Tratamento precoce | 'Kit covid é kit ilusão': os dados que apontam riscos e faltaeficácia do suposto tratamento:
Ao longo dos últimos meses, diversas entidades nacionais e internacionais se posicionaram contra o coquetelmedicamentos promovido pelo governo Bolsonaro, que inclui a hidroxicloroquina, a azitromicina, a ivermectina e a nitazoxanida, além dos suplementoszinco e das vitaminas C e D.
Atualmente, esse mix farmacológico não é reconhecido ou chega a ser contra-indicado por entidades como a Organização Mundial da Saúde (OMS), o CentroControle e PrevençãoDoenças dos Estados Unidos e da Europa, a Agência NacionalVigilância Sanitária (Anvisa) e a Sociedade BrasileiraInfectologia (SBI).
Mas antesentrar nos detalhes sobre como tantas instituições chegaram a essa conclusãoque esses remédios não são eficazes eque não existe tratamento precoce que funcione contra a covid-19, é importante explicar como surge um novo remédio contra determinada doença e como esse processo pode ser acelerado durante uma pandemia.
Da bancada do laboratório à prateleira da farmácia
Geralmente, a descobertaum novo tratamento se inicia com a pesquisa básica. Um grupocientistas começa a estudar uma molécula para entender suas características e seus potenciaisuso.
Essa substância, então, é testada num pequeno conjuntocélulas na bancada do laboratório. O objetivo aqui é entender se as coisas funcionam como o esperado e se aquele composto tem alguma ação interessante dentroum sistema biológico simples.
Se tudo der certo, a próxima etapa inclui testes com cobaias. A nova molécula é administradacamundongos, macacos e outros animais que apresentam algumas características semelhantes ao que ocorre no corpo humano.
Caso a candidata apresente bons resultados, ela passa para a nova etapa: os testes clínicos. Esses estudos são divididostrês fases, envolvem centenas ou até milharesseres humanos e têm como objetivo final garantir a segurança e a eficácia daquela nova formulação.
O teste clínicofase 3 costuma ser o mais rígido e amplotodos. Para comprovar que aquele novo medicamento é realmente bom, os cientistas dividem os voluntáriospelo menos dois grupos.
O primeiro deles toma doses do remédioverdade. Já o segundo vai receber uma substância placebo (sem nenhum efeito no organismo) ou o melhor tratamento existente até aquele momento contra a doença que o novo candidato a farmáco promete combater.
O ideal é que nem os cientistas, muito menos os participantes do estudo, saibam quem integra qual grupo. Isso evita vieses ou o chamado efeito placebo, quando a pessoa se sente melhor por acreditar que foi tratada, mesmo quando recebeu um comprimidofarinha.
O que acabamosdescrever aqui é um estudo randomizado (os voluntários são sorteados para entrarum esquema terapêutico ou no outro), duplo cego (os participantes e os cientistas não fazem ideiaquem recebeu o quê) e controlado (uma parte do grupo tomou placebo ou a melhor terapia disponível até então). É considerado o padrão-ouro das pesquisas.
Depoistodo esse rito, os resultados dos dois grupos são comparados. O esperado é que a turma sorteada para tomar o candidato à medicamento esteja melhorrelação a quem fez parte do grupo placebo. Também é essencial que a nova molécula não provoque efeitos colaterais graves demais.
Os relatostodo esse esforço são então publicados num jornal científico, onde eles passam por uma revisãoespecialistas independentes e, caso sejam aprovados, poderão ser lidos, contestados e repetidos por outros grupospesquisaqualquer lugar do mundo.
Se os resultados forem bons, os donos daquele novo produto entram com um pedidoaprovação nas agências regulatórias, como a Anvisa no Brasil e o FDA nos Estados Unidos. Se essas entidades estiveremacordo com o que foi apresentado, elas liberam o uso do novo medicamento no país.
Para você ter ideia como esse processo é complicado e criterioso,cada 5.000 moléculas testadascélulas e cobaias, apenas uma consegue passar por todas as etapas e chegar às farmácias e aos hospitais. Esse processo dura,geral, 12 anos e exige um investimentoUS$ 2,6 bilhões.
Dá pra acelerar esse processo?
É claro que, durante uma pandemia que ceifa milharesvidas todos os dias, torna-se impraticável esperar maisuma década para encontrar uma solução.
Uma estratégia que permite agilizar as coisas é o chamado reposicionamentofármacos. Em resumo, os cientistas começam a avaliar um monteremédios já disponíveis para tratar outras doenças. Quem sabe eles também não podem ajudar num contexto diferente?
