Governo inclui ONG missionária próxima a Damaresbr4bet loginviagem até indígenas recém-contatados na Amazônia:br4bet login

Maloca suruwahá

Crédito, Funai

Legenda da foto, Maloca do povo suruwahá, no Amazonas; missionários já foram expulsos da área 'em funçãobr4bet loginatividades proselitistas e discriminatórias'

A viagem, entre os dias 12 e 22br4bet loginfevereiro, é uma iniciativa do ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, chefiado por Damares, e da Sesai.

Procuradores da República, uma doutorabr4bet loginPsicologia e antropólogos criticaram a presença das integrantes da Jocum na expedição, alertando que a entidade pode deturpar os objetivos da viagem e lhe dar um caráter religioso. Antropólogos questionam ainda a existênciabr4bet loginuma crisebr4bet loginsaúde mental entre o povo.

Eles argumentam que, para os suruwahás, o suicídio é bastante comum e não tem a mesma conotação que para outras populações, e dizem que a comunidade jamais solicitou qualquer intervenção do governo sobre o tema.

O embate expõe as tensões associadas ao trabalho missionário entre povos indígenas e ocorre dias após a nomeação do antropólogo e ex-missionário evangélico Ricardo Lopes Dias para a chefia do órgão da Funai responsável pela proteção a indígenas isolados ebr4bet loginrecente contato. A viagem, no entanto, já estava agendada antes da nomeaçãobr4bet loginDias.

O caso também joga luz no debate sobre os limites entre a autonomia dos povos indígenas e o ímpeto do Estadobr4bet loginintervirbr4bet logincondutas dos grupos que considera nocivas.

Jocum

Crédito, Divulgação - Jocum

Legenda da foto, Mapa mostra as bases da Jocum (Jovens com uma Missão) no Brasil

Perguntas não respondidas

Questionado repetidas vezes sobre a expedição, o Ministério da Saúde enviou uma nota curta à BBC News Brasil na qual diz que uma "uma equipe interministerial dos ministérios da Saúde e da Mulher, Família e Direitos Humanos se deslocará ao território do Povo Suruwahá para avaliação e monitoramentobr4bet loginsaúde mental".

"Trata-sebr4bet loginuma equipe técnica, com dois intérpretes, não sendo composta pela secretária (da Sesai) Silvia Waiãpi", disse o órgão.

Já o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos disse que nenhum membro da pasta participará da viagem.

Os ministérios não responderam por que duas pessoas ligadas à Jocum trabalharão como intérpretes nem comentaram o controverso histórico da entidade. Tampouco responderam se a comunidade havia concordado com a visita e não se posicionaram sobre a noçãobr4bet loginsuicídio entre os suruwahás.

Na semana passada, o Ministério Público Federal no Amazonas enviou um ofício à Sesai questionando quais "as medidas adotadas para impedir a práticabr4bet loginproselitismo religioso" na visita. O órgão cobrou ainda a Sesai a seguir os protocolosbr4bet loginquarentena exigidosbr4bet loginatividades junto a indígenasbr4bet loginrecente contato, que são mais vulneráveis a doenças contagiosas.

Vida entre missionários

A presençabr4bet loginMuwaji e Inikiru na expedição foi citadabr4bet logindocumentos da Sesai sobre os preparativos da viagem, aos quais a BBC News Brasil teve acesso. Os documentos dizem que a viagem busca sanar uma "crisebr4bet loginsaúde mental" que seria a causabr4bet loginvários suicídios recentes no grupo.

As indígenas voarãobr4bet loginBrasília até a cidadebr4bet loginLábrea (AM),br4bet loginonde seguirão até o território suruwahá na companhiabr4bet loginoutros profissionais.

Muwaji e Inikiru foram retiradas da comunidade por um casalbr4bet loginmissionários da Jocum, Edson e Márcia Suzuki,br4bet login2006 e 2007, respectivamente. Desde então, passaram a morar com famíliasbr4bet loginmissionários e perderam o contato com o seu povo.

Inikiru tinha 9 anos quando deixou a aldeia rumo à cidade. Hoje com 22 anos, ela mora com uma família que chefia a base da Jocum na Chapada dos Guimarães (MT) e se tornou, ela própria, missionária.

