Os grupos marginalizados que difundiram a tatuagem no Brasil:pokerstars paysafe
Em 1959, desembarcou no portopokerstars paysafeSantos e logo abriu um ateliê. Trazia consigo um artefato até então desconhecido por aqui — uma máquina elétrica, própria para tatuagens.
Tornava-se assim o primeiro (e, por muito tempo, o único) tatuador a possuir um estabelecimento do gênero no país. Sob o pseudônimopokerstars paysafeLucky Tattoo, angariou fama nacional nos anos 1960. Quando morreu, vitimado por um ataque cardíacopokerstars paysafe1983, já havia se convertidopokerstars paysafefigurapokerstars paysafeculto entre adeptos das artes corporais. Hoje, seu nome desponta como elo fundamental entre o passado e o presente da tatuagem brasileira.
"A tatuagem se desenvolviapokerstars paysafelugarespokerstars paysafeconfinamento, como navios, quartéis e prisões", explica Silvana Jeha, doutorapokerstars paysafeHistória Social pela PUC-Rio. "Por outro lado, ela também aparecia na praça pública, na rua, no bar. Não existiam estúdiospokerstars paysafetatuagem. Até então, o tatuador era um cara qualquer, que desenhava ali na esquina."
O repertório iconográfico pouco diferia do atual. Há cem anos, a pele dos tatuados já ostentava âncoras, animais, mulheres nuas, símbolos políticos ou religiosos, personagenspokerstars paysafehistóriaspokerstars paysafequadrinhos, nomes e iniciaispokerstars paysafepessoas queridas. Os traços, porém, evidenciavam certo amadorismo, ligado a uma prática quase ritualística, infinitamente mais bruta e perigosa que os procedimentospokerstars paysafehojepokerstars paysafedia.
Agulhas, espinhos e cacospokerstars paysafevidro eram alguns dos apetrechos utilizados na feitura dos desenhos. Cinzaspokerstars paysafecigarro, graxapokerstars paysafesapato, carvão vegetal, fuligem e nanquim compunham fórmulaspokerstars paysafepigmentos improvisados. Aos arrependidos, sobravam métodospokerstars paysaferemoção igualmente dolorosos, baseadospokerstars paysafequeimaduraspokerstars paysafeácido oupokerstars paysafecastanhapokerstars paysafecaju.
"A tatuagem era uma prática horizontalizada e sofreu enorme discriminação. Perdemos o fio dessa meada e só retomamos muito tempo depois, via cultura pop", afirma Jeha, que pesquisou o tema por maispokerstars paysafecinco anos.
No livro Uma História da Tatuagem no Brasil, publicado no finalpokerstars paysafe2019 pela editora Veneta, a historiadora compartilha suas descobertas e analisa as transformações sofridas por essa arte entre a primeira metade do século 19, períodopokerstars paysafeque se firma como cultura popular urbana, e meados da décadapokerstars paysafe1970, quando cai no gosto da classe média.
Imaginário
"O livro é filho do meu doutorado", diz. A tese que defendeupokerstars paysafe2011 versa sobre a Marinha Imperial brasileira e as contribuiçõespokerstars paysafeseus recrutas para o desenvolvimentopokerstars paysafeuma cultura cosmopolita no país. "Eu entrei nessa onda do marinheiro ser um tipo meio extraordinário e mítico", afirma.
Um livropokerstars paysaferegistros da fragatapokerstars paysafeguerra Imperatriz, contendo informações sobre 900 marujos, ganhou espaço na tese. Trata-se do documento mais antigo que a autora já encontrou acerca da presençapokerstars paysafetatuados no Brasil.
Os tripulantes que embarcaram no navio entre 1833 e 1835 foram catalogadospokerstars paysafefunçãopokerstars paysafeseus atributos físicos — altura, cor dos olhos e da pele, cicatrizes, formato da cabeça e, vez ou outra, desenhos descritos como "marcas" ou "sinais". A palavra "tatuagem" surgiria apenas algumas décadas depois.