"É possível pegar vários medicamentos aprovados e utilizar uma plataforma automatizada para fazer testes com culturascélulas. Assim já se descartam aquelas que não mostraram efeito algum e se delimita um grupomoléculas que apresentam algum potencial", explica o microbiologista Luiz Almeida, coordenadorprojetos educacionais do Instituto QuestãoCiência.
Esse processo funciona como uma peneira: o objetivo é descartar o material que não tem serventia e selecionar, mesmo que grosseiramente, aqueles que podem ajudaralguma maneira.
O reposicionamento traz algumas vantagens. O principal deles é o fatotrabalhar com produtos que já estão aprovados pelas agências regulatórias e, portanto, já se mostraram relativamente seguros à saúde humana.
Importante mencionar que, para comprovar o seu valor diantequalquer enfermidade, os remédios (mesmo os reposicionados) precisam passar por aqueles estudos randomizados, duplo cegos e controlados que explicamos um pouco acima.
E isso tudo aconteceu com intensidade a partirfevereiro e março2020: quando diversos especialistas notaram a gravidade da covid-19, houve uma verdadeira corrida para conferir se algum produto farmacêutico já aprovado poderia servir como solução.
Foi assim que hidroxicloroquina, azitromicina, ivermectina e tantas outras candidatas entraram na história da pandemiacovid-19.
Hidroxicloroquina, uma droga apadrinhada por Trump e Bolsonaro
O potencial da hidroxicloroquina contra a covid-19 começou a ser explorado a partirum pequeno trabalho publicado na China. Mas ela só ganhou as manchetes com a publicaçãoum estudo feito pelo médico francês Didier Raoult e porequipe.
Divulgadamarço2020, a pesquisa envolvia 36 pacientes e afirmava que o remédio, usado no tratamentodoenças como malária, lúpus e artrite reumatoide, era capazdiminuir a cargacoronavírus no organismo.
E mais:acordo com as conclusões do experimento, esses benefícios eram ainda maiores se a azitromicina (um antibiótico) fosse administradaconjunto.
Apesar da esperança inicial, os cientistas rapidamente começaram a notar que havia algo muito estranho nessa história. "A publicação do artigo foi muito criticada, pois estava cheiaerros metodológicos e coisas sem explicação", relembra o médico Jose Gallucci-Neto, do InstitutoPsiquiatria do Hospital das ClínicasSão Paulo.
Em setembro, Raoult foi denunciado pela SociedadePatologia InfecciosaLíngua Francesa (SPILF) por "promoção indevidamedicamento". Agorajaneiro, o médico admitiu numa carta ter excluído alguns voluntários do resultado da pesquisa.
"Ao avaliar esses dados completos, com esses participantes que ficaramfora do artigo original, o resultado da hidroxicloroquina é negativo e não houve reduçãomortalidade, necessidadeUTI ou oxigenação", completa Gallucci-Neto.
Mesmo com essas suspeitas iniciais e as correções posteriores, o estrago já estava feito. Ainda no primeiro semestre2020, o então presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, bancou a ideiaRaoult. O então presidente escreveu que a hidroxicloroquina "deveria ser colocadauso imediatamente, pois pessoas estão morrendo".
As convicçõesTrump encontraram ressonânciaoutro ponto do continente americano, mais especificamente no Brasil. O presidente Jair Bolsonaro também fez ampla defesa do uso da hidroxicloroquina contra a covid-19.
No dia 21março, ele publicou um vídeo no Twitter intitulado "Hospital Albert Einstein e a possível cura dos pacientes com o covid-19",que anuncia que o laboratório químico e farmacêutico do Exército Brasileiro iria ampliar a fabricação desse medicamento.
Ao longo dos meses, não faltaram demonstraçõesapoio à hidroxicloroquina. Bolsonaro levou o fármaco a tiracolodiversos vídeos e transmissões ao vivo.
A hidroxicloroquina também foi um dos motivos centrais da quedadois ministros da Saúde. Os médicos Luiz Henrique Mandetta (que dirigiu o ministério entre 1ºjaneiro2019 a 16abril2020) e Nelson Teich (que liderou a pasta17abril a 15maio2020) saíram após pressões e discordâncias sobre o uso amplo desse medicamento para combater a pandemia no país.
Mas o que diz a ciência sobre a hidroxicloroquina?
Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil entendem que era até compreensível usar a hidroxicloroquina nos momentos iniciais da pandemia,meadosmarço, abril e maio2020 — afinal, os médicos estavam tateando no escuro e lidavam com uma doença sobre a qual não havia experiência nenhuma.
A partirjunho e julho, porém, começaram a ser publicados estudos mais robustos a respeito do tema. Eles mostravam que esse remédio realmente não funcionavaqualquer estágio da doença, seja antes do início dos sintomas, seja no leitouma UTI.
"Atualmente, temos uma enorme quantidadeevidências mostrando que a hidroxicloroquina não é efetiva como tratamento da doença nos quadros graves, nos leves ou como profilaxia, para impedir que o vírus invada nossas células", afirma a pneumologista brasileira Letícia Kawano-Dourado, que faz parte do painel da Organização Mundial da Saúde (OMS) que desenvolve diretrizestratamento contra a covid-19.
Nos últimos meses, vários estudos foram publicados a respeito do tema. Um dos mais importante deles foi feito no Reino Unido e é conhecido como Recovery Trial. Numa análisemais4.500 pacientes hospitalizados, o usohidroxicloroquina e azitromicina não trouxe benefício algum.
O mesmo resultado foi observado na pesquisa da Coalizão Covid-19 Brasil, com cerca500 voluntários brasileiros com a infecção pelo coronavírusestágios leves ou moderados. Mais uma vez, a duplafármacos não mostrou o efeito desejado.
Além disso, os tratamentos testados foram associados a efeitos adversos mais frequentes, principalmente aumento do chamado intervalo QT, um sinalmaior risco para arritmia detectado por eletrocardiograma; e aumentoenzimas TGO/TGP no sangue, alteração que pode indicar lesão no fígado.
Segundo documento da Sociedade BrasileiraInfectologia, outros efeitos adversos são retinopatias, hipoglicemia grave e toxidade cardíaca. Por isso, é "exigido contínuo monitoramento médico dos indivíduosuso da cloroquina ou hidroxicloroquina". E outros efeitos colaterais possíveis são diarreia, náusea, mudançashumor e feridas na pele.
Numa nota informativa publicadaseu site, a Organização Pan-AmericanaSaúde (Opas) também orienta sobre ineficácia do uso desse esquema terapêutico:
"As evidências disponíveis sobre benefícios do usocloroquina ou hidroxicloroquina são insuficientes, a maioria das pesquisas até agora sugere que não há benefício e já foram emitidos alertas sobre efeitos colaterais do medicamento. Por isso, enquanto não haja evidências científicasmelhor qualidade sobre a eficácia e segurança desses medicamentos, a Opas recomenda que eles sejam usados apenas no contextoestudos devidamente registrados, aprovados e eticamente aceitáveis."
Kawano-Dourado conta que o uso do fármaco contra o coronavírus é um assunto superado na maioria dos lugares. "A hidroxicloroquina e outras representantes do tratamento precoce seguempauta apenasalguns países subdesenvolvidos, como Brasil, Índia, Costa do Marfim e Filipinas."
Ivermectina, o antiparasitário que virou a bola da vez
A partir do segundo semestre, a ivermectina passou a disputar espaço como outra promessa contra a covid-19. Tudo começou a partirum estudo experimental com células,que esse remédio usado contra infestaçõesvermes, parasitas e ácaros mostrou ter poderfogo contra o coronavírus.
O problema, mais uma vez, estava emorigem. A dose utilizada neste trabalho inicial era absolutamente irreal. Alguns cálculos posteriores mostraram que, para obter o mesmo efeito visto na bancada do laboratório, seria necessário dar a seres humanos dosagensivermectina dez vezes superiores ao limite considerado seguro.
Em outras palavras, tudo indica que a quantidade necessáriaivermectina para "matar" o coronavírus num cenário realinfecção representaria um riscoefeitos colaterais gravíssimos e overdose nas pessoas.
Porém, ao contrário da hidroxicloroquina, cuja ineficácia contra a covid-19 está bem demonstrada pelos estudos publicados até o momento, a situação da ivermectina éincerteza.
Por aqui, ainda inexistem aqueles estudos randomizados, duplo-cegos e controlados por placebo sobre os quais falamos mais acima.
Os resultados das pesquisas feitas até agora ficam, então, contraditórios. Uma delas, do Centro InternacionalDoenças DiarreicasBangladesh, por exemplo, até revela uma diminuição da carga viral dos pacientes com covid-19, sem que isso resulte numa melhora significativa dos sintomas.