Em janeiro, Inikiru fez uma vaquinha online para financiar uma viagem missionária à Turquia. No textobr4bet loginque pede doações, Inikiru diz vir "de um povo isolado, onde eles cometem suicídios por faltabr4bet loginesperança".

"Esperança, para mim, é falta do Evangelho — eu creio que o meu povo vai ser resgatado pela palavra da verdade do Evangelho", prossegue a indígena.

Inikiru diz então que, "em buscabr4bet loginlevar essa palavra ao meu povo", frequentou uma Escolabr4bet loginTreinamento e Discipulado (Eted), espéciebr4bet logincursobr4bet loginformação para missionários. A BBC News Brasil contatou Inikiru, mas ela não quis dar entrevista nem comentar a viagem para o território suruwahá.

Linguistas e missionários

Edson e Márcia Suzuki se aproximaram dos suruwahás pela primeira vezbr4bet login1985 para estudarbr4bet loginlíngua. Em 1997, segundo um documento da Funai, a dupla passou a realizar "de modo aberto uma nova fasebr4bet loginindoutrinação religiosabr4bet logintipo fundamentalista" na comunidade.

Em 2006, os dois foram contratados como intérpretes pela Fundação Nacionalbr4bet loginSaúde (Funasa) para acompanhar Muwaji ebr4bet loginfilha, Iganani, diagnosticada com retardobr4bet logincrescimento e desenvolvimento, até Brasília, onde a menina receberia tratamento médico.

No ano seguinte, o casal voltou ao território suruwahá. Desta vez, ao regressar a Brasília, a dupla também levou Inikiru e outro filhobr4bet loginMuwaji, Ahwari, na época com 12 anos. "Tudo, convém destacar, sem qualquer autorização por parte da Funai ou da Funasa", diz o documento.

Questionada pela BBC News Brasil sobre o motivo da viagem, a Jocum disse que caberia à Sesai responder. "A Jocum tem contato com o povo Suruwahá há mais 25 anos. A instituição trabalhou na tradução da língua e já foi parceira, inclusive da Funai,br4bet loginalguns projetos, incluindo tradução", disse uma nota enviada pela chefe da organizaçãobr4bet loginPorto Velho, Cleonice Larsson.

Sobre a presençabr4bet loginMuwaji e Inikiru, disse que "ambas são indígenas suruwahá, falam a língua e certamente a equipe técnica ponderou a necessidadebr4bet loginambas integrarem a equipe".

Lei Muwaji

Em entrevistas e textos que publicou na internet, Márcia Suzuki afirma que, se Iganani voltasse a morar na aldeia, seria morta, já que, segundo a missionária, os suruwahás têm o costumebr4bet loginsacrificar crianças que nascem com deficiência. Por isso, diz ela, Muwaji resolveu ficar com a filha na cidade.

A mãe acabou dando seu nome ao Projetobr4bet loginLei 1.057/2007 ("Lei Muwaji"), que estabelece penas para agentes públicos que deixembr4bet loginagir para evitar que crianças indígenas sejam mortas por terem deficiência, serem frutobr4bet logingestações múltiplas, terem marcasbr4bet loginnascença ou não serem assumidas por um dos genitores, entre outras situações.

O projeto foi fortemente apoiado pela Jocum e pelo Movimento Atini-Voz Pela Vida, que teve entre seus fundadores Damares Alves e o casal Márcia e Edson Suzuki. Muwaji defendeu a proposta no Congresso, e seu rosto passou a estampar campanhas favoráveis à iniciativa.

O projeto ébr4bet loginautoria do então deputado federal Henrique Afsonso (PT-AC), que disse mirar "práticas tradicionais nocivas, as quais se encontram presentesbr4bet logindiversos grupos sociais e étnicos do nosso país, (e) não podem ser ignoradas por esta Casa (a Câmara)".

Já organizaçõesbr4bet loginantropólogos e do movimento indígena afirmam que o projetobr4bet loginlei estigmatiza os povos nativos ao associá-los a práticas extremamente raras e que também ocorrembr4bet loginoutras sociedades, mas não são citadas na proposta.

Korubo

Crédito, Funai

Legenda da foto, Indígenas recém-contatados do povo korubo

Damares e o casal Suzuki

Damares abraçou o projetobr4bet loginlei desde o início e trabalhou pelabr4bet loginaprovaçãobr4bet loginduas frentes. No Congresso, a então assessora parlamentar ajudou a angariar apoios ao texto entre congressistas evangélicos.

