comecei um novo emprego. Ele viveu comigo.

Eu me casei quando tinha 30 e poucos anos. Contei ao meu marido sobre o acidente, mas nunca falamos sobre o assunto. Ele não me fez perguntas e eu não queria impor essa dor a ele - era um problema meu e eu não sentia que tinha o direitoqbetpedir consolo.

Maryann Gray
Legenda da foto, "Eu me perdoo, mas acho que nunca ficarei totalmenteqbetpaz comigo mesmo com o fatoqbetter matado uma criança. Eu nunca deixareiqbetme horrorizar com isso" | Foto: Arquivo pessoal

"Nunca terá filhos"

Antes do acidente eu nunca conseguiria imaginar uma vida sem crianças. Eu era a babá mais requisitada da vizinhança quando estava no ensino médio. E eu adorava. Preferia cuidarqbetcrianças a sair com meus amigos.

Na primeira semana após o acidente, quando eu me refugiei no meu apartamento, ouvi uma voz. Eu chamo issoqbetalucinação auditiva. O que a voz disse foi bem bíblico, ao estilo raivoso do Velho Testamento: "Você tirou uma criança da mãe e aqbetpunição será nunca ter filhos".

Eu não falei sobre isso por, pelo menos, 20 anos. Por todo esse tempo.

Eu passei a ficar muito tensa ao redorqbetcrianças - tudo o que eu enxergava eram as quinas pontiagudas dos móveis nas quais elas podiam esbarrar, a piscina onde poderiam se afogar, as escadasqbetonde podiam cair, a faca com a qual poderiam se cortar.

Eu não queria criar uma criança assustada e não achava que seria uma boa mãe, por isso decidi não ter filhos, o que é uma grande tristeza, mas acho que foi a decisão certa para mim. Eu teria muitas dificuldades no papelqbetmãe.

Compartilhando a história

Eu queria realizar uma sérieqbetmetasqbetvida bem comuns - terminar meus estudos, arrumar um emprego, encontrar um parceiro. Do meio para o final da décadaqbet90, decidi que era o momentoqbetfazer terapia.

Eu carreguei essas memórias comigo e elas tomavam boa parte da minha vida interior e me separavamqbetoutras pessoas. Meus amigos sabiam que eu ficava nervosa ao dirigir, mas não sabiam o motivo. Eu me sentia triste, às vezes, e o motivo era o acidente, mas eu não podia falar sobre isso.

As pessoas achavam que me conheciam, mas eu não falava sobre o evento mais significativo da minha vida.

Em 2003, houve um acidente no Mercado RuralqbetSanta Monica. Um homem idoso atropelou um grupoqbetpessoas e vários morreram ou se feriram. Eu morava pertoqbetlá e estávamos assistindo à cobertura televisiva. Podíamos ouvir o som dos helicópteros.

Maryann jogando tênis com o pai,qbet1976 ou 1977, antes do acidente | Fonte: Arquivo pessoal
Legenda da foto, Maryann jogando tênis com o pai,qbet1976 ou 1977, antes do acidente | Fonte: Arquivo pessoal

Era uma carnificina, uma cena horrível.

As pessoas apareciam na TV gritando que esse homemqbet86 anos era um assassino, mas a ideiaqbetque ele teria a intençãoqbetcausar essas mortes me deixou horrorizada.

Eu fiquei tão perturbada com esse acidente que fechei a porta do meu escritório e despejei no papel algumas palavras sobre a empatia que eu sentia pelo motorista e pelas vítimas, sobre minha experiência e sobre a faltaqbetapoio a pessoas que acidentalmente tiraram a vidaqbetoutras pessoas.

Na época, eu estava participandoqbetum workshopqbetescrita, e decidi mandar o que eu tinha escrito para a mulher que coordenava o grupo. Ela me ligou e disse: "Você deveria enviar isso para a Rádio Pública Nacional".

Se eu realmente tivesse acreditado que haveria alguma chanceqbeteles transmitirem o material, eu provavelmente não teria enviado. Mas eu mandei o texto e,qbetrepente, a rádio estava me ligando e perguntando se eu poderia fazer uma gravação.

Eu estava muito ansiosa, mas também achava que alguém precisava demonstrar compaixão por esse homem e por outros que acidentalmente já mataram alguém na vida.

A gravação foi transmitida dois ou três dias após o acidente.

Eu fui informada que precisaria me preparar para e-mailsqbetódio, para comentários negativos na internet e para receber ligaçõesqbetpessoas querendo me intimidar.