Um trabalho do InstitutoSaúde GlobalBarcelona, na Espanha indica que o uso da ivermectina aliviou um pouco os incômodos da infecção num grupovoluntários tratados. Mas os próprios autores admitem a necessidadetestes clínicos maiores para confirmar as observações.
Como pode ser visto, essas investigações são muito pequenas, com poucos participantes, e não têm significado prático. Tanto que as principais entidadessaúde do mundo, como os Institutos NacionaisSaúde dos EUA, não indicam o uso dessa droga como tratamento da covid-19.
Isso porque os estudos sobre o papel do antiparasitário são inconclusivos e os cientistas estão conduzindo investigações maiores para descartar ou recomendar seu uso durante a pandemia.
Portanto, não se recomenda que esse medicamento deva ser usado no atual estágio.
Azitromicina, sem efeitospacientes graves e riscosuperbactérias
Em setembro2020, um estudopesquisadores brasileiros publicado na Lancet, a segunda revista médica mais influente do mundo, afirmou que a azitromicina não leva a melhoraspacientes hospitalizados e, portanto, não tem indicaçãouso para casos graves.
Os pacientes foram divididos aleatoriamentedois grupos — 214 deles receberam azitromicina mais o tratamento padrão, e outros 183 receberam apenas o tratamento padrão, sem azitromicina. O tratamento padrão, feitoambos os casos, incluía a hidroxicloroquina, pois naquela época — entre março e maio — seu uso estava sendo bastante frequente.
Não houve diferença entre os dois gruposrelação a númeroóbitos nem ao tempointernação.
"Gostaríamos muito que tivesse funcionado, porque é um medicamento barato, conhecido e normalmente bem tolerado na questão dos efeitos colaterais", disse Luciano Cesar PontesAzevedo, médico do Hospital Sírio-Libanês e parte da equipe que assina o artigo no Lancet,entrevista à BBC News Brasil na época da publicação.
Ele esperava que, com os resultados, pelo menos a azitromicina deixasseser receitado indiscriminadamente no tratamento para covid-19, o que poderia levar a falta do medicamento para quem precisa e também aumento da resistênciabactérias. Isto porque a função original da azitromicina éantibiótico, muito usadoinfecções bacterianas nas chamadas vias aéreas superiores, como no nariz e garganta.
Nitazoxanida: da fama instantânea ao ostracismo imediato
De um dia para o outro, o vermífugo nitazoxanida ganhou os holofotes no Brasil como uma possível solução contra a covid-19.
No dia 19outubro2020, Bolsonaro e o ministroCiência, Tecnologia e Inovações, Marcos Pontes, anunciaram um estudo que mostrava que essa droga poderia ser útil como tratamento precoce.
Alguns dias depois, os resultados dessa pesquisa foram publicados no periódico científico European Respiratory Journal. De acordo com os especialistas ouvidos pela reportagem, as conclusões do teste foram consideradas muito fracas e sem nenhuma aplicação prática.
Prova disso é que, hojedia, a nitazoxanida nem faz parte do protocolo do já questionável tratamento precoce que foi encampado pelo Ministério da Saúde brasileiro.
Dexametasona, um dos poucos que vingaram
Nem sófracassos vive a estratégiareposicionamentofármacos contra a covid-19. Há pelo menos um medicamento já conhecido que mostrou seu valor nos quadros graves da infecção pelo coronavírus.
Falamos aqui da dexametasona, representante da classe dos corticoides, muito usada contra doençaspele, enfermidades reumatológicas, asma e alergias.
Um estudo capitaneado pela UniversidadeOxford, na Inglaterra, revelou que esse medicamento é um aliado valioso para os quadros que necessitaminternação.
"Em alguns pacientes, a infecção pelo coronavírus desencadeia uma forte reação inflamatória do organismo. Isso, porvez, passa a afetar diferentes órgãos e pode até causar a morte", contextualiza o médico Momtchilo Russo, professor sênior do DepartamentoImunologia do InstitutoCiências Biomédicas da UniversidadeSão Paulo (USP).
A dexametasona entra justamente nessa situação. Ela ameniza a pane inflamatória que se instalaparte dos quadros agravadoscovid-19.
Que fique claro: esse corticoide não é um tratamento precoce e nem deve ser usado por todo mundo que se contamina. Os médicos avaliam caso a caso e prescrevem esse fármacoacordo com critérios muito bem estabelecidos.