E,br4bet login2006, Damares ajudou a fundar, junto com o casal Suzuki, da Jocum, o Movimento Atini-Voz Pela Vida, que diz ter o objetivobr4bet login"prevenir o infanticídio"br4bet logincomunidades indígenas. Em seu site, a Atini diz que Damares deixou a organizaçãobr4bet login2015.

O movimento diz ter salvado várias crianças desdebr4bet logincriação. Uma delas é Lulu Kamayurá, menina que Edson e Márcia Suzuki retirarambr4bet loginuma aldeia no Xingu e hoje mora com Damares, que a trata como uma filha.

A mobilização da Jocum e da Atinibr4bet loginfavor do projetobr4bet loginlei virou casobr4bet loginJustiça após as organizações divulgarem um vídeo encenado no qual crianças indígenas deficientes eram enterradas vivas. O filme, chamado Hakani, dizia retratar uma "história verdadeira" encenada por "sobreviventes ou vítimas resgatadasbr4bet logintentativasbr4bet logininfanticídio".

Segundo o MPF, porém, a encenação usou membros da etnia karitiana, "que não tem a práticabr4bet logininfanticídio embr4bet logincultura e que passou a sofrer diversas consequências negativas após o documentário". Em 2017, a Justiça determinou que o vídeo fosse retirado do ar.

Autoenvenenamento

A expedição do governo até o território suruwahá foi criticada por Antenor Vaz e Adriana Huber, pesquisadores que já trabalharam com o grupo. Hoje coordenadora do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) — órgão ligado à Igreja Católica —br4bet loginManaus, Huber viveu entre os suruwahásbr4bet login2006 a 2011 e fez uma tesebr4bet logindoutoradobr4bet loginAntropologia sobre a práticabr4bet login"autoenvenenamento" utilizada pelo grupo.

Segundo Huber, os suruwahás passaram a ingerir timbó — veneno usadobr4bet logintécnicasbr4bet loginpescaria — há cercabr4bet loginum século. Na época, a invasão do território da etnia por seringueiros havia feito com que vários subgrupos suruwahás se juntassembr4bet loginuma mesma aldeia. A partir dessa reorganização, a resoluçãobr4bet loginconflitos internos assumiu outra lógica.

Até então, diz ela, os embates comunitários eram mediados pelos xamãs (líderes espirituais)br4bet logincada subgrupo. Com o agrupamento, diz Huber, os xamãs perderam importância, e a ingestãobr4bet logintimbó assumiu o papelbr4bet loginmediaçãobr4bet loginconflitos.

Ela diz que os suruwahás não tomam veneno necessariamente porque querem morrer, mas para ver quais pessoas tentarão salvá-los e quem se comoverá. "Mas, às vezes, acabam falecendo acidentalmente, o que causa grande comoção na comunidade", diz a antropóloga.

Hoje, o autoenvenenamento é principal causabr4bet loginmorte entre os suruwahás, responsável por maisbr4bet login80% dos óbitos entre os adultos.

Entre 1984 e 2018, segundo a Funai, houve uma médiabr4bet login3,9 casos por ano no grupo. Segundo Huber, os dados mostram que os cinco casos registradosbr4bet login2019 seguem a tendência histórica e não indicam a existênciabr4bet loginuma crisebr4bet loginsaúde mental.

testemunhasbr4bet loginJeová
Legenda da foto, Folheto distribuído por testemunhasbr4bet loginJeová entre indígenas do povo xavante,br4bet loginMato Grosso

Em artigo publicado na revista Espaço Ameríndio,br4bet login2009, os antropólogos Kariny Teixeirabr4bet loginSouza e Márcio Martins dos Santos dizem que, para os suruwahás, a morte por ingestãobr4bet logintimbó não é interpretada como um atobr4bet logincovardia nem uma afronta aos desígnios divinos, mas sim um caminho respeitoso e digno para uma vida melhor.

