Como a 'MP da grilagem' pode mudar o maparegiões da Amazônia :
Já o governo, que chama a iniciativa"MP da Regularização Fundiária", diz que ela busca desburocratizar a concessãotítulos a agricultores "que produzem e ocupam terras da Uniãoforma mansa e pacífica".
Um dos principais articuladores da proposta no Congresso é o pecuarista e secretárioAssuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, Nabhan Garcia.
O que são terras públicas não destinadas
A Medida Provisória tem como alvo terras públicas não destinadas, áreas que pertencem à União mas ainda não tiveram uma função definida, como, por exemplo, se tornarem parques nacionais ou reservas extrativistas.
A medida vale para todo o Brasil, mas terá maior impacto na Amazônia Legal, região que engloba os nove Estados onde há vegetações amazônicas e que concentra as terras públicas não designadas no país. Segundo o Ministério da Agricultura, na Amazônia, essas áreas somam cerca57 milhõeshectares, ou pouco mais do que o território da França.
A bancada ruralista apoia a iniciativa e está mobilizadaprol da aprovação.
O relator da MP no Congresso foi o senador Irajá Abreu (PSD-TO), filho da também senadora Kátia Abreu (PDT-TO), ministra da Agricultura no governo Dilma Rousseff (PT).
Irajá modificou alguns pontos da medida. Umasuas alterações ampliou1.500 hectares para 2.500 hectares a área passívelregularização com dispensavistoria.
"Empresas poderão titular grandes propriedades, o que joga por terra o argumentoque a MP foi feita para resolver a situaçãopequenos posseiros", diz uma nota do Observatório do Clima, entidade que agrega 36organizações ambientalistas que atuam no Brasil.
"Num momentodesmatamentoalta na Amazônia edúvidas sobre a capacidade - ou a vontade - do Brasilcumprir suas metas no AcordoParis, a MP da Grilagem sinaliza mais descontrole sobre a devastação, mais violência no campo e mais emissõesgasesefeito estufa", diz o órgão.
Oito ex-ministros do Meio Ambiente enviaram uma carta ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), pedindo que ele não coloque a medidavotação, o que a faria perder a validade.
Já a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) afirma que a MP traz mudanças "de grande importância para o desenvolvimento do Brasil e resolvem injustiças históricas, viabilizando a efetivação do direitopropriedade, que é tão aguardado por parcela significativa da população".
"Certamente, o país avançará na estruturaçãouma malha fundiária sólida que possibilitará uma adequada governançaterras e refletirá no monitoramento e na fiscalização ambiental", disse o órgãonota.
Regularizações sucessivas
De toda a área desmatada na Amazônia entre agosto2018 e julho2019, 35% são terras públicas não destinadas, segundo uma análise do InstitutoPesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam).
A práticadesmatar áreas públicas e fraudar documentos para simular a posse dos terrenos é conhecida como grilagem. O objetivo principal dos grileiros é vender as terras, lucrando com a valorização ocorrida após o desmatamento, uma vez que a área se torne apta para atividades agropecuárias. A pecuária é a atividade preferencial.
A grilagem é uma das maiores causas do desmatamento na Amazônia. A prática alimenta o mercado ilegalterras na região, gerando uma corrida incessante por novas áreasfloresta.
Essas áreas são visadas por desmatadores na expectativaque venham a ser regularizadas futuramente — o quefato tem acontecido.
Em 2017, o então presidente Michel Temer assinou a Medida Provisória 759, que à época também foi apelidada"MP da grilagem" por críticos. A iniciativa flexibilizava os critérios para a concessãoáreas públicas na Amazônia ocupadas até 2014.
Tanto a MP 910,Bolsonaro, quanto a MP 759,Temer, são vistas como atualizações e desdobramentosuma iniciativa2009 do governo Luiz Inácio Lula da Silva, a Medida Provisória 458, que deu origem ao Programa Terra Legal.
Na época, Lula também disse ter como objetivo regularizar possespequenos agricultores na Amazônia. No entanto, o livro Dono é quem desmata: conexões entre grilagem e desmatamento no sudoeste paraense, dos pesquisadores Mauricio Torres, Juan Doblas e Daniela Alarcon, apontou outros efeitos da iniciativa.
Segundo os autores, embora 90% do público-alvo do programafato ocupasse pequenas porçõesterra, essas áreas correspondiam a apenas 19% do território coberto pela iniciativa, enquanto 63% das áreas ficariam nas mãos5,7% dos requerentes.
Dispensavistoria
Entre as condições definidas pela MP 910,Bolsonaro, para que terras públicas sejam apropriadas por indivíduos estão:
- o reivindicante não pode ter outros imóveis rurais;
- a área deve estar inscrita no Cadastro Ambiental Rural (CAR) e ser georreferenciada (identificada por coordenadassatélite);
- não pode haver multas ou embargos ambientais sobre a área, que tampouco pode ser objetodisputas registradas na Ouvidoria Agrária Nacional;
- o reivindicante deve estar realizando atividades agropecuárias no território;
- o reivindicante não pode manter trabalhadorescondições análogas àsescravos.
A MP define que, para áreas que cumpram os requisitos e tenham até 2.500 hectares (2.500 camposfutebol), o título será concedido sem a necessidadevistoria.
Antes da MP, a dispensavistoria valia para áreas com até 440 hectares.
Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil dizem que a dispensa da vistoria pode permitir que grandes áreas desmatadas ilegalmente sejam apossadas por indivíduos.
Isso porque a MP só proíbe a regularizaçãoáreas que tenham sido objetomultas ou embargos ambientais, e nem todas as violações ambientais são conhecidas e autuadas pelo poder público.
Dizem ainda que, sem vistoria, o governo não terá como checar se a área está realmente livretrabalho escravo e se o reclamantefato vive e trabalha no local.
Já o governo afirma que fará "análise dos documentos, cruzamentodados e checagem com ferramentas" para confirmar se as informações são verídicas. A comprovação da ocupação da área, por exemplo, poderá ser feita com imagenssatélite. Caso a análise aponte discrepâncias, haverá vistoria.
Comunidades tradicionais
Para Juliana Batista, advogada do Instituto Socioambiental, há ainda o riscoque indivíduos se apossemáreas reivindicadas por comunidades tradicionais nos casosque as demandas dos grupos não estejam registradas na Ouvidoria Agrária Nacional.
"A partir do momentoque o governo começa a regularizar terras sem considerar outras demandas, isso vai gerar um conflito enorme", ela afirma à BBC News Brasil.
Já o governo afirma que áreas "tradicionalmente ocupadas" por indígenas, quilombolas ou outras comunidades tradicionais não serão passíveisconcessão — embora não diga o que ocorrerá nos casosáreas reclamadas pelos grupos mas ainda não demarcadas nemprocessodemarcação.
Centenascomunidades tradicionais brasileiras ainda aguardam o início do processoregularizaçãosuas terras. É o caso dos quilombolas: cerca2,6 mil comunidades já foram reconhecidas como quilombolas, mas apenas 1,7 mil tiveram seus processostitulaçãoterra iniciados ou concluídos.
Prêmio para grileiros
Para Paulo Moutinho, doutorEcologia e pesquisador do Ipam (InstitutoPesquisa Ambiental da Amazônia), a medidaBolsonaro premia quem desmatou com o intuitolucrar com a venda das terras.
"Certamente há muitos pequenos produtores na Amazônia passíveisregularização, mas há um contingente substancialgente que grilou a terra e vai obter benefício do governo", ele diz à BBC News Brasil.
Moutinho cita o tamanho limite das áreas passíveisregularização, 2.500 hectares, o que configura uma grande propriedade ruralqualquer ponto do Brasil na classificação do Incra.
Ele diz que, para derrubar e limpar um hectarefloresta, são necessários R$ 1,2 mil. Portanto, donosáreas com 2.500 hectares na Amazônia que queiram desmatar 20% do território — limite definido pelo Código Florestal — terãodesembolsar R$ 600 mil, quantia da qual pequenos proprietários não costumam dispor.
Moutinho diz que grande parte das áreas desmatadas na Amazônia hoje se destina à "especulação": os responsáveis contratam pessoas para desmatá-las sem ter a pretensãoocupá-las, mas simvendê-las para outros. "É uma lucratividade astronômica", afirma.
Já o Ministério da Agricultura afirma que a MP se destina "àqueles que produzem e ocupam a terraforma mansa e pacífica há muitos anos e podem comprovarpermanência e trabalho no local".
O governo estima que há cerca160 mil estabelecimentos rurais a serem regularizados na Amazônia Legal. "Desde a criação do Incra, há 50 anos, foram implantados 9.469 assentamentos para 974.073 famílias. Desde então, apenas 5% dos assentamentos foram consolidados e só 6% das famílias receberam seus títulos da terra", diz o ministério.
"Ao identificar quem está na terra, a MP permitirá maior controle, monitoramento e fiscalização das áreas. Os que não atenderem às regras previstas sofrerão as sanções legais", segue o órgão.
O ministério cita um dispositivo da MP que define um prazo entre três e dez anos para a vendaáreas regularizadas. "Foram criados, assim, obstáculos às tentativasgrilagem", afirma a pasta.
O ministério também rejeita o argumentoque a MP estimulará o desmatamentonovas áreas por alimentar expectativasregularizações futuras.
"A MP traz maior rigidez quanto à regularidade ambiental, colocando o interessado como um parceiro na preservação do meio ambiente. Ele terá que se comprometer a aderir ao Cadastro Ambiental Rural (CAR) e cumprir o que estabelece o Código Florestal Brasileiro. Ou seja,determinadas regiões, como na Amazônia Legal, terá que preservar 80%sua propriedade", diz o órgão.
Perdapatrimônio
Outra crítica à MP diz respeito à perdapatrimônio público com as concessões dos títulos.
Em junho2019, Brito publicou um artigo na revista científica Environmental Research Letters no qual mediu possíveis efeitos da lei 13.465,2017, que também versou sobre a ocupaçãoterras públicas e se baseou na MP 759,Michel Temer.
Brito calculou quanto dinheiro o governo deixariaarrecadar se os descontos previstos pela MPTemer fossem aplicados à vendatodas as áreas públicas não destinadas que poderão ser privatizadas — áreas que, segundo a Câmara TécnicaDestinação e RegularizaçãoTerras Públicas Federais na Amazônia Legal, somam 19,6 milhõeshectares, o equivalente ao Estado do Paraná.
Segundo o estudo, a perdareceitas potenciais seriaaté R$ 120,3 bilhões — 43 vezes o orçamento aprovado para o Ministério do Meio Ambiente2019.
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