Um grupo anti-'kit covid' que só cresce
O avanço da ciência ao longo dos últimos meses permitiu que muitas entidades adotassem posturas contundentes contra a adoção do tratamento precoce ou do "kit covid".
No Brasil, um dos primeiros órgãos a se posicionar foi a Sociedade BrasileiraInfectologia (SBI). Em junho2020, a entidade produziu o primeiro documento analisando a pouca evidência científica disponívelalguns remédios, como a hidroxicloroquina.
Ao longo dos meses, a SBI atualizou esses pareceres e adotou uma posição muito firme contra o tratamento precoce. Em seu último informe, publicado no dia 19janeiro, a sociedade reafirma:
"As melhores evidências científicas demonstram que nenhuma medicação tem eficácia na prevenção ou no 'tratamento precoce' para a covid-19 até o presente momento. Pesquisas clínicas com medicações antigas indicadas para outras doenças e novos medicamentos estãopesquisa. Atualmente, as principais sociedades médicas e organismos internacionaissaúde pública não recomendam o tratamento preventivo ou precoce com medicamentos, incluindo a Agência NacionalVigilância Sanitária (Anvisa), entidade reguladora vinculada ao Ministério da Saúde do Brasil".
O médico Clóvis Arns da Cunha, presidente da SBI, relata que a repercussão dos posicionamentos fez com que ele próprio e vários membros da entidade fossem atacados pelas redes sociais e chegassem a receber até ameaçasmorte. "Isso exigiu muita resiliêncianossa parte e fez com que nos uníssemos e nos apoiássemos ainda mais", diz.
Cunha também se incomoda com a faltarespaldooutras entidades ao longo2020. A Associação Médica Brasileira (AMB) e o Conselho FederalMedicina (CFM) não chancelaram os posicionamentos da Sociedade BrasileiraInfectologia e não se manifestaram contra o tratamento precoce e o "kit covid".
O Conselho FederalMedicina chegou a dizer que caberia a cada médico decidir individualmente se prescreveria ou não hidroxicloroquina, ivermectina e afins.
Na última semana, o Conselho FederalMedicina soltou uma nota à imprensa afirmando que muitas dessas drogas "não contam com reconhecimento internacional".
Já a Associação Médica Brasileira teve uma mudançadiretoria a partirjaneiro2021. Os novos gestores da associação deram indicativosque terão uma postura mais ativa a partiragora — seu novo presidente, César Eduardo Fernandes, coassina o informe da Sociedade BrasileiraInfectologia citado acima.
A BBC News Brasil tentou entrarcontato com CFM e AMB, mas nenhuma das entidades respondeu aos pedidosentrevista.
Posição sem respaldo científico do governo federal
A despeitotodas evidências científicas e do posicionamentoentidades nacionais e internacionais, o Ministério da Saúde e algumas secretarias estaduais e municipaissaúde insistiram no tratamento precoce — embora o aplicativo do Ministério que recomendava o tratamento precoce tenha saído do ar recentemente.
No dia 16janeiro, o Twitter colocou um alertainformação duvidosauma mensagem postada pelo Ministério da Saúde. O texto dizia: "Para combater a covid-19, a orientação é não esperar. Quanto mais cedo começar o tratamento, maiores as chancesrecuperação. Então, fique atento! Ao apresentar sintomas da covid-19, #NãoEspere, procure uma UnidadeSaúde e solicite o tratamento precoce".
Ao ser perguntado sobre o assunto durante uma coletivaimprensa, o ministro Eduardo Pazuello disse que era preciso diferenciar o tratamento precoce do atendimento precoce.
"Nós defendemos, incentivamos e orientamos que a pessoa doente procure imediatamente o postosaúde. Que procure o médico e ele faça o atendimento clínico e o diagnóstico precoce dos pacientes. Tratamento é uma coisa, atendimento é outra", respondeu o general.
No entanto, uma breve análiseoutras falasPazuello confirma que ele insistiu no tratamento precoce diversas vezes e nos mais variados contextos.
Poucos dias anteso sistemasaúdeManaus entrarcolapso, o ministro esteve na cidade com assessores e um comitivamédicos justamente para falar com as autoridades locais a respeito do assunto.
Numa análise sobre a crise sanitária na capital amazonense, Pazuello afirmou: "Manaus não teve a efetiva ação no tratamento precoce com diagnósticos clínicos, no tratamento básico. Isso impactou muito a gravidade da doença".