Mas o que aconteceu foi absolutamente positivo, houve uma grande ondaqbetapoio. Os amigos mais próximos que me ouviram na rádio demonstraram compaixão e vontadeqbetajudar. Eles me disseram que eu tinha sido forte por falar e que sentiam muito pelo que sofri.

Algo floresceu dentroqbetmim. Eu senti um enorme sentimentoqbetalívio eqbetconexão com as pessoas ao meu redor e com o mundo.

Eu também tive contato com outras pessoas que acidentalmente mataram e que tiveram experiências similares às minhas - os sintomas pós-traumáticos, os flashbacks desconectados, a dificuldade na concentração e, claro, vergonha e culpa.

Foi muito poderoso porque nenhumqbetnós tinha conversado com alguém que tivesse tido a mesma experiência.

A carta à mãeqbetBrian

Por anos, eu penseiqbetcontatar a família do Brian, mas me contive porque não sabia se eles iriam querer isso. Eu não tinha muito dinheiro, mas eu fiz uma doação anônimaqbetalguns milharesqbetdólares para a faculdade do irmão dele, para pagar parte da matrícula.

Então, cercaqbet10 anos atrás, fiz uma viagem a Israel. Eu sou judia, e fui com meu rabino e outras pessoas a um templo. Quando estava lá, eu adotei um nome hebraico, Bracha, que significa benção. Eu escolhi esse nomeqbethomenagem ao Brian.

Quando chegueiqbetcasa, escrevi uma carta para a mãeqbetBrian. Eu disse a ela que havia adotado esse nomeqbetmemória do filho dela e que Brian vivia no meu coração, assim como eu sabia que vivia no coração dela.

E mandei a carta.

Maryann Gayqbetcima do carro que dirigia ao atropelar Brian. Essa foto foi tirada um ou dois anos antes do acidente
Legenda da foto, Maryann Gayqbetcima do carro que dirigia ao atropelar Brian. Essa foto foi tirada um ou dois anos antes do acidente | Fonte: Arquivo pessoal

O contato

Mas a mãe do Brian havia morrido e a correspondência estava sendo encaminhada ao outro filho dela, o irmão mais velhoqbetBrian.

Um dia, eu estava sentada no meu escritório, quando atendi a um telefonema e era ele. Ele tinha lido a minha carta e me achou na internet.

Conversamos por cercaqbet45 minutos. Foi uma conversa emotiva. Ele estava com muita raiva e me contou o quanto a família dele havia sofrido.

Eles pararamqbetcelebrar o Natal porque era muito próximo do aniversárioqbetBrian e todas as outras datas familiares tipicamente alegres foram silenciadas para sempre. Eles nunca mudaram o quartoqbetBrian. Mantiveram tudo como estava, então havia uma lembrança constante do menino na casa.

O luto nunca terminou para nenhum dos membros da família.

À medida que conversávamos, ele ia se acalmando. Ele não sabia que eu havia telefonado para prestar condolências e que eu tive uma breve conversa com o pai dele alguns dias após o acidente.

O paiqbetBrian tinha sido muito gentil comigo e isso teve um impacto grandeqbetmim.

No final da conversa, eu disse: "O que você quer me perguntar? Você pode me pedir o que quiser."

Ele perguntou: "Você estava correndo?"

E eu disse: "Não, eu não estava correndo. Eu sinto muito. Eu sinto muito mesmo, mas seu irmão apareceu na frente do meu carro".

E ele disse: "É, eu sei. Hora errada e lugar errado."

Naquele momento, eu me senti perdoada e pensei que talvez ele fosse capazqbetsentir um luto puro, sem a tintaqbetraiva que havia colorido seu sofrimento até então.

Quando desligamos o telefone, certamente não senti que éramos amigos, mas foi como se tivéssemos uma conexão incrível, porque nós dois ainda estávamosqbetluto por aquela criança e sempre teríamos issoqbetcomum.

O perdão

Eu me perdoo, mas eu vivo aterrorizadaqbetque possa machucar mais alguém. Eu moroqbetLos Angeles e dirijo o tempo todo, mas sou muito cautelosa.

Eu tentei honrar Brian e a família dele ajudando os outros e sendo uma pessoa melhor, mas acho que nunca ficarei totalmenteqbetpaz comigo mesma por ter matado uma criança. Eu nunca deixareiqbetme horrorizar com isso.