Intrigada, a historiadora decidiu iniciar uma pesquisa sobre o tema. "Eu não sabia muito bem como isso funcionava socialmente. Aliás, acho que quase ninguém sabia", diz. "Há um imagináriopokerstars paysafeque tatuagem era apenas coisapokerstars paysafemarinheiros, bandidos e putas. Mas não foi bem assim."
A pesquisa, financiada pela Biblioteca Nacional, se apoioupokerstars paysafeduas fontes principais: a coleçãopokerstars paysafejornais da instituição e o acervo do Museu Penitenciário Paulista, que abriga 2.600 fotografiaspokerstars paysafedetentos do Carandiru, tiradas entre as décadaspokerstars paysafe1920 e 1940.
Muitos desses indivíduos, ressalta Jeha, já chegaram tatuados ao complexo penitenciário. "É preciso entender que essas pessoas tiveram uma existência anterior à cadeia", diz. "Elas trabalharam, andaram pelo mundo, e, depoispokerstars paysafepresas, reafirmaram seu domínio sobre a única coisa que ainda tinham — o corpo."
Cruzando informaçõespokerstars paysafeseus prontuários com textos encontrados nas páginas dos jornais, a autora pôde mapear os principais grupos envolvidos na difusão da tatuagem no Brasil e entender como foram vistos pela sociedade da época.
Os marinheiros, como esperado, marcavam forte presença. "Os marujos não são necessariamente os pioneiros da tatuagem dita ocidental", esclarece a historiadora. "Mas foram eles que espalharam essa cultura pelo mundo."
Eram sujeitos como Joaquim, que, tentando driblar uma rotinapokerstars paysafecastigos físicos, tatuou um crucifixo nas costas e a imagempokerstars paysafeCristo no peito. Segundo relatospokerstars paysafe1904, os capatazes do navio temiam agredi-lo — acreditavam que os golpes feriam Jesus.
Ou como o idoso que, à beira da morte num leitopokerstars paysafehospital, narrou a Jeha a origem da frase "Amor à Cuba", que trazia inscrita na mão. Por dois meses, seu navio permanecera atracado na ilha. Enquanto a embarcação sofria reparos, o tripulante saiu, dançou salsa e conheceu Fidel Castro. A tatuagem, garantiu o marinheiro à pesquisadora, seria uma "lembrança daqueles dias maravilhosos".
Já nas páginas dos tabloides, manchetes sanguinolentas davam testemunho dos supostos vínculos entre a tatuagem e a criminalidade: "Tatuado no assalto ao armazém"; "Dois tatuados e um bicheiro assassinados a bala e faca"; "Massacre do homem tatuado só poupou um bebê"; "Jovem tatuado agonizava na rua com três rombospokerstars paysafebala na cabeça".
Tangenciando ambos os universos, reportagens sobre prostituição documentavam as trajetórias erráticaspokerstars paysafemulheres que transgrediam as normaspokerstars paysafeseu tempo.
A alagoana Beatriz Barbosa, por exemplo, pautou dezenaspokerstars paysafetextos jornalísticos entre 1919 e 1948. Suas andanças pelo Riopokerstars paysafeJaneiro, então capital federal, costumavam terminarpokerstars paysafedelegacias e faziam as delícias do noticiário sensacionalista. Foi presa maispokerstars paysafevinte vezes, sempre por delitos menores: furtos, brigas, bebedeiras, vadiagem, meretrício. Viciadapokerstars paysafecocaína, chegou a ser descrita como "recordistapokerstars paysafeentradas na detenção e campeãpokerstars paysafetatuagens".
Fervor e pertencimento
Nem sópokerstars paysafemar, crime e sexo pago viviam os tatuados nos grandes centros urbanos. Militarespokerstars paysafebaixa patente, trabalhadores braçais, artistas circenses, imigrantes e degredados também ostentavam desenhos no corpo.
Muitos soldados se tatuavam com bandeiras nacionais, siglaspokerstars paysafebatalhões, slogans ufanistas e emblemas patrióticospokerstars paysafegeral. Outros, porém, escolhiam símbolos e imagens não vinculadas às questões bélicas.