Cunha, da SBI, rebate: "Eles levaram o kit ilusão, o kit covid, que desde junho todas as sociedades médicas científicas e autoridades sanitárias do mundo sabem que não funciona. Eles deveriam oferecer oxigênio, UTI e mais pessoas para tratar o querido povoManaus. Isso foi a gota finalquão errado o ministério estava."
Na última semana, o lançamento do aplicativo TrateCov também gerou uma sériepolêmicas. A plataforma do Ministério da Saúde serviria para orientar profissionais da saúde sobre as melhores condutas nos pacientes com sintomas sugestivoscovid-19.
O problema era que o app, que já foi retirado do ar, indicava as drogas do "kit covid" até diante dos sintomas mais simples, que na maioria das vezes melhoram com o passar do tempo.
A BBC News Brasil procurou o Ministério da Saúde para entrevistas, mas até o fechamento da reportagem não recebeu nenhuma resposta.
Efeitos imediatos (e para o futuro)
Mas qual o problemausar esses medicamentos todos como prevenção ou tratamento precoce contra a covid-19?
Em primeiro lugar, o uso desse coquetel dá uma falsa sensaçãosegurança. As pessoas podem sentir que estão protegidas por conta das medicações e relaxar nas medidas que realmente funcionam, como usomáscara, distanciamento físico e lavagemmãos.
"Além disso, muitos desses comprimidos e cápsulas podem provocar efeitos colaterais importantes se usadosforma inadequada", alerta a médica IrmaGodoy, presidente da Sociedade BrasileiraPneumologia e Tisiologia.
Há ainda uma preocupação específica com o uso indiscriminado da azitromicina, um tipoantibiótico usadoinfecções bacterianas como a gonorreia e a pneumonia.
Com tanta gente utilizando esse remédio sem necessidade, isso pode acelerar o processoresistência antimicrobiana — quando os micro-organismos criam mecanismos para "driblar" o tratamento e continuarem vivos.
Tudo indica que, no futuro, a azitromicina e outros antibióticos não serão mais capazesacabar com essas infecções e elas voltem a ser mortais.
"Recentemente, a OMS soltou um alertaaumentocasosresistência bacteriana pelo uso excessivoantibióticos como a azitromicina. Isso cria, por exemplo, quadros'supergonorreia'que não há tratamento", adverte a médica Viviane Cordeiro Veiga, coordenadoraUTI da BP-A Beneficência PortuguesaSão Paulo e participante da Coalizão Covid-19 Brasil.
Cuidar na medida certa
Os especialistas relatam que, ao se posicionarem publicamente contra o tratamento precoce, costumam ouvir sempre o mesmo argumento: "Mas eu conheço pessoas que tomaram hidroxicloroquina ou ivermectina e melhoraram".
O médico Leonardo Weissmann, do InstitutoInfectologia Emílio Ribas,São Paulo, esclarece que cerca80% das pessoas que pegam covid-19 têm formas leves, que regridempoucos dias independentementequalquer tratamento.
Há um segundo contraponto comum nas redes sociais. Muitos pacientes que estão com sintomas menos graves não se conformam com a orientação"só" ficarcasa isolados, sem necessidadenenhum comprimido específico. Eles temem uma piora, como o aparecimentofaltaar e uma posterior necessidadeintubação no hospital.
"Nos primeiros diascovid-19, é importante medir a oxigenação por meio do oxímetro, um aparelhinho facilmente encontrado nas farmácias. Se acontecer uma diminuição do oxigênio no sangue, busque uma orientação médica", indica Weissmann.
De resto, quadros leves da infecção pelo coronavírus exigem repouso, boa hidratação e, se necessário, medicação para sintomas como febre e dor no corpo. Caso os incômodos persistam ou apareça a faltaar, é horair até o pronto-socorro.
O que se sabe hoje...
Por fim, vale mencionar que a ciência é o campo das verdades provisórias. Isso significa que amanhã, ou daqui a um mês, podem surgir trabalhos que comprovem a eficácia e a segurançaalguns medicamentosdeterminadas doses para os estágios iniciais da doença.
"Nenhum médico ou entidade é contra o conceitotratamento precoce, desde que ele realmente funcione", esclarece Godoy, que também é professora da FaculdadeMedicinaBotucatu da Universidade Estadual Paulista (Unesp).
Enquanto não aparecem novidades farmacológicas contra a pandemia (e não há uma boa parcela da população vacinada), nos resta seguir respeitando as medidasproteção, como o usomáscaras, o distanciamento físico, a limpeza das mãos e a preferência por ambientes bem arejados.
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