‘Parece leite, mas não é’: como crise 'empobreceu' a fórmula dos produtos lácteos do Brasil:

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Legenda da foto, Versõeslácteos com soroleite, amido, gordura vegetal, açúcar e aditivos se tornaram muito mais comuns nos mercados brasileiros

"Do pontovista nutricional, isso pode ser danoso", alerta Rafael Claro, professor da Universidade FederalMinas Gerais (UFMG).

"A estratégia é trocar um alimento in natura por ingredientes mais baratos e com baixa densidadenutrientes."

"Ou seja: a pessoa compra um produto que parece leite, mas não é", resume.

Que fique claro: a venda dessas opções está regulamentada nos órgãos competentes, como o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) ou a Agência NacionalVigilância Sanitária (Anvisa), e, a princípio, não fere nenhuma lei.

O grande problema,acordo com os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, é que vários desses alimentos lácteos "alternativos" têm uma embalagem muito similar à original, trazem no rótulo elementos que remetem ao leite — como vacas, pastos, tonéis e líquidos brancos — e são colocados nas mesmas prateleiras que os produtos tradicionais.

Para completar, nem sempre as novas opções são muito mais baratas — ou a diferençarelação aos itens convencionais éapenas alguns centavos.

O que está por trás do fenômeno

A pesquisadora Kennya Beatriz Siqueira, da Embrapa GadoLeite,JuizFora (MG), explica que as movimentações recentes da indústria dos produtos lácteos têm a ver com a crise financeira, a inflação e a escassezmatéria-prima no mercado.

"Nos últimos dois anos, tivemos um aumento62% no custoprodução do leite", calcula.

A especialista explica que toda a cadeia produtiva sofreu com o aumento dos preços: os custos da ração que alimenta as vacas, da energia elétrica que mantém o funcionamento dos currais e do próprio combustível que transporta esse alimento subiram consideravelmente.

"Por conta disso, muitos produtores se desfizeramparte do rebanho e venderam as vacas menos produtivas para os abatedouros."

Isso, porvez, significa que há menos leite saindo das fazendas brasileiras.

"Para completar, o meio do ano é o períodoentressafra do leite, já que as pastagens não estão boas por causa do clima seco e da temperatura fria", complementa.

A união desses fatores fez com que o leite (e os produtos lácteos no geral) se transformassem nos "vilões da inflação" durante os últimos meses.

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Legenda da foto, Crise impactou a produçãoleite nas fazendas brasileiras

De acordo com o ÍndicePreços ao Consumidor (IPCA), o leite longa vida acumula uma alta57% no ano.

Outros itens também registraram uma subida considerável. Apenasjulho, houve um aumento19% no leite condensado, 17% na manteiga, 16% no queijo e 14% no requeijão.

Hora do plano B

Com menos matéria-prima no mercado e um preço cada vez mais elevado, a estratégia da indústria foi substituir uma parte do leite que ia nas formulações originais dos produtos lácteos.

Uma porção desse ingrediente, então, foi trocada pelo soro do leite, um composto que "sobra" e antigamente era descartado durante a fabricaçãoqueijos.

Para ter ideia, a produçãoum quiloqueijo gera cercaoito litrossoro,média.

E vale destacar que esse soro, apesartrazer menos nutrientes, não faz mal à saúde e pode ser consumido.

"O soro, porém, tem uma base sólida muito menor do que o leite. Essencialmente, ele é água, com um teor menorproteínas e carboidratos. E isso muda a composição do produto final para algo pior do pontovista nutricional", diz Claro.

Porém, muitas vezes essa troca simplesleite por soroleite não é suficiente para manter o aspecto sensorial daquele alimento — afinal, o soro traz menos proteínas e gorduras que o leite "inteiro", como você confere na tabela a seguir.

Para garantir que o produto "alternativo" fique mais parecido com o original, as empresas acrescentamleites condensados, requeijões e bebidas lácteas no geral alguns ingredientes complementares, que dão consistência e sabor, como o amido, a gordura vegetal e o açúcar.

"Falamos aquicompostos que barateiam o custo daquele alimento", resume a nutricionista Carolina Grehs, cofundadora do Desrotulando, um aplicativo que analisa e dá notas aos alimentos vendidos nos supermercadosacordo com uma sériecritérios relacionados à saúde.

Em alguns casos, a adição desses compostos não é suficiente e as empresas precisam acrescentar outros compostos químicos, como emulsificantes, adoçantes e aromatizantes.