O praça Marcelino Bispopokerstars paysafeMello era um deles: possuía estrelaspokerstars paysafecinco pontas tatuadas no peito, cotovelo e braço. Em novembropokerstars paysafe1897, ele assassinou o marechal Carlos Machadopokerstars paysafeBittencourt, ministro da Guerra, num atentado contra Prudentepokerstars paysafeMorais, presidente da República. Os desenhos foram constatados no examepokerstars paysafecorpopokerstars paysafedelito e citados pela imprensapokerstars paysafejaneiro do ano seguinte, após Marcelino cometer suicídio na cadeia, enforcando-se com um lençol.
Não foi o único momentopokerstars paysafeturbulência a contar com a participaçãopokerstars paysafetatuados: os levantes tenentistas da décadapokerstars paysafe1920, bem como as revoluçõespokerstars paysafe1930 e 1932, estimularam diversos trabalhadores a expressarem na pele suas convicções políticas. Outros perderam a vida, tendo seus corpos reconhecidos a partir das tatuagens que carregavam.
O marceneiro Manoel Moreira da Costa, vulgo Costeleta, foi preso, torturado e mortopokerstars paysafeoutubropokerstars paysafe1931, ao se manifestar contra o governo que Getúlio Vargas instituira no ano anterior. Seu cadáver degolado, disposto numa linhapokerstars paysafetrempokerstars paysafeRecife, foi identificado pela mãe e pela namorada graças a uma inscrição contendo o nomepokerstars paysafeuma terceira mulher — Adélia. Também movido pelo repúdio ao getulismo, o estivador José tatuaria no braço a frase "Tudo por São Paulo", lema do movimento constitucionalistapokerstars paysafe1932.
Na outra ponta, alheios ao caos social e imersospokerstars paysafeexotismo escapista, profissionaispokerstars paysafefreak shows empreendiam turnês internacionais que incluíam os circos, cinemas e teatros das cidades brasileiras. Em 1890, o greco-albanês George Costentenus, um dos mais célebres artistas itinerantes do século 19, chegou a participarpokerstars paysafeespetáculospokerstars paysafeSão Paulo e no Riopokerstars paysafeJaneiro. Às plateias, exibia seu corpo inteiramente tatuado e narrava as aventuras mirabolantes que teria vivido ao redor do globo.
Trajetórias tão diversas, relata Jeha, transformaram radicalmente o seu olhar sobre o tema, culminando num processopokerstars paysafeautoconhecimento. "Eu fiquei muito fascinada. Enquanto historiadora, sempre estive acostumada a estudar o outro", diz. "E,pokerstars paysaferepente, descobri que meus antepassados se tatuavam."
A pesquisadora, descendentepokerstars paysafelibaneses, soube que o avôpokerstars paysafeum primo possuía uma cruz tatuada na mão. O desenho cumpria um objetivo específico, confirmado por fotografias e depoimentospokerstars paysafepatrícios: impossibilitar a negação da fé cristãpokerstars paysafeeventuais embates contra muçulmanos.
"Há algopokerstars paysafeemotivo, um sentimento incrívelpokerstars paysafesaber que essa cultura também pertence a mim", diz. "Depois, fui percebendo que ela pertence a todo mundo que vive aqui. Portugueses, italianos, japoneses, alemães, indígenas, africanos."
Se existe algum vínculo a unir todas essas pessoas, afirma Jeha, trata-se do terreno por onde elas se movem — uma tênue e ambígua fronteira entre as dimensões do erótico e do sagrado.
"Embora se mostre tão escancarada atualmente, a tatuagem sempre foi algo muito íntimo. As mulheres tatuavam muito os seios, alguns homens chegavam ao extremopokerstars paysafetatuar o pênis", explica. "É uma prática relacionada ao fervor e às paixões. O nome da pessoa que você ama, os símbolos dapokerstars paysafereligião, o time para o qual você torce."