Eles dizem que, na cosmologia do grupo, quem morre envenenado com timbó tem acesso a "um lugarbr4bet loginmuita alegria, onde se reencontra com os antepassados e onde as pessoas não envelhecem jamais". "Todavia, só chegam a este lugar aqueles que morrem pela ingestão do veneno. Quem morre por velhice será privado deste lugar ebr4bet loginalma ficará vagando sem destino", afirmam.

Suicídios entre outros povos

Proporcionalmente, o índicebr4bet loginsuicídio entre os suruwahás (2.280 por 100 mil habitantes) é 373 vezes maior que a média do Brasil (6,1/100 mil) e 92 vezes maior que a média do país com a maior taxa do mundo, a Guiana (30,2/100 mil).

De maneira geral, o índicebr4bet loginsuicídios entre indígenas brasileiros é três vezes maior que a média nacional e atinge cifras especialmente altasbr4bet loginalgumas etnias. Um dos casos mais conhecidos é o dos guarani kaiowá,br4bet loginMato Grosso do Sul.

Porém, para Huber, o caso dos suruwahás é bem distinto do dos guarani kaiowá. Enquanto estes vivembr4bet loginterritórios pequenos e sob disputa contante com fazendeiros, os suruwahás "têm terra demarcada, têm bom espaço, caçam, têm soberania alimentar completa, grandes roçados, comida abundante, ou seja, têm todos os meios para viver bem na terras deles".

Tanto é assim, diz ela, que a população suruwahá tem crescido desde que a etnia foi contatada pela primeira vez por missionários católicos, no fim dos anos 1970.

Huber diz que os suruwahás ficam chateados quando são tratados como "suicidas" e rebatem apontando para os problemas da sociedade brasileira majoritária. "Eles dizem: 'a gente toma veneno quando está com raiva, mas vocês têm um problema imensobr4bet loginpartilhabr4bet loginriquezas e lidam com esses conflitos bebendo cachaça e se esfaqueando."

Missionários

Crédito, Diocesebr4bet loginSão Gabriel da Cachoeira

Legenda da foto, Missionários católicos entre indígenas do Alto Rio Negro, no Amazonas

Mais importante, diz Huber, é que "os suruwahás nunca pediram ajuda externa para lidar com essa prática e não têm ideia do que seja a função da psicologia na nossa sociedade". Ela questiona ainda a presença das indígenas ligadas à Jocum na expedição e diz que outras pessoas poderiam atuar como intérpretes.

Huber diz que Inikiru e Muwaji "estão fora da aldeia,br4bet loginprocessobr4bet loginformação missionária, há uma década", e critica o usobr4bet loginrecursos públicos para transportar "pessoas com históricobr4bet loginproselitismo religioso" até o território.

Estado e missões religiosas

Para Júlio José Araújo Júnior, procurador que coordena o Grupobr4bet loginTrabalho do MPF sobre Povos Indígenas e Regime Militar, o caso ilustra uma "etapa avançada da tentativabr4bet logincolocar o Estado a serviçobr4bet logininteressesbr4bet loginmissões religiosas". O procurador diz que missões religiosas "manejam conceitos importantes, como a noçãobr4bet logindignidade humana, para favorecer a imposiçãobr4bet loginuma visãobr4bet loginmundo".

Para a psicanalista Vera Iaconelli, doutorabr4bet loginPsicologia pela Universidadebr4bet loginSão Paulo (USP), a psicanálise parte do pressupostobr4bet loginque "todo sujeito tem um direito inalienávelbr4bet loginacabar com a própria vida", e a pior formabr4bet loginlidar com quem está pensandobr4bet loginse matar é tratá-lo "com um discurso moralizante" própriobr4bet loginvárias religiões.

Ela afirma que o suicídio tem sentidos diferentesbr4bet logincada cultura e que, para abordar o temabr4bet loginuma comunidade indígena, é preciso "entender onde estão suas feridas e que tipobr4bet loginsofrimento eles podem estar vivendo coletivamente".

"Nesses ambientes, o psicanalista tem mais a escutar do que a falar. E não necessariamente ele precisa entrar lá: pode ser um interlocutorbr4bet loginpessoasbr4bet loginconfiança da comunidade, ajudando-as a pensar essas questões."

Para ela, convidar religiosos para lidar com saúde mental "é como chamar veterinários para cuidarbr4bet loginuma crise termonuclear". "Não tem nada a ver."

Línea

Crédito, Getty Images

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