Gato por lebre?

Por um lado, essa estratégia não traz nadaerrado do pontovista legal e regulatório. "Esses alimentos não são exatamente uma novidade e têm nomes e regras bem definidos na legislação", esclarece Grehs.

"A indústria está cumprindo o seu papel ao lançar produtos que atendem às demandas da população", opina Siqueira.

"As empresas lidam com a escassezmatéria-prima, mas tentam oferecer alternativas ao consumidor", defende a pesquisadora da Embrapa GadoLeite.

Por outro, os especialistas criticam a faltaclareza na comunicaçãomuitos desses novos produtos — muitas vezes, a embalagem é tão parecida à original que o consumidor nem percebe que está comprando algo diferente daquilo que esperava.

"Há casosque as bebidas lácteas são colocadas nas mesmas gôndolas do leite. E o rótulo delas traz um copo com líquido branco e outros elementos gráficos que remetem ao leiteverdade", observa Grehs.

"Vemos que alguns desses novos lácteos são vendidos por um preço muito parecido ou até mais altocomparação com as versões anteriores", complementa.

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Legenda da foto, Ler o rótulo do lácteo com cuidado é uma das maneirasescapar das armadilhas

A BBC News Brasil entroucontato com a Associação Brasileira dos ProdutoresLeite (Abraleite), e a Associação BrasileiraLaticínios (Viva Lácteos) para que elas pudessem se posicionar a respeitotoda discussão, mas não foram enviadas respostas até a publicação desta reportagem.

Procurada, a Nestlé, responsável pela fabricação do Leite Moça, enviou uma nota dizendo que a versão atualizada do leite condensado é "um novo produto da linha Moça que possui os mesmos ingredientes do Moça Tradicional, porém,quantidades diferentes, com adiçãosoroleite e amido".

"Trata-seum produtoalta qualidade, sem gordura vegetal, estabilizantes ou espessantes, e é uma opção no portfólio da marca para consumidores que buscam soluções com menor desembolso, sem abrir mão do resultado e da qualidade Nestlé", finaliza o texto.

Prejuízos nutricionais e culinários

Alémuma possível confusão na hora da compra, o consumo constante desses produtos gera preocupação entre os especialistas.

"A substituição do leite por outros ingredientes significa que o produto vai ter menos proteínas e vitaminas, o que representa um prejuízo na alimentação", analisa a nutricionista Laís Amaral, supervisora técnica do ProgramaAlimentação Saudável e Sustentável do Instituto BrasileiroDefesa do Consumidor (Idec).

Outro ponto que chama a atençãoalguns desses produtos é o acréscimoaçúcar nas formulações.

"Uma coisa é consumir a lactose, o açúcar natural do leite. Outra muito diferente é o açúcar adicionadooutras fontes, como o xaropeglicose", compara Grehs.

"Isso nos preocupa, pois o leite é um elemento central na dietamuitos brasileiros e observamos níveis crescentesobesidade na nossa população, que está relacionada ao consumo excessivoalimentos calóricos e ricosaçúcar."

Segundo a Embrapa, cada brasileiro consome uma média166 litrosleite por ano — taxa que aumenta exponencialmente desde os anos 1990.

Além da menor qualidade nutricionalalguns desses lácteos "alternativos", é preciso prestar atenção na adição dos compostos que terminam com "ante" neles, como os corantes, os emulsificantes, os adoçantes…

"São ingredientes que barateiam a produção, fazem com que aquele alimento seja minimamente comestível e mudam substancialmente a parte sensorial do produto", explica Amaral. Isso faz com que muitos desses novos lácteos se encaixem na categoria dos ultraprocessados.

Na listaingredientesuma mistura alimentíciaqueijo ralado, por exemplo, é possível saber que ele contém amidomilho e/ou amidomandioca, ricotapó, queijos ralados, soroleitepó, cremeleite, acidulante ácido cítrico, antioxidante lecitina, conservantes sorbatopotássio e ácido sórbico, aroma idêntico ao naturalqueijo parmesão e corante artificial amarelo crepúsculo.

Já no queijo ralado tradicional, essa tabela costuma ser bem mais enxuta: o produto é feito geralmentequeijo ralado (leite pasteurizado, fermento, sal e coalho bovino) e conservante ácido sórbico.