Um sinalpokerstars paysafesuspeição
Para além dos registros policiais e jornalísticos, o universo literário forneceu pistas igualmente valiosas à historiadora. Nos escritospokerstars paysafeJorge Amado, Máriopokerstars paysafeAndrade, Guimarães Rosa, Plínio Marcos e João do Rio, ou até mesmo do americano Herman Melville, Silvana Jeha encontrou dezenaspokerstars paysafereferências aos tatuados brasileiros.
"A literatura é o retratopokerstars paysafeuma época", diz. "Acredito que os escritores possuem uma sensibilidade maior. Boa parte deles via a tatuagem com muita curiosidade, como uma cultura dotadapokerstars paysafebeleza própria. Eram muito mais atentos às nuances, se comparados aos demais narradores."
Machadopokerstars paysafeAssis, o mais antigo escritor brasileiro a ser analisado pela pesquisadora, já descrevia tatuagens na novela O Alienista,pokerstars paysafe1882. Em certo trecho da obra, protagonizada por um médico que inaugura um manicômio e se afunda na própria insanidade, o romancista carioca menciona brevemente uma estrelapokerstars paysafecinco pontas "impressa no braço"pokerstars paysafeum personagem secundário.
Treze anos depois, Manuelpokerstars paysafeSouza, imigrante português preso sob acusaçãopokerstars paysafehomicídio, seria retirado da delegacia onde cumpria pena e utilizado como modelo vivo numa aula da Faculdadepokerstars paysafeMedicina do Riopokerstars paysafeJaneiro. Na ocasião, o professor Souza Lima, precursor da medicina legal no Brasil, expôs aos alunos as tatuagens do acusado. Baseando-se nelas, emitiu seu veredicto: ainda que não tivesse cometido crime algum, Manuel deveria ser tratado como um suspeitopokerstars paysafepotencial.
Machadopokerstars paysafeAssis, então, retornou ao tema. Em crônica publicada pela Gazetapokerstars paysafeNotícias no dia 23pokerstars paysafejulhopokerstars paysafe1895, disse: "Foram as tatuagens do corpo do homem que me deslumbraram. As tatuagens são todas ou quase todas amorosas. Braços e peitos estão marcadospokerstars paysafenomespokerstars paysafemulheres epokerstars paysafesímbolospokerstars paysafeamor".
Por fim, o escritor lançava um questionamento: como poderia "um homem tão dado a amores, que os escreviapokerstars paysafesi mesmo", ser também um assassino?
Jeha explica: "Nosso país sempre esbarroupokerstars paysafequestõespokerstars paysafeclasse e raça. Os cidadãos são discriminados pela cor, pela aparência, pela posição social. E a tatuagem, no contexto daquela época, se destacava como um sinalpokerstars paysafesuspeição. Era algo literalmente marcado na pele."
A sorte que o Brasil do século 20 reservou aos seus tatuados não foi muito melhor.
Na décadapokerstars paysafe1930, um trabalhador rural baiano, identificado apenas pelas iniciais J.R.B., tentaria a todo custo remover os desenhos que carregava na pele. Alegava que teriam lhe trazido "pintapokerstars paysafemalandro".
O sambista carioca Guilhermepokerstars paysafeBrito, parceiropokerstars paysafeNélson Cavaquinho, também se arrependeriapokerstars paysafeuma tatuagem feita na juventude — um índio, traçado no braço por um morador da favela do Tuiuti.
Pelo resto da vida, o músico esconderia o membro tatuado — temendo represálias, nunca mais vestiu uma camisapokerstars paysafemanga curta.
Feminicídios e execuções policiais foram o destino finalpokerstars paysafealguns tatuados, mas o livro nem sempre expõe as circunstânciaspokerstars paysafesuas mortes.
"Tentei descriminalizar a tatuagem", explica a autora.
"Se o cara pertencia a uma escolapokerstars paysafesamba e torcia para um timepokerstars paysafefutebol, por que me referir a ele como o sujeito assassinado pelo Esquadrão da Morte? Os jornais costumam criar admiração e fascínio mórbido por notíciaspokerstars paysafecrime, quando isso não passapokerstars paysafeuma doença social."
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