'Eu era saudável, mas complicações após covid-19 mudaram minha vida':

Julia Franco

Crédito, Arquivo Pessoal

Legenda da foto, Um dos temoresJulia é que problema causado pela covid-19seu coração se torne crônico

Os efeitos da doença a surpreenderam, por se considerar uma pessoa jovem e saudável. "Não achava que fosse me sentir tão mal", relata à BBC News Brasil. Uma das maiores dificuldades, ela conta, era o sentimentoque o coração "sairia pela boca". "Nunca tive qualquer problema cardíaco, nem tenho histórico disso na família. Mas esse foi um dos meus principais sintomas", diz.

Um novo exame, no começojunho, apontou que Julia havia se recuperado da covid-19. O problema no coração, porém, continuou.

Agora, ela faz tratamento específico para o problema cardíaco. O temor da publicitária é que essa situação perdure ao longo da vida.

"Não sei como vai ser daqui para frente. É um vírus muito novo, ninguém sabe as possíveis sequelas. Ainda há muita coisa que os especialistas desconhecem sobre esse vírus", desabafa a publicitária.

O casoJulia demonstra que o coronavírus, que já infectou mais4 milhõesbrasileiros, pode deixar complicações sérias.

As consequências da covid-19 podem ser sentidasdiferentes partes do corpo. Enquanto a publicitária teve problemas no coração, há outras situações, por exemplo,dificuldades neurológicas, nos pulmões ou nos rins.

A infecção pelo vírus

Julia afirma que não sabe como contraiu o coronavírus. "Desde março, estoucasa. Sempre usei máscaras ao sair. Mas devo ter sido infectada quando fui à farmácia ou ao mercado", diz a publicitária, que moraSão Paulo (SP).

Os primeiros sintomas surgiram após uma aulabalé online. Ela sentiu dores intensas no corpo. "Parecia que eu havia pegado uma gripe bem forte. Estava ofegante. No dia seguinte, comecei a ter tosse seca, não sentia o cheironada e fiquei com febre", relata.

Ela procurou ajuda médica, foi aconselhada a permanecer isolada e fez o exame RT-PCR, que investiga a presençamaterial genético do vírus, o RNA. O primeiro resultado deu um falso negativo para a covid-19. "Como eu estava com muitos sintomas, a médica pediu para que eu repetisse o exame. O segundo, então, deu positivo", diz.

O cansaço extremo e os batimentos cardíacos acelerados eram os sintomas que mais incomodavam a publicitária. "No início, o meu coração acelerava somente quando eu fazia algum esforço. Depois, se tornou uma situação constante", diz.

Ela conta que passava grande parte do dia deitada e sempre estava cansada. "Eu tive dificuldades até para levantar um copo d'água", detalha.

Julia posa ao ladosua cachorra

Crédito, Nicolas Broussain

Legenda da foto, Publicitária Julia Franco foi diagnosticada com a covid-19maio e, desde então, afirma que teve complicações causadas pela doença

As tomografias apontaram que os pulmões da publicitária, que ela acreditava que seriam os órgãos mais prejudicados pela covid-19, não foram gravemente afetados pela doença.

Para especialistas, a covid-19 deve ser considerada uma doença sistêmica, não apenas respiratória, porque pode afetar diferentes órgãos.

"A covid-19 tem preferência pela região pulmonar, mas a reação inflamatória que ela causa pode acometer diferentes áreas do organismo. Ainda não se sabe, ao certo, as causas disso", explica a cardiologista Thalita Merluzzi, que acompanha Julia desde que a publicitária teve os primeiros sintomas.

Os cientistas investigam se os danos a diferentes órgãos são causados diretamente pelo vírus ou por fatores indiretos ligados à doença. Estudos apontam que uma possibilidade, por exemplo, é que a "tempestade inflamatória" que o sistema imunológico gera para tentar combater o vírus, inundando o organismocitocinas, lesione esses órgãos. Parte também pode ser uma consequência da própria infecção.

Recuperada do coronavírus

Apesar das dificuldades, Julia não precisou ser internada. Ela fez acompanhamento à distância com a médica e tomou medicamentos apenas para amenizar sintomas da covid-19, como febre e tosse.

No iníciojunho, um novo exame da publicitária deu negativo para a covid-19. A partirentão, Julia acreditava que as dificuldadessaúde cessariamalgumas semanas. No entanto, ela continuou com o problema no coração.

Estudos e a observação clínicaprofissionais apontam possíveis sequelas que podem ser deixadas pelo coronavírus. Conforme relatadoreportagem da BBC News Brasil12agosto, ainda não se sabe se essas complicações são temporárias ou perenes.

Já se sabe, por exemplo, que alguns sintomas podem persistir não apenas entre aqueles que tiveram casos mais graves da doença e que, alémdanos nos pulmões, o Sars-CoV-2 (nome oficial do coronavírus) pode afetar o coração, os rins, o intestino, o sistema vascular e até o cérebro.