De acordo com o Guia Alimentar para a População Brasileira, publicado pelo Ministério da Saúde2014, o consumoalimentos ultraprocessados, que trazem muitos desses ingredientesnome complicado e não são encontrados facilmente na despensa ou na geladeiranossas casas, deve ser evitado sempre que possível.

"Devido a seus ingredientes, alimentos ultraprocessados — como biscoitos recheados, salgadinhos 'de pacote', refrigerantes e macarrão 'instantâneo' — são nutricionalmente desbalanceados. Por contasua formulação e apresentação, tendem a ser consumidosexcesso e a substituir alimentos in natura ou minimamente processados. As formasprodução, distribuição, comercialização e consumo afetammodo desfavorável a cultura, a vida social e o meio ambiente", aponta o texto.

"A fabricaçãoalimentos ultraprocessados, feitageral por indústriasgrande porte, envolve diversas etapas e técnicasprocessamento e muitos ingredientes, incluindo sal, açúcar, óleos, gorduras e substânciasuso exclusivamente industrial", contextualiza o guia.

Além dos riscos nutricionais, Grehs chama a atenção para outro aspecto relevante do uso dos lácteos alternativos: possíveis alterações na textura e no gostopratos típicos e muito populares.

"Algumas misturas lácteas geram problemasreceitas que dependem da gordura para formar a estrutura daquele preparo, comopudins e brigadeiros."

De acordo com a especialista, o usoalguns dos novos produtos nas receitas muda o aspecto sensorial desses doces — o brigadeiro, por exemplo, pode não chegar ao ponto ideal, quando ele começa a se desgrudar do fundo da panela, enquanto o pudim não ganharia aquela consistência típica do quitute.

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Legenda da foto, A mudança nos lácteos pode modificar o aspecto finalreceitas típicas — como o brigadeiro

O que fazer?

Rafael Claro, da UFMG, entende que a solução óbvia é evitar o consumo desses alimentos ultraprocessados e consumir produtos frescos, se possível.

Mas o especialista entende que essa é uma discussão que ultrapassa os limites da nutrição e envolve assistência social e políticas públicas — ainda mais num cenáriocrise econômica e inflaçãoalta. "Nem todo mundo pode comer itens frescos e in natura, porque eles costumam ser mais caros."

"Muitas pessoas não têm dinheiro para comprar um litroleite integral ou meio queijo. Daí elas precisam partir para as bebidas lácteas e as versões alternativas."

"Mas fornecer um alimento 'porcaria' barato para os mais pobres não pode ser visto como um caminho para nosso futuro como país", protesta.

"Também precisamos pensar que grande parte desses produtos lácteos ultraprocessados não são necessários para a alimentação. Se eles não representam uma alternativa para garantir a segurança alimentar, a orientação é que eles não sejam incorporados aos hábitosconsumo", conclui.

Siqueira, da Embrapa GadoLeite, entende que a tendência é que a inflação dos lácteos fique mais controlada nos próximos meses.

"A gente espera a importaçãomatéria-prima e uma melhora nos custosprodução. A expectativa é que tenhamos uma redução nos preços já neste segundo semestre", projeta.

Do pontovista prático, Grehs orienta que os consumidores fiquem atentos ao nome técnicocada produto, que apareceletras menores na parte frontal do rótulo — é ali que você vai saber se está dianteum cremeleite ouuma misturacremeleite, por exemplo.

"E mesmo dentro das misturas lácteas, é possível procurar opções melhores e mais saudáveis. Algumas só trazem soroleite e amido, enquanto outras têm o acréscimoaçúcar e aditivos químicos", sugere.

Para checar essas diferenças, vale ler a listaingredientes que aparece na parte traseira da embalagem. Se itens como "xaropeglicose", "açúcar" ou "gordura vegetal" aparecem logocara, é bom ligar o sinalalerta.

"Além disso, se a palavra 'sabor' está no rótulo, isso significa que há a adiçãoaromatizantes para reforçar o paladar, como é o casoopções como o 'pó para preparobebida sabor leite' ou a 'bebida láctea sabor morango'", acrescenta a nutricionista.

Por fim, caso o consumidor se sinta lesado e enganado na horaque comprou alguns desses compostos lácteos, é possível acionar órgãosfiscalização.

"Se você achar que comprou gato por lebre, pode fazer denúncias no Procon, no site consumidor.gov.br e no ObservatórioPublicidadeAlimentos", finaliza Amaral.

- Este texto foi originalmente publicadohttps://www.http://vesser.net/brasil-62510188

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