Há diversos relatoscomplicações deixadas pela covid-19 no coração. Um estudo recente, feito na Alemanha, apontou que entre 100 pacientes recuperados, 78% apresentaram algum tipoanomalia no coração maisdois meses após a alta. Boa parte (67%) tivera uma forma branda da doença e sequer havia sido hospitalizada.

"Como a covid-19 causa alteração sistêmica, é esperado que o paciente fique com a frequência cardíaca mais alta (até mesmo um tempo após a recuperação,alguns casos). Mas o caso da Júlia foi diferente, porque houve um aumentoforma desproporcional da frequência cardíaca", explica Thalita Merluzzi.

Por permanecer com taquicardia, cansaço extremo e intensa faltaar, Julia continuou sendo acompanhada pela cardiologista. Após diversas avaliações, a publicitária foi diagnosticada com pericardite, um processo inflamatório na membrana que recobre e protege o coração. O problema, segundo Merluzzi, foi causado pelo coronavírus.

"Há vários casospericardite entre pessoasestágio grave com a covid-19. Mas isso não é comum, como no caso da Julia, quando o paciente não desenvolve um quadro grave da covid", explica a cardiologista.

Segundo Julia, foi descartada relação entre os anosque ela fumou e a pericardite. Isso porque especialistas apontam que essa complicação tem sido registradadiferentes perfispacientes que têm ou tiveram a covid-19 e não se restringe a fumantes.

As dificuldades

Coronavírus

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Julia conta que era saudável até contrair o coronavírus

Em razão da pericardite, Julia teve dificuldades para fazer atividades simples que envolvessem esforço físico, como subir e descer escadas. Ela, que acreditava que as coisas melhorariam logo após a covid-19, ficou frustrada com a situação.

A publicitária não tem históricoproblemas cardíacos na família. Desde outubro passado, abandonou o cigarro. Ela acredita que dificilmente teria problemascoração se não fosse a covid-19. "Eu era completamente saudável", diz.

Uma das situações que mais entristecem Julia é o fatonão conseguir retomar as aulasbalé. Ela fez a atividade durante a infância e a adolescência, mas parou aos 16 anos. No ano passado, retomou a prática.

"Estava muito feliz por voltar a fazer balé. Era uma conquista. Durante a quarentena, arrumei a minha casa para fazer as aulas online e estava me preparando para um teste, porque queria dar aulasbalé, que é um sonho antigo", diz Julia.

Ela, que até maio costumava fazer aulas1h30balé, ainda não conseguiu retomar a atividade. "Por voltajunho, não conseguia fazer nada. Hoje, faço uns cinco ou 10 minutos, mexo um pouco o corpo e paro, porque sinto o coração disparar e faltaar", lamenta.

As próprias emoções também se tornaram problemas para Julia, após a covid-19. Ela conta que quando está muito nervosa ou ansiosa, sente o coração batermodo acelerado. "Nesses momentos, tenho que parar, colocar o oxímetro (aparelho que mede a saturaçãooxigênio no sangue e a frequência cardíaca). Se o batimento estiver muito forte, preciso tomar remédio para controlar", diz.

"O meu medo é ficar refém do oxímetro e dos remédios para o coração durante a minha vida toda", desabafa a publicitária, que passou a tomar dois tiposremédios duas vezes por dia,razão do problema cardíaco.

Julia tem melhorado aos poucos desde junho, quando iniciou o tratamento para o problema no coração. "Já consigo fazer algumas atividades. Me sinto mais disposta do que semanas atrás. Mas estou recomeçando aos poucos. Não posso fazer esforços. Se eu conseguir voltar a ser como antes, ainda vai levar certo tempo."

A cardiologista Thalita Merluzzi afirma que os casospericardite, geralmente, têm cura. "A pessoa pode ter a doença apenas uma vez e nunca mais", afirma. Segundo ela, são poucos os casosque se torna um problema crônico.

Em relação à pericardite causada pela doença do coronavírus, a médica comenta que ainda não é possível dizer se é um problema irreversível, assim como outras complicações que podem ser originadas pela covid-19. "Não temos uma resposta, porque é um tema que ainda está sendo estudado", diz a cardiologista.

No fim deste mês, Julia deve passar por novos exames. Caso o coração dela tenha se recuperado, a publicitária deve suspender o tratamento da pericardite. "Tudo isso assusta. O meu maior medo é ter algum dano cardíaco que me impeçaser mãe, pois tenho muita vontadeter um filho."

"Toda essa situação mostra que o quanto é ilusória a ideiaque temos o controle sobre algo. Do dia para a noite, os planos e a rotina mudam. É preciso se adaptar", afirma Julia.

Línea

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